domingo, 31 de maio de 2009

O DESTINO DA MOXOTÓ



Etevaldo Amorim *

A viagem principiara tranqüila. Desde o porto de Piranhas, donde partira pouco depois das 14:00 horas com destino a Pão de Açúcar, a Moxotó deslizava sobre as águas buliçosas do rio São Francisco, rompendo o vento forte, tão comum nessas tardes sertanejas. Tudo transcorria no modo habitual. Passageiros alegres em conversas as mais diversas, procuravam “matar o tempo” e, assim, conseguir que a viagem se tornasse menos fatigante. A “Chata”, como era conhecida, pernoitaria no porto de Pão de Açúcar para, na manhã da quinta-feira, seguir para Penedo, cumprindo a linha normal de todas as semanas. Antes, porém, reabasteceria com lenha trazida de canoa, desde Jacarezinho, por Manoel Carlos de Souza.
A Moxotó era a embarcação mais leve dentre todas da Companhia Pernambucana. Substituiu o vapor Sinimbu, grande e pouco efetivo, sobretudo em épocas de rio seco, quando freqüentemente encalhava em bancos de areia, as conhecidas “coroas”. A Chata, não. Era possível com ela navegar em qualquer época. Serviam-se dela as pessoas mais abastadas de toda a região sanfranciscana: coronéis, fazendeiros, representantes comerciais... todos faziam o mesmo percurso até Penedo donde se podia embarcar para o Recife, Maceió ou para a Bahia, sem falar em outros destinos menos procurados.
A julgar pelas palavras de Moreno Brandão, em seu História de Alagoas, a Moxotó era pouco segura. Segundo ele, era “uma chata, cuja peregrinação através das águas tão fortes e caudalosas é um verdadeiro milagre, tal é a fragilidade da referida embarcação”.
Lá pelas quatro da tarde daquele 10 de janeiro de 1917, passando pelo povoado Curralinho (Poço Redondo-SE), eis que o vento se torna mais forte. Subitamente o céu se obumbra, prenunciando tenebrosa tempestade. E a tormenta se abate sobre as águas do rio agora revoltas e temerosas. Rajadas vindas do Norte varriam a superfície das águas de costa a costa. Quase nada se podia divisar em meio à intensa nuvem de poeira que encobria o horizonte. Já parecia noite e a escuridão só cessava aos relâmpagos que amiúdam, ora em intenso clarão, ora em caracóis de fogo, sucedidos por trovões apavorantes. A frágil embarcação logo sacoleja freneticamente sob o império das ondas, que se fazem tão altas como nunca se vira. Intensa marulhada faz o rio parecer um mar aberto, bravo e assombroso.
Cessam as conversas. Atemorizados, os passageiros se fecham num silêncio quase absoluto. O pequeno vapor, antes sobranceiro, agora se debate contra as vagas, em luta renhida, mas desigual. Debalde, procura o piloto manter o controle. O jovem Domingos Aguiar apela para que o prático “Rolinha”, que comandava a embarcação, aporte imediatamente em qualquer lugar, ou logo ali na confluência do riacho das Antas (pouco acima de Bonsucesso-SE), mesmo com o risco de perdê-la, assegurando que seu pai pagaria todo o prejuízo. Em vão... Talvez por acreditar que pudesse superar a turbulência, preferiu arrostar o perigo e, quando supôs não haver mais recursos, julgando poder proteger-se por detrás do morro do Belmonte, procurou o curso entre este e a margem direita, reduzindo velocidade e baixando âncoras. Foi o suficiente para a lancha tombar desgovernada, completamente à mercê das ondas e do vento. Seguem-se momentos de pavor. Forma-se de repente um cenário dantesco: gritos, choro, desespero. A água transpõe o convés e invade todo o vão interior. Pânico geral! Passageiros e tripulantes se atropelam em movimentos desordenados. Uns se lançam ao rio em busca de salvação; outros são tragados pelas ondas e sucumbem ao soberbo poder das águas tempestuosas, soçobrando inevitavelmente.
Consuma-se a tragédia. A tempestade afinal se aplaca ao cair da noite. Dia seguinte, a notícia se espalha. De Pão de Açúcar, onde a tempestade destelhou casas e derrubou árvores, partiram equipes de busca, coordenadas pelo Capitão Manoel Rego. Trabalho difícil e doloroso que ia revelando, a cada corpo encontrado, a extensão e a gravidade do que ocorrera no morro do Belmonte. Dentre os tripulantes o dispensário Silvestre, o criado Odilon e o imediato Hermínio Lemos, que foi localizado dentro do camarote. Morreram também os passageiros: Martinho Sergipano, Luiza Caximbo, Josephina Alves, José Guilherme, Domingos de Novaes Aguiar e ainda dois cegos, um menino e dois cidadãos cujos nomes são ignorados. Domingos só foi encontrado na noite do dia 12, sexta-feira. Seu túmulo se acha no cemitério velho de Pão de Açúcar, logo à direita do portão principal, ao lado de seus familiares: Major João Machado de Novaes Melo (Barão de Piaçabuçu) e Ferreira de Novaes, personagens importantes da história de Pão de Açúcar.
Alguns lograram sobreviver: o comandante Pedro Mathilde, o negociante Panta, Manoel Victorino, o guarda telegráfico Pedro Marinho, Nicácio Duarte, Antônio Totó e Justino Pereira, dentre outros. Mesmo depois de decorridos noventa anos daquela fatídica viagem, os habitantes da região ainda comentam o acontecimento. Não é difícil encontrar entre eles uma lembrança da embarcação: um pedaço de madeira ou outra peça que lhes sirva de recordação. A história, passada de geração a geração, mantém-se viva na memória dos ribeirinhos e desperta atenção de tantos quantos se interessam por assuntos dessa natureza. A Moxotó ainda repousa sob as areias brancacentas da Ilha do Belmonte e se torna visível a cada vazante mais severa do rio, como que para lembrar a maior tragédia da navegação no baixo São Francisco.

A chata Moxotó. Foto: Abílio Coutinho.

Domingos de Novaes Aguiar. Fonte: Revista do Tico-Tico, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1911. Disponível em: memoria.bn.br.

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(*) Autor do livro Terra do Sol, Espelho da Lua.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

O CASO DA MALA – UMA PAIXÃO SEM LIMITES

Etevaldo Alves Amorim

O Dr. Borba desembarcou na Ilha do Ferro com o firme propósito de encontrar o famigerado tesouro da Cabeça do Cavalo. Esta Fazenda, distante cinco léguas de Pão de Açúcar e meia légua daquele Povoado, pertencia ao Capitão Serafim Soares Pinto, que contratara o especialista para explorar as riquezas que se acreditava existir em seu subsolo. Teria aqui chegado provavelmente no mês de janeiro de 1911, acompanhado de dois indivíduos.
Passados muitos dias em exaustivas escavações, o Dr. Borba e seus ajudantes perderam os recursos que tinham e com eles a esperança de encontrar o tal tesouro. Sem dinheiro e já sem objetivo, passavam o tempo perambulando pelas ruas do povoado e encontraram pousada na casa do Sr. Manoel Bezerra.
Uma das filhas do Sr. Bezerra, Amália, logo se envolveu com José Aurélio, um dos auxiliares do Dr. Borba. Conversavam a sós até altas horas da noite, abraçavam-se e se exibiam em brincadeiras em público, em verdadeiro idílio. Com seus vinte e nove anos, moreno trigueiro, de estatura alta e cabelos ruins, contrastava com as características dos homens do lugar. Mas, talvez por ser estranho, “rapaz de fora”, falante e cheio de novidades para contar, agradara a jovem sertaneja.

José Aurélio era casado civil e eclesiasticamente com Dona Luiza e com ela tivera dois filhos, um deles nascido há bem pouco tempo: 24 de abril de 1911. Dizia a Amália que a mulher o abandonara e que, sendo casado apenas no Civil (que na época não tinha muito valor) com ela se casaria “na Igreja”.

Amália Bezerra de Melo era o seu nome. A simpática mocinha tinha apenas 16 anos de idade. Sua pele morena clara, cabelos negros e olhos castanhos escuros e, sobretudo seu corpo esbelto, distribuído em 1 metro e 69 centímetros de altura, impressionara José Aurélio, que até cessara de responder às cartas de sua mulher, deixada em Recife.

O Dr. Borba advertira o seu amigo de que deveria evitar tal procedimento, o que resultou em desavença entre eles, tendo sido até agredido fisicamente.
*** ***
Decerto os pais da moça não aprovavam o namoro, mas os encontros se tornaram freqüentes. Tomados por intensa paixão, decidiram levar adiante o relacionamento, a qualquer custo, fossem quais fossem as conseqüências.
Engendrava-se na mente dos amantes uma idéia mirabolante. Fugiriam para longe.
Amália, que há poucos dias obtivera do pai o fruto da venda de uma vaca, depositou o dinheiro na mão de Aurélio. Um plano foi traçado: Amália o acompanharia em sua viagem de retorno a Recife.

Era 28 de junho, véspera de São Pedro e, também a guisa de despedida, promoveram uma festa. Fizeram um balão, soltaram, sambaram e se divertiram a valer. Para não despertar suspeitas, Amália, que à tarde pedira para assistir aos festejos de São Pedro na casa de uma tia no Sítio Quixaba, não estava presente.

Pela madrugada, encaminharam-se para o porto. O pai de Amália foi até a beira do rio despedir-se de seus hóspedes, não imaginando o que estava para acontecer. Entre a bagagem, uma grande mala de 1 metro de comprimento por 45 centímetros de altura, pertencente a José Basílio da Costa, primo de José Aurélio, que o auxiliara em tudo. Amália estava dentro. Para permitir a respiração, fizeram quatro furos na tampa e outros nas laterais. Uma garrafa de água e algumas bolachas de farinha de trigo era o que tinha Amália para se alimentar, além de duas redes e um cobertor, para se proteger do frio.

Às duas horas da madrugada embarcaram na canoa de Luiz Teixeira, com destino a Pão de Açúcar, onde tomariam a Moxotó, acompanhados ainda de Argemiro Alves da Costa Lima, primo de Amália, que tudo ignorava.

No outro dia, sentindo o velho Bezerra a falta da filha, queixou-se à polícia. O Comissário de Pão de Açúcar telegrafa para Penedo dando conta do ocorrido. Lá, o seu colega, Sr. Major Ildeffonso Costa, ficou de prontidão no porto e, com seus auxiliares, abordaram os raptores.

Amália fora encontrada bastante abatida, em estado de desmaio. Pálida, banhada de suor, a sua expressão denunciava o sofrimento por que passara, embora, segundo ela própria declarou à polícia, aceitara tal situação de modo livre.

***
Depois de interrogados em Penedo, os dois indivíduos foram transportados para Pão de Açúcar no dia 11 de julho, onde ficaram presos à espera do julgamento. A sentença, transcrita do jornal pão-de-açucarense A Idéia, saiu no dia 17 de agosto.

Um sagaz e criativo cronista do jornal “A IDÉIA”, que se ocultava sob o pseudônimo de Dom Riozinho, não deixou escapar a oportunidade de também opinar sobre o assunto:

“A MALA

Com jeito trocar sua casa pela casa do ‘sem jeito’,
Affrontando um mar de dúvidas sob temporal desfeito,
É lamentável e triste ver incauta mocinha
Abandonar-se à corrupção bestial.

Como se fere a moral,
Sem a menor cerimônia!
Como se afflige a Família, que se cobre de vergonha!
Cada um que se desponha
A se fazer respeitar, mesmo com armas na mão,
Contra taful maganão,
Que contra o pudor attenta e sobre a pureza enveste!

Este facto se reveste
De profunda gravidade,
Deixou-nos mudos, basbaques,
Abateu nossa cidade
De transcendente bondade
E de crédito firmado.

Estivesse eu em Penedo me sentiria confuso
De ver surgir a meu lado du’a mala essa patrícia,
Que buscada e rebuscada, foi por fim pela Polícia
Descoberta com malícia,
como parte da bagagem
Dos negros dessa “Borbagem”
Da “Cabeça do Cavalo”.

Ahi está o entalo
A fonte de todo mal,
No thesouro desputado
Com canceira original!!

Os negros se ‘espritaram’,
Contrariados da perda
Desse haver sob granito
Que deve ser tão bonito
Quantos os olhos tentadores
Que o fez revirar a bola
E cahirem na gaiola
Como belos passarinhos.

