domingo, 24 de fevereiro de 2013

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA, por Etevaldo Amorim

Manoel Joaquim era um senhor que morava em frente a nossa casa, no pequeno povoado de Limoeiro, município de Pão de Açúcar. A cabeça encanecida revelava avançados anos em sua vida de muito trabalho e sacrifícios. Carpinteiro por ofício e agricultor por necessidade, estava em seu segundo casamento, cujos filhos mais novos eram mais ou menos da minha idade. Na sua oficina, instalada na própria residência, eu passava horas e mais horas a observá-lo na prática da sua arte. Muitas vezes os meninos o ajudavam em alguma tarefa. Naquele tempo as crianças, enquanto não estavam na escola, ajudavam os pais nos trabalhos da família. Nesse caso, em particular, por vezes via os meninos de seu Manoel ajudá-lo em alguma tarefa mais leve. Como naquele dia em que, para serrar ao meio uma enorme tora de madeira, contava com o apoio de um dos seus filhos. Apoiando o pau sobre um cavalete, seu Manoel manobrava a enorme serra na parte superior. Em baixo, Luiz segurava a outra extremidade, apenas aprumando o corte sobre a linha traçada a lápis. Eu e outras crianças, por volta dos nossos oito ou dez anos, ficávamos a observar o pó de serra cair sobre o chão de tijolo batido na enorme sala de visitas. Seu Manoel, de vez em quando nos explicava um ou outro detalhe daquele trabalho. Em dado momento, enquanto nos via apalpar aquele pó de serra que precipitava a cada golpe dado sobre a madeira, comentou:

— Estão vendo, meninos, esse pó de serra aí? Muitas vezes, na Seca de 32, tive que comer isso porque não tinha dinheiro prá comprar farinha.

Por um instante paramos, estarrecidos. Seu Manoel falava da maior de todas as Secas vividas pelos nordestinos no Século XX. Pior do que aquela, só a Seca de 77, ainda no Século XIX.

Minha memória me leva a outro episódio. Eu e um de seus filhos estávamos brincando quando, de repente, seu Manoel insurgiu na pequena sala. Tinha o semblante grave e ameaçador. Dirigiu-se ao filho em voz alta, alegando ter tomado conhecimento de que o mesmo cometera algum malfeito, coisa séria, que ele não tolerava e que, para tanto, lhe daria o merecido castigo. De súbito, deixamos os brinquedos e nos voltamos para ele. O menino olhava para o pai aterrorizado. Nos olhos a expressão de medo. O pai prosseguia no ritual atemorizante: levou as mãos à cintura, desafivelando a velha cinta de couro cru. Quando já se dispunha a executar a sentença, num gesto desesperado, postei-me entre eles e supliquei:

— Seu Manoel, não bate nele não...

 E o fiz sem qualquer esperança de ser atendido. Afinal, os pais daquele tempo recorriam a esses métodos com frequência com a maior naturalidade. Mas, qual não foi a minha surpresa quando, tocado pelas minhas palavras de menino e por um sentimento que eu, naquela idade não podia discernir, vi-o baixar a mão que ameaçava o meu colega e, soltando-o, anunciou:

— Hoje você escapa! Só não vou te dar uma surra daquelas porque seu amigo me pediu.

Deu de costas e saiu rapidamente. Refeitos do susto, logo voltamos à nossa brincadeira. 

 *** *** *** 

 Hoje, refletindo sobre aquele gesto, fico impressionado de como aquele homem rude, de hábitos tão conservadores, tenha tido uma atitude daquelas. Convenço-me de que ele o fizera não pelo simples fato de lhe ter pedido. Afinal, ele não devia qualquer satisfação a um pirralho como eu. Tendo mais a acreditar que evitou castigar o filho na minha presença para não constrangê-lo. Bater no filho para impor a sua autoridade de pai era uma coisa; surrá-lo diante de um parceiro de brincadeiras era outra.

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

PUBLICAÇÕES
Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia