PÁGINAS

sábado, 23 de novembro de 2019

COROGRAFIA DE ALAGOAS - PÃO DE AÇÚCAR


Moreno Brandão[i]
Anquilosada numa inércia que lhe tolheu os surtos como a ave das lendas indianas que não podia voar malgrado as cem asas de que era dotada, Pão de Açúcar, depois de exibir tendências progressivas, nada tem evoluído. Mesmo assim, nada perdeu de seu primitivo aspecto pinturesco. Pelo contrário. É uma das cidades mais lindas do Estado.
O seu solo é em geral plano e sem ondulações. Quem aí desembarca contempla em primeiro lugar um plano extenso de areias fulvas que formam, no rumo do poente, uma enormidade de dunas e medões, as quais, embora uma vez afastadas mediante um trabalho que não teve seu natural complemento, vai rapidamente ocupando a área edificada e submergindo as casas. Depois se segue uma larga avenida muito bem arborizada de tamarineiros melancólicos e flamboyants, que blasonam cores vivazes.

Av. Bráulio Cavalcante. A Matriz e os “tamarineiros melancólicos”


Ao centro da avenida que tem o nome de Bráulio Cavalcante, fica a matriz, um templo modesto, sem beleza arquitetônica. Foi ereta em substituição a uma capela que no mesmo local existia, a qual foi construída por iniciativa popular suscitada por Antônio Manoel das Dores, sendo posteriormente (sob a direção do Padre Antônio Plácido de Souza, vigário de Ingazeira, emigrado de sua Paróquia na vigência da Seca de 1846) completamente remodelada, adquirindo maiores proporções.

Não obstante, a atual Matriz de Pão de Açúcar assumiu a sua feição atual em 1877, quando o missionário capuchinho Frei Cassiano de Comacchio[ii] a ampliou, erigindo-lhe torres e pondo-lhe um coro.




A ela, posteriormente, acrescentaram o corredor do lado do Nascente. A ornamentação interna do templo é pobre: três alteres, que contém alguns oratórios. No centro, no Altar-mor, depara-se o Sagrado Coração de Jesus, ladeado por Nossa Senhora do Socorro e Nossa Senhora do Rosário. Entre as colunas, estão os nichos do Espírito Santo (lado do Evangelho) e de São Sebastião (lado da Epístola).
Interior da Matriz. Ao fundo o Altar-Mor, tendo ao centro a imagem do Sagrado Coração
 de Jesus,  ladeada pelas de Nossa Senhora do Socorro e Nossa Senhora do Rosário.
São os altares laterais destinados a Nossa Senhora das Dores e o outro ao Senhor dos Passos. Não existe no interior da igreja obra alguma de valor artístico, sendo o conspecto do templo indício da pobreza da população.


Ao Norte da Matriz está o açougue, um dos melhores do Estado, mantido sempre com relativo asseio. Quase na extremidade oriental da Avenida Bráulio Cavalcante, fica o Paço da Intendência, edifício adaptado ao mister que hoje tem.
No término da predita e vastíssima artéria fica a Casa de Detenção (a Oeste), concluída e inaugurada a 7 de janeiro de 1911, na administração do Dr. Euclides Malta. Este edifício rememora a calamitosa estiagem de 1877 quando, para socorrer os imigrantes vindos de vários pontos do Sertão dos Estados limítrofes, o Juiz de Direito Dr. Alfredo Montezuma de Oliveira[iii] teve a feliz ideia de aproveitas as somas enviadas para a sustentação dos flagelados iniciando a construção do citado próprio estadual. Paralisadas por muito tempo as obras dessa cadeia, quando, na vigência da República, sobreveio nossa seca, tiveram elas, governando o Coronel Pedro Paulino da Fonseca, o pequeno impulso que lhes poderia provir da insignificante verba de 2:500$ destinada por aquele governador para atenuar o tremendo infortúnio coletivo.
A Cadeia Pública durante a grande Cheia de 1919.


Seguindo sempre para Oeste, encontra-se, posta sobre a barra da Lagoa da Porta, uma ponte que foi erigida em 1877, sob o benigno influxo do mesmo religioso Frei Cassiano de Comacchio. Além da ponte, para os lados do Noroeste, num vale soturno e umbroso, fica o cemitério público, para o qual a munificência do Imperador, quando esteve em Pão de Açúcar em 1859, deixou a quantia de 700$. Esse próprio municipal foi construído muitos anos depois em terreno doado pelo Major Manoel Caetano de Aguiar Brandão.[iv]
Ao Oriente do cemitério, e além da Lagoa da Porta, insurge-se do solo o morro do Humaitá, vasto amontoado de pedrouços brancacentos, um dos quais, a Pedra da Paciência, é um verdadeiro logradouro público. Ali todas as tardes se reúnem, em grande número, vários passeantes que abrangem com a vista toda a magnificência panorâmica de uma cidade singular e bizarra.
Morro do Humaitá em foto de Edigar de C. Falcão, 1939.

Daquele píncaro de altitude mesquinha, contempla-se ao longe, na Praça do Bonfim, a capelinha desta denominação. Modestíssima, a ermida do Bonfim é deliciosamente sugestiva. À Rua Dom Antônio Brandão divisa-se também o Politeama Goulart de Andrade, um teatrinho quase miniaturesco, inaugurado em 1910.
Enfim, toda a cidade com suas largas ruas simétricas é alcançada do Alto do Humaitá, causando sempre reconfortante impressão. É, porém, nas épocas das enchentes do São Francisco que o panorama se torna mais golpeante por oferecer novas perspectivas. Transforma-se então a cidade numa península, cujo istmo é a Tapaginha.


Vista do Alto Humaitá.

Igreja do Bonfim durante a grande Cheia de 1919.

Afora a Pedra da Paciência e os pontos já citados, tem a cidade um morro de forma cônica, onde se erige o cruzeiro comemorativo da transição do Século 19 para o Século 20.
No meio de tantas belezas, acrescidas de tantos recursos, mora uma população inteligente, mas paupérrima, sustentada quase pelos produtos da lavoura que pratica nas lagoas adjacentes e por uma indústria que ainda não teve um surto apreciável de expansão. Essa indústria é, por isso mesmo, rudimentar, constituindo-se no preparo de vinhos de frutas; no curtimento de couros; trabalhos se selaria; correaria; sapataria; tamancaria; artefatos de chifres e ossos; cordoalha e tecidos grosseiros, além de primorosas rendas que sempre alcançam bons preços.
Morro do Cavalete em 1939. Foto Edigar de C. Falcão.

As classes proletárias não se entregam somente a esses misteres; ocupam-se também do preparo de tijolos e telhas e na exploração de caieiras, que dão cal branquíssima. Mas a indústria principal dos moradores da cidade e de todo o município é a pastoril rotineiramente exercitada.
A prova da capacidade intelectual dos pão-de-açucarenses vamos encontrá-la principalmente no fato de ali haver sempre existido jornalismo. Eis a lista dos jornais surgidos na linda cidade:
Jornal do Pão de Açúcar (1874); O Paulo Afonso (18__); O Horizonte (1880); O Trabalho (1882); A Palavra (1889); O Juvenil (1892); A Verdade (1893); O Sertanejo (1895); A Força (1895); O Espião (1896); Microcosmo (1896); O Social (1897); A Voz do Sertão (1906); A Ideia (1910); O Popular (1912); O Relâmpago (19__).
Maceió, 28 de setembro de 1920. Moreno Brandão.