Que dissabor, coitadinhos!
Desenganados do haver
Desputado a rocha,viva
queriam, talvez, da Diva,
Consoladoras cantigas.

Mas o thelégrafo entriga
E fal-os perder ainda
A fortuna bem mais linda
Que o gradil de uma cadeia.

Quem pega na coisa alheia,
Ou ‘quem o alheio veste,
Na praça, dizem, o despe’.

Esperem, pois, os dous gajos
Duros effeitos da Lei,
E lhes fiquem bem lembrados
Os castellos desmanchados:
Um no-thesouro de ouro,
Na - mina menina.

Não vão chorar sua sina,
Arrastando a grande mala
Vazia como uma vala
Sem haver e... sem menina.

D. Riozinho.”

- A IDÉIA - 09/07/1911 - pg. 2.

*** *** ***

“Tendo expirado o prazo legal para o recurso necessário e sendo depois concluzo os autos ao Dr. Antônio Arecippo, Juiz de Direito da comarca, este magistrado proferiu no respectivo processo a sentença que segue, fundamentando-a e dando os motivos em que se baseara; a qual teve o theor seguinte:“Pronunciou o Dr. Promotor Público da Comarca, de José Aurélio de Lima e de José Bazílio da Costa como incursos nas penas do Art. 270, § 1º, combinado com o Art. 273, 2º, p., do Cód. Pen e 18, § 3º, do cit. Cód., por terem raptado a menor Amália Bezerra de Mello da casa de seu pae Manoel Bezerra de Mello, residente na Ilha do Ferro, deste Município, facto este que dera-se na noite de 28 de junho do corrente anno. Deposeram neste processo cinco testemunhas, na forma da Lei, tendo sido os Réos previamente qualificados e depois interrogados. Ouvido no final da formação da culpa o dr. Promotor Público, este opinou pela pronúncia dos R.R. nos termos da denúncia de fls. Duas.”“Do prezente summário, consta, à fls. 15, que o pae da menor é pessoa que está em estado de miserabilidade, conforme attestou o Commissário de Polícia em exercício, por isso não podia dar queixa a autoridade competente, quanto ao rapto de sua filha, nem tão pouco prosseguir na cauza. A fls. 16, se evidencia que a raptada é menor de 21 annos, em face da certidão do Revmº Vigário da Freguezia. O réo José Aurélio, à fls. 18, confessou o crime que praticara, auxiliado pelo seu companheiro José Bazílio, que corroborou essa confissão, à fls. 9 deste autos. A menor Amália declarára que o summariado José Bazílio sabia que o raptor José Auarélio pretendia praticar esse acto, e que o coadjuvou em tudo, ( Respostas de fls. 7 )”“E, sendo tudo visto e devidamente examinado:1º. Considerando que o Juiz julga pelo allegado e provado nos autos, inda mesmo que outra cousa lhe diga a consciência, e elle saiba que a verdade é o contrário do que no feito é provado - Ord. L. 3º, T. 66, princ.;2º. Considerando que a menor raptada é filha de pae miserável, por esse motivo teve logar a presente cauza officialmente - Cód. Pen. Art. 274, § 1º;3º. Considerando que a raptada é maior de 16 annos e menor de 21, e prestou o seu consentimento; Cód. Pen. Cit. Art. 270, § 1º , e Doc. Doc. De fls.7 V. Isto posto,4º. Considerando que os R.R. confessaram o crime perante a autoridade policial de Penedo, onde foram presos, conduzindo a raptada em uma mala, partindo de Ilha do Ferro com ella dentro da referida mala em uma canoa até esta cidade, onde, na manhã do dia 29, tomaram a lancha Moxotó com destino àquela cidade;5º. Considerando que a mala em questão pertencia ao denunciado José Bazílio, que forneceu ao summariado José Aurélio e o coadjuvou em tudo;6º. Considerando que a raptada, à fls. 7 V, declarára que o cúmplice José Bazílio já tinha pleno conhecimento do crime que havia de perpetrar o denunciado José Aurélio, e tanto isto era real que o auxiliara em tudo - cits. Respostas à fls. 7 V;7º. Considerando que a cumplicidade é o concurso accessório, ou secundário, prestado a consummação do crime - Bent. De Far, Annots. Pheoric. E Práticas ao Cód. Pen. Brazileiro, pág. 38;8º. Considerando que os R.R. confessaram o crime perpetrado ( fls. 8 e 9 cits. )e que a confissão do Réo, perante a autoridade competente, sendo livre e coincidindo com as circunstâncias do facto, prova o delicto; Cod. Do Proc. Crim. , Art. 94;9º. Considerando finalmente tudo isto e o mais que de deprehende dos prezentes autos;Por esse fundamento e mais princípios do Direito, nego provimento ao recurso ex-officialmente interposto, para pronunciar, como pronuncio, o raptor José Aurélio de Lima como incurso nas penas do Art. 270, § 1º, combinado com o Art. 273, 2º, p. do Cód. Pen e o cúmplice José Bazílio da Costa como incurso nas penas do Art. 270, § 1º, combinado com o Art. 21, § 1º e como Art. 63 do cit. Código, sujeitos à prisão e livramento na forma ordinária.“O Escrivão recomende aos réos na prisão em que se acham e lance seus nomes no rol dos culpados.”“Sendo ambos os crimes affiançáveis por não estarem contra o Art. 406 do Cód. Pen., uma vez que o máximo da pena para os summariados não é o de 4 annos de prisão, e sim o de 3 annos e 6 mezes de prisão cellular, inclusive a 6º p. para o raptor, e 2 annos de prisão cellular para o cumplece, arbitro a fiança que por elles poderá ser prestada de accordo com o Art. 7º do Dec. Nº 3.475 de 4 de Novembro de 1899, na quantia de 800$000, para o raptor, e, para o cúmplece, a quantia de 500$000, tudo conforme a tabela anexa ao citado Decreto de 1899.”“Custas afinal.”Juízo de Direito da Comarca de Pão de Assucar, em 17 de agosto de 1911.
O Juiz de Direito.
"Antônio Arecippo de Barros Teixeira.”

A NOTÍCIA DA ABOLIÇÃO


Etevaldo Amorim *

Os jornais são sempre uma boa fonte de pesquisa para quem se interessa em desvendar os segredos do passado. Simples episódios noticiados rotineiramente podem se transformar em peça chave para dirimir qualquer dúvida do pesquisador. Do mesmo modo, a narrativa pormenorizada de um fato oferece ao leitor a possibilidade de compreender melhor a história e tirar dela os melhores ensinamentos.
Assim se dá com o jornal O Trabalho, fundado em Pão de Açúcar no dia 4 de junho de 1882, por Achilles Mello e Mileto Rego. Folheando suas páginas, pode-se saber, com riqueza de detalhes, o modo como os pão-de-açucarenses ficaram sabendo da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Izabel.
Os repórteres do jornal misturavam-se à multidão que aguardava a chegada do navio naquela manhã do dia 22 de maio de 1888. Quase 10:00 horas, todos os olhares se voltam para o morro do Faria, onde o rio altera levemente o curso para a esquerda. Eis que surge o vapor Maceió, da Companhia Pernambucana, atraindo a atenção de todos, desejos de confirmar a notícia que circulava oficiosamente, inclusive por cartas procedentes de Penedo, de que a Princesa Regente havia assinado a tão esperada Lei desde o dia 13 daquele mês.
O tempo que levou o vapor para cumprir o percurso até o porto, pouco mais de quatro quilômetros, parecia uma eternidade, tal era a ansiedade dos que ali esperavam a comunicação oficial do fato político que se tornaria um dos mais importantes de todo o Século XIX no Brasil. Entre passageiros e cargas, desembarca também a mala do Correio.
Em frente à Travessa da Matriz, no local que corresponde hoje ao Iate Clube Pão de Açúcar, explodem no ar diversas girândolas, mandadas soltar pelo Juiz Municipal Dr. Luiz Gonzaga de Almeida Araújo. Pouco mais abaixo, na saída da então denominada Travessa Gutemberg (atualmente João Antônio dos Santos, mas que já se chamou João Pessoa e José da Silva Maia), mais foguetes patrocinados pelos pretos saudavam a chegada do vapor.
O foguetório, ainda que intermitente, durou até a noite. Às dezenove horas, na Casa da Câmara, que funcionava no mesmo sobrado em que se hospedou D. Pedro II em 1859, reuniram-se as autoridades judiciárias, o Presidente da Câmara e um grande número de pessoas, inclusive muitos negros, acompanhados de uma animada banda marcial.
O Presidente da Câmara, Sr. Manoel Themóteo de Amorim pediu silêncio e leu o telegrama que recebeu do Presidente da Província, Manuel Gomes Ribeiro (Barão de Traipu), que, como 1º Vice-Presidente, sucedera Antônio Caio da Silva Prado, que deixou Alagoas para presidir a Província do Ceará. A mensagem, que reproduzia Circular enviada a todas as Províncias pelo Ministro da Agricultura - Deputado Rodrigo Augusto da Silva,confirmava que fora sancionada a Lei que concedia liberdade plena a todos os escravos brasileiros. Ao terminar a leitura, irromperam em aplausos e vivas aos Deputados, à Princesa Regente e ao Ministério de 10 de Março. Esse Gabinete, o penúltimo do Império, que chefiava o Governo no Sistema Parlamentarista de então, era composto pelo Ministro da Fazenda, Senador João Alfredo Correia de Oliveira, que o presidia; pelo Deputado José Fernandes da Costa Pereira, Ministro do Império; pelo Deputado Antônio Ferreira Vianna, Ministro da Justiça; Deputado Rodrigo Augusto da Silva, Ministro da Agricultura; Senador Luiz Antônio Vieira da Silva; Senador Thomaz José Coelho de Almeida, Ministro da Guerra e Senador Antônio da Silva Prado, Ministro dos Estrangeiros.