[i] Extraído da Coluna Estudos e Opiniões, Diário de Pernambuco, 3 de outubro de 1920, p. 2. Francisco Henrique Moreno Brandão nasceu em Pão de açúcar, a 14/09/1875 e faleceu em Maceió, a 27/08/1938.
[ii] Procedente da Província de Bolonha, Itália, chegou ao Recife em abril de 1872, onde faleceu,em 1897
[iii] Natural do Pará, formou-se pela Faculdade de Direito do Recife e 1863. Faleceu em Pão de Açúcar a 20/06/1881.
[iv] Natural de Mata Grande. Faleceu em Pão de Açúcar, aos 72 anos de idade, no dia 11 de janeiro de 1890. Era tio de Moreno Brandão por parte de pai e avô por parte de mãe. É que o pai de Moreno Brandão (Dr. Félix Moreno Brandão) casou-se com a sobrinha Maria de Aguiar Moreno Brandão.

sábado, 18 de maio de 2019

MESTRE MINERVINO E A CANOA “SERGIPANA”

Por Etevaldo Amorim
O processo evolutivo da navegação no Sub-Médio São Francisco se deu lentamente e atingiu o seu ápice sob a influência do curso baixo do rio. Desde a primitiva canoa indígena, feita de “um pau só”, surgiu, por volta de 1823, um tipo peculiar de embarcação a que se chamava “Ema” ou “Tapa-de-gato”. Eram grandes barcas, impulsionadas por varas que mediam de seis a sete metros de comprimento, operadas por cerca de quinze remeiros, que as empurravam com os ombros.
Barca do tipo "Ema" ou "Tapa de Gato". Foto: Reginald Gorhan, 1927.
Era à custa desse enorme sacrifício que se realizava o transporte de cargas entre Juazeiro (BA) e Januária (MG), até o início da década de 1940. Nessas demoradas viagens, chegavam a até a criar animais dentro das próprias barcas, para deles se alimentarem enquanto estivessem a bordo.
O modo de navegar, e mesmo as técnicas de construção e de manejo das embarcações, conferiam aos navegadores do Baixo São Francisco uma notável superioridade em relação aos seus colegas do “rio de cima”. Essa vantagem tecnológica se deveu, provavelmente, à proximidade do oceano, notadamente pelo acesso dos mais variados tipos de embarcação ao porto de Penedo.
A canoa Vanderlita, de Joãozinho Rodrigues, Bonsucesso)SE)

As inovações e o aprimoramento não tardariam a chegar ao curso Médio do rio. Entretanto, talvez demorasse muito mais, não fosse a visão empreendedora de Manoel Vieira Rocha[i], um industrial estabelecido em Propriá no ramo de beneficiamento de arroz e algodão. Pretendendo mudar-se para Juazeiro, levou consigo a ideia de introduzir a nossa tão famosa “canoa de tolda”.
Pondo em prática o seu intento, “Nozinho Rocha”, como era conhecido, contratou, por 9 Contos de Réis, o renomado “mestre” Minervino[ii], que lhe deveria construir uma canoa com capacidade para 300 sacos (sacos de 60 kg = 18.000 kg). Posteriormente, essa capacidade foi aumentada para 400 sacos (24.000 kg) e a quantia para 11 Contos de Réis.
Manoel Vieira Rocha - Nozinho Rocha

No dia 25 de maio de 1944, uma quarta-feira, às cinco horas da manhã, “Mestre Minervino” e seus filhos José, Pedro e Álisson, partiram de Propriá com destino a juazeiro, no Estado da Bahia.
Daí em diante, a abordo do São Francisco, um vapor propulsado por roda traseira, já em companhia de um irmão do contratante, Agripino Rocha, viajaram seis dias e quatro noites, percorrendo 140 léguas (840 km) até chegaram a um lugar denominado Sítio do Mato, acima do qual se encontra e embocadura do rio Corrente[iii]. Seguiram a pé por cerca de 13 léguas, até conseguirem montarias e cumprirem as 7 léguas que faltavam para chegar a Santa Maria da Vitória, o que veio a acontecer às 11 horas de uma bela manhã de sábado.
Mestre Minervino, construtor naval.