Em meio a esta cerimônia, uma cena comovente: Havia na Câmara um quadro com os retratos do Deputado Joaquim Nabuco e do Dr. José Mariano. Um dos pretos quis saber quem eram e, quando lhe disseram que eram os dois famosos abolicionistas pernambucanos, ajoelhou-se diante do quadro e, na sua linguagem rude, agradeceu-lhes o benefício que fizeram a ele e a todos os que há pouco viviam sob o jugo da escravidão.
Dali saíram todos em passeata a percorrer as ruas da cidade. Muitas casas reforçavam a iluminação demonstrando regozijo e apoio à manifestação, enquanto outras permaneciam em penumbra, evidenciando franca oposição.
Em frente ao sobrado onde morava o Dr. Jovino da Luz, uma pequena parada para ouvir dele uma bela poesia. Este foi um dos mais importantes intelectuais de Pão de Açúcar. Na época com trinta e três anos, além de poeta, já era doutor em Filosofia pela Universidade Gregoriana de Roma. Logo depois o cortejo pára em frente à casa do Dr. Francisco José da Silva Porto, digno Juiz de Direito da Comarca, ele que fora nomeado em 18 de junho de 1883 pelo Presidente da Província Dr. Euthíquio Carlos de Carvalho Gama. Ouviram dele um eloqüente discurso que terminou dando vivas à Princesa Regente, aos Conselheiros Dantas e João Alfredo e a Joaquim Nabuco.
Entrando pela Travessa da Matriz (hoje Rua Padre José Soares Pinto), outra parada para ouvir a fala do Juiz Municipal, que fez uma retrospectiva da luta abolicionista iniciada em 1830 com a proibição do tráfico negreiro. Depois de percorrer outras artérias da jovem cidade (Pão de Açúcar fora guinada a essa condição em 1877), a passeata seguiu pela Rua do Comércio (hoje Av. Bráulio Cavalcante) para ouvir mais um discurso, desta vez do Capitão João Alves Feitosa Franco.
Por fim, em frente à redação do jornal O Trabalho, na Travessa Gutemberg nº 12-A, ouviu-se novo discurso do Juiz Municipal Dr. Gonzaga Araújo, que ressaltou o papel da imprensa na luta contra a escravidão. Foram então lembrados os nomes de Joaquim Nabuco, Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio e outros. Falou ainda o Professor Soares de Mello, assegurando que a verdadeira liberdade da Nação brasileira se conquistava naquela data, pois que se tornavam todos os homens iguais perante a Lei.
Dali foram todos para a Rua da Praia (Av. Ferreira de Novaes) onde se concentravam os festejos dos pretos. Deram vivas ao Imperador, à Princesa Regente, ao Gabinete de 10 de Março e aos abolicionistas de um modo geral. Os negros, como que para retribuir o apoio das autoridades e de todos os partidários da sua causa, ofereceram-lhes um bem preparado chá, de que todos compartilharam com incontida satisfação.
Já passava das dez horas da noite quanto terminou essa pequena cerimônia. Então os libertos, e somente eles, começaram a tradicional dança do Côco, que demorou até as cinco da manhã.
O jornal também noticia, por seu correspondente, o reflexo da boa nova em Traipu. Naquela vila, que logo se tornaria cidade, havia apenas quarenta e um escravos. Mesmo assim, sabedores de que estava sendo discutido o Projeto que culminaria na Lei Áurea, retiraram-nos para fora da vila, tencionando mantê-los por mais tempo sob seu domínio.