Nozinho Rocha não falou a verdade. Havia informado que a distância de Juazeiro a Santa Maria da Vitória não ia além de 30 léguas, talvez receoso de que, sabendo a distância certa – 140 léguas, “Mestre Minervino” jamais aceitasse pôr os pés naquele fim-de-mundo.
O rio Contente, em Santa Maria da Vitória-BA. Foto: O Malho
Ano XXXII, nº 14-07/09/1033.
O ardil do contratante deu resultado. Já estando em plena viagem, não havia outro jeito senão continuar a jornada em busca da madeira abundante e de boa qualidade, razão maior de tamanho sacrifício.
Ao chegarem, procuraram alugar uma casa e, à noite, ficaram a pensar prá que lado ficaria Propriá... Inicialmente tomados por “retirantes”, já no domingo espalhou-se a notícia de que, em Santa Maria, haviam chegado uns “engenheiros”...
Já em junho, puseram-se a trabalhar na retirada da madeira. Depois, a espera para secar, a feitura das tábuas, a montagem do estaleiro e, enfim, a obra.
Mestre Minervino diante da sua obra: a canoa "Sergipana"
no estaleiro, em Santa Maria da Vitória - BA.
Sete meses haviam passado. Finalmente, no dia 18 de dezembro de 1944, estava pronta a canoa de “seu Nozinho Rocha”, que se constituiria num marco da navegação no Médio São Francisco. Associada a ela, o talento de um legítimo limoeirense, que ainda retornaria ao “rio de cima” para construir a lancha “Nova Olinda”.
A lancha Nova Olinda, construída por Mestre Minervino em Juazeiro-BA.
Mestre Minervino e seus discípulos conduziam a Sergipana com exímia maestria pelo rio Corrente. Os ventos fracos e mal direcionados muitas vezes dificultavam a viagem nos seus 80 metros de largura, em média. Só quando atingiram as águas do São Francisco, puseram-se a bordejar[iv], serpenteando rio abaixo, aproveitando o vento forte, outrora um obstáculo para os bravos canoeiros.
Sob enorme expectativa, chegaram a Juazeiro no dia 3 de janeiro de 1945[v]. No porto, as apostas se sucediam. Muitos não acreditavam que se pudesse navegar assim, sem que se recorresse aos antigos remos, recurso extenuante e já em desuso no bairro São Francisco. Tudo era novidade. Quando ao “virar o bordo”, o piloto abaixou a tábua de bolina, um baiano gritou assustado:
- Ô moço, caiu um trem aqui dentro d´água!!!!!
_________
NOTA:
Este artigo é uma adaptação do capítulo Fazendo Escola, do livro Terra do Sol – Espelho da Lua, de minha autoria, publicado em 2004, feito a partir do relato de Pedro Amorim durante uma de suas visitas a minha casa em Pão de Açúcar.
Pedro Amorim, radicado em Propriá, era um dos ajudantes do pai, Minervino Tavares Amorim (meu tio-avô paterno), junto com seus irmãos José e Álisson (conhecido por Agiso) nessa empreitada para a construção da canoa Sergipana.
Os filhos do Mestre se dedicaram à mesma atividade, inclusive Agenor, que não o acompanhou na viagem para poder ficar tomando conta da mãe e das irmãs que ficaram em Propriá. A exceção foi Álisson, que se tornou funcionário do antigo SESP.
Joãozinho Rodrigues, proprietário da canoa Vanderlita (aqui exibida) era também primo do meu pai (Agnelo Tavares Amorim), por parte de mãe.
José Amorim.

Álisson Amorim, conhecido por Agiso.
Pedro Amorim


[i] Manoel Vieira Rocha nasceu em Amparo do São Francisco.  Casado com Alice Santana, Cícero Simões, seu genro. Sérgio Simões seu neto.
[ii] Minervino Tavares Amorim, natural de Limoeiro (Município de Pão de Açúcar-AL). Nasceu no dia 5 de abril de 1894, filho de Pedro José de Amorim e de Maria das Dores Lima de Amorim. Casado com Maria Verdulina de Amorim (Dona Vida).
[iii] Um dos principais afluentes do São Francisco, tem uma extensão de aproximadamente 120 km, desde a confluência dos seus formadores (os rios Formoso e Correntina, ou Rio das Éguas), localizada 7 km a montante de Santa Maria da Vitória-BA.
[iv] Modo de navegar rio abaixo e contra o vento, calçando-se a verga até formar um ângulo de aproximadamente 45º com o sentido longitudinal da embarcação. Em zigue-zague, chega-se a quase tocar, ora numa margem oura noutra, baixando-se alternadamente a tábua de bolina.
[v]Informação de Pedro Amorim, filho do Mestre Minervino.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

COMANDANTE SATURNINO – UM ALAGOANO NA 1ª GUERRA MUNDIAL


Por Etevaldo Amorim
O primeiro grande conflito de caráter mundial, ocorrido entre 1914 e 1918, inicialmente referido como “A Guerra Europeia”, e que se tornaria conhecido (até o advento da II Guerra Mundial), como “A Grande Guerra” ou “A Guerra das Guerras”, começou a tomar contornos decisivos no ano de 1917.
O Comandante Saturnino Furtado de Mendonça.
Os Estados Unidos da América eram os principais fornecedores de alimentos e armas para a França e Inglaterra (integrantes da Tríplice Entente, ao lado do Império Russo). Além disso, havia grandes investimentos e empréstimos de bancos norte-americanos àqueles países. Era do seu maior interesse, portanto, que a Entente saísse vencedora no seu confronto com os países da Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro).
Entretanto, a 31 de janeiro de 1917, a Alemanha anuncia o começo da guerra submarina para inicia-la efetivamente no dia seguinte, levando a efeito um bloqueio naval no intuito de impedir o suprimento de gêneros para os países com os quais estava em conflito. Essa atitude desencadeou uma série de acontecimentos:
No dia 3 de fevereiro, os Estados Unidos rompem relações diplomáticas com a Alemanha.
Durante os três primeiros anos da Guerra, o Brasil permaneceu neutro. Essa posição, respaldada na Convenção de Haia (1907), tinha por objetivo não prejudicar as exportações brasileiras, principalmente do café.
No dia 7 de fevereiro, ante o anúncio do Governo alemão, o Governo Brasileiro se manifesta, encaminhando, através da nossa Representação em Berlim, uma Nota em que conclui dizendo:

“Por isso o Governo Brasileiro, não obstante o seu sincero e vivo desejo de evitar divergências com as nações amigas, ora em luta armada, sente-se no dever de protestar contra esse bloqueio, como efetivamente protesta e, em consequência disso, de deixar ao governo imperial alemão a responsabilidade de todos aqueles casos que se derem com cidadãos, mercadorias e navios brasileiros, desde que se verifique a postergação dos princípios reconhecidos do direito internacional ou atos convencionais em que o Brasil e a Alemanha sejam partes”.[i]

Rui Barbosa, um entusiasta em defesa da tomada de posição do Brasil na guerra, se manifesta dizendo que a Nota Brasileira se tratava de um simples e tímido protesto. Disse ele ao jornal carioca A NOITE, edição de 10 de fevereiro de 1917:

“... a Nota é meramente um protesto, cujo objetivo declarado se resume a notificar a Alemanha de que, se cumprir o que ameaça, será ela a responsável pelos seus atos. Ora, não era necessário uma declaração do Brasil para se saber que a Alemanha é responsável pelos atos da Alemanha. A Nota não contém mais nada.”

Ignorando a “Nota”, os alemães torpedeiam, a 4 de abril, o navio brasileiro Paraná, na costa da França. Dois dias depois, os Estados Unidos declaram guerra à Alemanha. No dia seguinte foi a vez de Cuba e Panamá.
Apenas alguns dias depois, a 11 de abril, o Brasil rompe relações diplomáticas com a Alemanha.
No dia 20 de maio, outro navio brasileiro, o Tijuca, foi torpedeado perto da costa francesa por submarino alemão.
Nos meses seguintes o Brasil confiscou, a título de “indenização de guerra”, 42 navios alemães que se achavam em nossos portos, e os incorporou à frota do Lloyd Brasileiro.
Dando prosseguimento a sua escalada, a Alemanha volta a atacar um navio brasileiro. A 22 de maio de 1917, o “Lapa” foi atingido por três tiros de canhão disparados por um submarino. O cônsul brasileiro em Cádiz, Sr. Matheus Albuquerque, alagoano de Porto Calvo, prestou apoio às vítimas e conduziu inquérito para apurar caso.
Importante reunião é convocada pelo Presidente Wenceslau Brás, tendo como pauta a discussão da neutralidade brasileira na guerra.
Palácio do Catete, 27/05/2017. Reunião para discutir a neutralidade brasileira. Da esquerda para a direita: Nilo Peçanha, Rui Barbosa, o Presidente Wenceslau Brás, Rodrigues Alves e o Vice-Presidente Urbano Santos. Foto: Fon-Fon.
Um dos navios alemães confiscados pelo Brasil, o “Palatia”, rebatizado com o nome de “MACAU”, chega ao porto do Rio de Janeiro no dia 7 de setembro de 1917, procedente de Santos-SP, onde recebera reparos. A 17 de setembro, segue para a França, com carregamento de 92.000 sacos, sendo 52.000 de café e 40.000 de feijão e outros cereais apanhados no porto do Rio de Janeiro. Tentaria romper o bloqueio alemão, a exemplo do que já conseguira os vapores Jacuhy e Corcovado. Para tanto, o Lloyd Brasileiro fez um seguro de 100 mil libras junto ao Lloyd Belga.


O vapor Macau, ex-alemão Palatia.
Fabricado em 1912, e com tonelagem de 3.557, o navio possuía excelentes camarotes para a oficialidade e confortáveis alojamentos para toda a tripulação. Prestava-se muito bem à temerária travessia até o porto de Havre, França, para onde seguia com “carta de prego”. Essa é uma expressão utilizada para definir “carta fechada, contendo instruções secretas, as quais só devem ser conhecidas em determinadas circunstâncias e em determinado local.”.
Para essa arrojada empreitada, o Lloyd convocou um experimentado Comandante, o Capitão Saturnino de Mendonça, cuja nomeação aconteceu no dia 1º de agosto.
Já em 1889, ele morava no Rio de Janeiro e frequentava o Curso de Náutica do Lyceo Literário Português, uma Instituição de Ensino filantrópica, sem fins lucrativos, fundada por imigrantes portugueses.[ii]
Iniciou sua carreira no Lloyd Brasileiro a 10 de agosto de 1890, como 2º piloto do paquete “Alagoas”, desembarcando a 25 de março de 1894. A 26 de março de 1894, foi transferido para o “Porto Alegre”.
Exerceu o cargo de Prático da Associação de Praticagem do Porto de Vitória-ES, de que foi exonerado em 1899[iii]
Trabalhou também no paquete “Rio de Janeiro”; no “Meteoro”, “Brasil”, “Vênus”, “Itapemirim”, “Satélite”, “Guajará” e “Ibiapaba, onde passou oito anos”. O último navio que comandou foi o “Monte Moreno”, de propriedade do Sr. Antenor Guimarães, do qual saiu em virtude de doença de sua esposa.
No dia 18 de outubro, na altura do golfo de Biscaia, na costa espanhola, o a tripulação do Macau percebeu que estava sendo seguido por dois submarinos alemães. Relatos de sobreviventes, feito a repórteres do jornal A Razão (19/12/2917), dão bem a ideia do que se passou:
“No dia 18 de outubro, às 5:20 h da tarde, quando navegávamos a cerca de 250 milhas  do cabo Finisterra, surpreendeu-nos o estrondo tremendo de um torpedo rebentando de encontro ao nosso navio, a meia não, do lado de bombordo. O navio adernou logo desse lado, o que causou a morte de dois infelizes companheiros nossos, um carvoeiro e um foguista, que estavam tirando carvão e ficaram subterrados debaixo da hulha.”
Recebendo ordem de parar, o comando do navio brasileiro obedeceu. O Comandante de um dos submersíveis, acompanhado de alguns oficiais, subiu a bordo e exigiu que a tripulação abandonasse o navio, que seria bombardeado.
Já acomodados nas diversas baleeiras, a tripulação pode distinguir o submersível, cor cinza, ostentando o número U-93. Na ponte se achava o comandante que, pedindo para que se aproximassem, perguntou:
“El Capitán?”
- Soi yo!,”, respondeu o Comandante Saturnino, pondo-se de pé.
- Venga...
O bote encostou no submarino e o Comandante subiu, seguido do taifeiro Arlindo Dias dos Santos que, julgando tivesse o alemão mandado subir toda a equipagem, o acompanhou. Nunca mais se teve notícias de ambos...
Depois disso, o submarino afastou-se e disparou 12 tiros até afundá-lo. Isso se deu a 46º de latitude Norte e 11 de longitude de Greenwiche, às 5 horas da tarde, de 22 para 23 de outubro de 1917, sem prévio aviso.[iv]
Nas principais cidades brasileiras levantaram-se protestos contra o torpedeamento do Macau. Em Maceió, a 28 de outubro de 1917[v], aconteceu um grande Ato, em que discursaram os jornalistas Guedes de Miranda, Aurino Maciel e Rodrigues de Melo. Após as manifestações, saíram em passeata pelas ruas da cidade, visitando as redações dos jornais Diário do Povo, Correio da Tarde e Jornal de Alagoas.
MENSAGEM DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA AO CONGRESSO NACIONAL[vi]
“Senhores Membros do Congresso Nacional,
Cumpro o penoso dever de comunicar ao Congresso Nacional que, por telegramas de Londres e de Madri, o Governo acaba de saber que foi torpedeado, por um submarino alemão, o navio brasileiro “Macau”, e que está preso o deu comandante.
A circunstância de ser este o quarto navio nosso posto a pique por forças navais alemãs é por si mesma grave, mas esta gravidade sobre de ponto com a prisão do comandante brasileiro.
Não há como, Senhores Membros do Congresso Nacional, iludir a situação ou deixar de constatar, já agora, o estado de guerra que nos é imposto pela Alemanha.
A prudência com que temos agido não exclui, antes nos dá a precisa autoridade, mantendo ilesa a dignidade da Nação, para aceitar os fatos como eles são e aconselhar represálias de franca beligerância.
Se o Congresso Nacional, em sua alta sabedoria, não resolver o contrário, o Governo mandará ocupar o navio de guerra alemão que está ancorado no porto da Bahia, fazendo prender a sua guarnição, e decretará a internação militar das equipagens dos navios mercantes de que nos utilizamos.
Parece chegado o momento, Senhores Membros do Congresso Nacional, de caracterizar na lei a posição de defensiva que nos têm determinado os acontecimentos, fortalecendo os aparelhos de resistência nacional e completando a evolução da nossa política externa, à altura das agressões que vier a sofrer o Brasil.
Palácio da Presidência, Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1917.
Wenceslau Brás Pereira Gomes.”


Deputados apreciam Mensagem do Governo proponto o Estado
de Guerra. Foto: Fon-Fon.

O Senado apreciando a Mensagem de Estado de Guerra contra
a Alemanha. O Senador Ruy Barbosa discursa. Foto: Fon-Fon.
Grande aglomeração em frente ao Senado, aguardando a decisão
acerta da Declaração de  Estado de Guerra. Foto: O Malho.


Finalmente, ante a forte pressão popular, o Brasil declara guerra à Alemanha no dia 4 de novembro de 1917.

O Presidente Wenceslau Brás assina o Decreto. De pé, a seu lado, o Ministro das Relações Exteriores, Nilo Peçanha. À esquerda, o Vice-Presidente Urbano Santos. À direita, Delfim Moreira e Arthur Bernardes, Governador (então chamado Presidente) do Estado de Minas Gerais, e Arthur Bernardes, Deputado Federal pelo mesmo Estado. Foto: Fon-Fon, RJ, 03/11/2917.

Vapor Paraná, da Companhia Comércio e Navegação,
aqui no cais de Christiania, Noruega, torpedeado nas
 proximidades de Cherburgo (Normandia-França).
Em destaque o seu comandante, Cap. José da Silva Peixe.
 Foto: Fon-Fon, RJ, 14/04/1917.
O Vapor Tijuca, aqui no porto de Nova York, Foi torpedeado 
nas costas da Bretanha a 20/05/2017. Em destaque o seu comandante,
 Sr. Carlos Antônio Duarte. Foto: Fon-Fon, RJ, 26/05/1917.
Vapor Lapa, torpedeado a 200 milhas do porto de Cádiz. Foto: Fon-Fon, RJ, 02/06/1917.


ERA ALAGOANO, O COMANDANTE DO “MACAU”.


Saturnino Furtado de Mendonça era um tipo moreno, baixo, acaboclado, rosto oval, ostentando bigode e cabelos pretos. Extremamente simpático e de uma palestra excelente.[vii]
Era muito conhecido e estimado em todos os portos onde atracava. No Recife, em uma das vezes em que esteve comandando o Ipiapaba, submeteu-se a uma cirurgia com o Dr. Arnóbio Margues, no Hospital Português. Naquele porto esteve, pela última vez, em 22 de maio de 1916, de regresso de New York, no Guarajá.
Nasceu na Vila de Barra de Santo Antônio Grande, então pertencente ao município de São Luiz do Quitunde, Estado de Alagoas, a 29 de novembro de 1867. Era um dos nove filhos do casal Manuel Saturnino de Mendonça e Anna Joaquina Barbosa de Mendonça.
Manuel Furtado de Mendonça, pai de
Saturnino.
Seu pai, também nascido naquela Vila, em 21 de fevereiro de 1825, ainda muito moço foi nomeado professor público de instrução primária, função que desempenhou até 1890, quando foi jubilado. Ali mesmo faleceu a 26 de junho de 1910.[viii] Sua mãe, também professora primária, lecionou na mesma Vila pelo menos entre 1877 e 1896.[ix] Eram seus irmãos: José Furtado de Mendonça e Maria José de Mendonça Barros.
No dia 10 de janeiro de 1893, em São Luiz do Quitunde, casa-se com Hortência Cavalcante de Albuquerque, filha de Manoel Cavalcanti de Albuquerque e Anna Maria Cavalcanti de Albuquerque. Desse consórcio, já residindo no Rio de Janeiro, nasceram quatro filhos: Samuel, Victoriano, Mathilde e Sylvia.
Sua esposa, entretanto, faleceria a 27 de junho de 1908. Nesse mesmo ano, no Recife, contrairia novas núpcias com a Srtª Josephina Guilhermina da Silva.
Viúva, e com duas filhas menores, D. Josephina requereu indenização ao Lloyd, que nunca foi paga. O Estado brasileiro ofereceu uma pensão, que chegou a ser suspensa dois anos depois.
Saturnino Furtado de Mendonça é sempre referido em todas as histórias sobre a participação brasileira na 1ª Guerra Mundial, mas pouco se diz a respeito da sua origem, afinal aqui ressaltada, para orgulho dos seus conterrâneos de Alagoas e, especialmente, dos seus patrícios da Barra de Santo Antônio.
__________
Sugestão para o registro de referência:

AMORIM, Etevaldo Alves. COMANDANTE SATURNINO, UM ALAGOANO NA 1ª GUERRA MUNDIAL. Maceió, janeiro de 2010. Disponível em: http://www.blogdoetevaldo.blogspot.com.br. Acesso em: dia, mês e ano.


[i] Correio da Manhã, RJ, 10 de fevereiro de 1917.
[ii] Jornal do Comércio, RJ, 9 de dezembro de 1889
[iii] A Imprensa, RJ, 14 de setembro de 1899.
[iv] O Estado, SC, 28 de setembro de 1917.
[v] Gazeta de Notícias, RJ, 29 de outubro de 1917, p. 5.
[vi] Relatórios do Ministério das Relações Exteriores (RJ) - 1891 a 1928.
[vii] Jornal Pequeno, Recife-PE, 26/10/2017, p. 2.
[viii] O Malho, RJ, 3 de setembro de 1910, p. 39.
[ix] Gutenberg, Maceió-AL, 20 de junho de 1896.