Recebida a notícia oficial da promulgação da Lei de 13 de Maio, o Juiz Municipal Dr. Miguel de Novaes Mello, que viria a ser, em 1892, o primeiro Prefeito de Pão de Açúcar, tratou de divulgá-la a todos os habitantes de sua jurisdição.
A exemplo do que ocorreu em Pão de Açúcar, os abolicionistas locais organizaram uma passeata, com banda de música e cerca de seiscentas pessoas. Durante a caminhada, alguns discursos: do Dr. Juiz de Direito da Comarca, além dos doutores Manoel Leopoldino Pereira Netto, Octaviano Rodrigues de Carvalho, Florentino de Barros Abreu e Araújo Jorge; do Capitão Mariano Joaquim Cavalcante e do Alferes Manoel Firmino Menezes Mattos.
Ao passar pela casa do Capitão Henrique Méro, a passeata, com a bandeira imperial à frente, foi saudada por uma salva de vinte e um tiros. Todos pararam para ouvi-lo.
Tal como fizeram os negros e abolicionistas destas duas pequenas localidades alagoanas, muitas outras, em todos os recantos do País, festejaram com todo o entusiasmo a libertação total dos escravos. E levaram dias e dias, pela dificuldade de comunicação. Como vimos, só nove dias depois se soube, de forma oficial, da assinatura da Lei. A rigor, demorou mais tempo do que a própria tramitação do Projeto no Congresso: três dias no Senado e dois dias na Câmara. O próprio Vice-Presidente Manoel Gomes Ribeiro, em relatório à Assembléia Provincial - relata:
“Este memorável acontecimento foi recebido em quase todos os pontos da Província com as maiores expansões de júbilo, tocando ao delírio o regozijo popular nesta capital, onde durante oito dias não cessaram as manifestações de contentamento, sendo sempre entusiasticamente saudados o Imperador, a augusta Princesa Imperial Regente, o Ministério e os mais salientes propugnadores da abolição.
Cabendo-me a gloriosa tarefa de pôr em execução na Província a áurea Lei, apenas tive conhecimento oficial de sua promulgação, dirigi-me por ofício ao Juiz de Direito e Câmara da Capital e por telegrama aos Juízes e Municipalidades das demais comarcas para que tivesse ela imediata publicidade e produzisse logo seus humanitários efeitos.
Assim, em toda a Província, conforme os intuitos da Lei, entraram sem grande demora na comunhão dos cidadãos brasileiros os 15.269 indivíduos que, em face da nova matrícula, ainda permaneciam em lastimável cativeiro.”
Alegra-nos saber que a sociedade brasileira (e alagoana, em particular) soube comemorar condignamente um fato de tamanha magnitude. A Lei 3.353, de 13 de maio de 1888 pôs fim a um período vergonhoso da história do Brasil. Com ela puderam obter a liberdade cerca de 720 mil escravos em todo o País. As conseqüências, seja do ponto de vista social, seja sob o aspecto econômico são dignas de estudo e de reflexão. Mas, esse já é outro assunto.

(*) É autor do livro Terra do Sol, Espelho da Lua. Este artigo foi publicado no caderno Saber do jornal Gazeta de Alagoas em 03 de maio de 2008.

Pão de Açúcar, 1888. Fotos: Adolpho Lindemann.

COLEÇAO PRINCESA ISABEL: FOTOGRAFIA DO SECULO XIX

Bia Correa do Lago, Pedro Correa do Lago

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia