PÁGINAS

quarta-feira, 29 de julho de 2020

O CAPITÃO MANOEL REGO


Por Etevaldo Amorim

O Capitão Manoel Rego
Manoel de Souza Rego Filho nasceu em Pão de Açúcar dia 2 de novembro de 1865. Era filho do português Manoel de Souza Rego e de D. Feliciana Emília Maciel de Carvalho (professora pública, natural de Pernambuco, que chegou a Pão de Açúcar removida da povoação de Morro de Camaragibe, em 1860).[i]
No dia 15 de abril de 1893, casou-se com Etelvina Adelaide de Almeida, filha de Cincinato Almeida (natural de Penedo) e Clara Bela Farias Almeida (natural de Pão de Açúcar). O evento, celebrado pelo Escrivão Theotonio Rodrigues de Souza Christo, aconteceu na residência do seu sogro e em presença do Juiz Distrital em Exercício, Cap. Horêncio Pereira da Luz (que logo seria Intendente). Foram testemunhas: o Bacharel João Francisco de Novaes Paes Barreto (neto do Barão de Piaçabuçu, então com 19 anos) e o Capitão Antônio Moreira de Souza Saldanha. Ele, aos 26 anos de idade e ela com 19 anos. Ainda estiveram presentes os Srs. Serafim Soares Pinto (Intendente do Município), Antônio Rodrigues Noya, Henrique Salathiel Canuto, Manoel de Farias Almeida, Urbano Ferreira Lima (jornalista, fundador do jornal O Sertanejo), Elias Pereira da Silva, João Rodrigues de Albuquerque e Targino Salathiel Canuto.
O casal teve os filhos: Manoel Rego Neto, Sudomélia, Etelvina, Mário, Alfredo, Júlio, Judite, Antônio, Silvio e Virgínia (esta casada com Antônio Oliveira, proprietário do Hotel Imperial).
Em 1894, exercia o cargo de Comissário de Polícia. Em 18 de novembro de 1906, fundou o jornal A VOZ DO SERTÃO, imparcial, literário e noticioso. Em 1919, Manoel Rego atuava como Administrador da Recebedoria de Pão de Açúcar, do qual foi exonerado a 17 de novembro de 1924.[ii]
Durante a gestão do Intendente Manoel Pereira Filho - 07.01.1925 a 07.01.1928, ele foi Vice-Presidente do Conselho Municipal (equivalente a Câmara de Vereadores).
O Interventor Manoel Rego

O Dr. Adherbal de Arecippo escreveu sobre Manoel Rego no jornal Gazeta de Alagoas de 22 de janeiro de 1956, sob o título “Gente do meu Tempo”[iii]:
“Era Manoel Rego de boa estrutura, cabelo cortado à escovinha, alvo e excessivamente corado. Em Pão de Açúcar ele desempenhou várias missões: foi político, funcionário público estadual, jornalista, orador, pequeno fazendeiro e fabricava os próprios calçados que usava. As botinas eram de cor cinza, sola fina, cano curto e salto baixo. A gravata era de um tipo único: laço “borboleta”, estreita, pano de fustão e sempre na cor branca. Como jornalista, fundou e dirigiu “A Voz do Sertão” que circulava semanalmente. Pelas suas colunas fazia política e defendia o município. Na qualidade de orador, falava nas solenidades sociais e políticas, como também pelo carnaval, em plena rua, saudando os “blocos” idealizados e dirigidos por Manoelzinho Pereira. Na função de empregado público, foi o administrador da Recebedoria, e ninguém apontou uma falha moral ou material no curso dos serviços.
......
E assim viveu Manoel Rego, como um dos homens de vida social e política das mais representativas do município pão-de-açucarense, até o dia em que Deus considerou encerradas as variadas missões que ali exercia”.”


1.      O Capitão e o Conde.

Ao longo do segundo semestre de 1889, Gastão de Orleans, o Conde d’Eu[iv], visitou as províncias do antigo Norte do Império do Brasil (atualmente Norte e Nordeste), como uma estratégia de reatar os vínculos políticos com as autoridades regionais[v], e dar sobrevida ao Regime Monárquico.
O Conde D'Eu, ao centro, a bordo do vapor Paumery em viagem entre Manaus e Tabatinga, 1889. O Barão de Corumbá à esquerda. Foto: Barbosa Rodrigues. Fonte: COLEÇÃO PRINCESA ISABEL - Fotografia do Século XIX, Pedro e Bia Corrêa do Lago.

Partindo do Rio de Janeiro no dia 12 de junho, a bordo do paquete nacional Alagoas, visitaria as províncias da Bahia, Pará, Amazonas, Ceará, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Foi uma viagem atribulada e nada fácil para os propósitos do genro do Imperador. Basta dizer que, no mesmo vapor, viajava um dos maiores propagandistas da causa republicana, o Dr. Silva Jardim[vi]. Confrontaram-se em Salvador e no Recife.
Na viagem de regresso à Corte, e como houvera programado, chega ao Penedo no dia 21 de agosto, a bordo do vapor Una, para uma incursão até a Cachoeira de Paulo Afonso. Depois de visitar a cidade, parte no dia seguinte com destino a Piranhas, de onde subiria até as cachoeiras. A seu lado, o ajudante de ordens Barão de Corumbá - João Mendes Salgado.[vii]
Consta que o Conde foi recebido com extrema frieza. Um jornal local de oposição assim descreveu:
Em Pão de Açúcar, central cidade da província das Alagoas, o Sr. Gaston d’Orleans teve uma recepção muitíssimo fria. Na véspera de sua chegada escreveram pelas travessas proclamações republicanas, e ao saltar, um conceituado negociante do lugar levantou uma lindíssima bandeira com o dizer:
- Pavilhão Federal.
O viajante visitou a Casa da Câmara, não se apresentando para recebê-lo um só vereador.” (CONDE..., 1889, p. 3).
Já Aldemar de Mendonça, em seu livro Monografia de Pão de Açúcar, transcreve nota do jornal “O Trabalho”, datado de 24 de agosto de 1889:
“Como era esperado, ontem a tarde, chegou a esta cidade S. Alteza o Conde D’Eu, que foi recebido por uma comissão nomeada pelo Presidente da Província, autoridades judiciárias e policiais, Pároco da Freguesia e Guarda Municipal, e outras pessoas gradas, sendo assim acompanhado com jubilosa manifestação, á casa do Juiz de Direito da Comarca, onde foi bem hospedado. Sua Alteza seguirá, agora pela manhã, com destino á Cachoeira de Paulo Afonso, devendo regressar nestes 3 ou 4 dias.”.
Entretanto, diz ele: “Sabemos, por tradição, que quando o ilustre visitante percorria as ruas desta cidade, teve de passar por perto de um quiosque instalado na rua do meio, (Avenida Bráulio Cavalcante) pertencente ao Sr. Manoel Rego, republicano exaltado. Já bem próximo do referido quiosque, impulsivo como era Manoel Rego, gritou bem alto: “Viva a República” e o Conde perguntou a alguém daqui, quem era aquele entusiasta, tendo sido informado que se tratava de um cidadão correto, portador de qualidades exemplares, porém intransigente na defesa dos seus ideais.”
2.      Capitão contra Capitão.
Durante a primeira administração do Padre Soares Pinto (iniciada em 7 de janeiro de 1928), estalou o movimento revolucionário – a Revolução de Outubro (chefiada por Getúlio Vargas, em 24/10/1930). Segundo Lauro Margues, ela veio para “renovar os costumes políticos e fazer do Brasil um país cujo nome, além de nossas fronteiras, alcançasse as dimensões de sua grandeza geográfica. E Pão de Açúcar abraçou clangorando a sua confiança de um futuro melhor, as ideias dos fragmentadores da Primeira República.” E conclui: “O primeiro Prefeito revolucionário que tivemos foi o Capitão Manoel Rego, um homem reconhecidamente amigo de nossa terra.”[viii]
Bando de Lampião em 1929. Foto: Blog do Mendes.

Por essa época, os sertões nordestinos experimentavam permanente inquietude ante a intensa mobilização de grupos cangaceiros, tendo à frente o temível o “Capitão” Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Notícias terríveis chegavam a todo momento, denunciando as mais diversas atrocidades perpetradas pelos facínoras, muitas vezes contra simples inocentes.
Segundo o nosso escritor Aldemar de Mendonça, uma dessas notícias davam conta de que, no dia 2 de dezembro de 1930, o Grupo de Lampião teria pernoitado na Fazenda Quixaba, a 5 km da cidade, conduzindo preso o Cel. João Nunes[ix] e o Sr. Gustavo Limeira.
O Cel. João Nunes. Foto:
Blog Cariri Cangaço

No dia seguinte, seguiram para o povoado Ilha do Ferro (Pão de Açúcar-AL), de onde, na canoa “Americana”, atravessam o Rio São Francisco para Bonsucesso, povoação do Município de Poço Redondo-SE. Ali, Lampião resolve libertar os dois, sob a palavra empenhada do Cel. João Nunes de que o dinheiro exigido para a sua liberdade chegaria logo.[x]
Na verdade, conforme relata o próprio Cel. João Nunes ao jornal A Notícia[xi], ele, durante a jornada, “assistiu à prisão do Sr. Gustavo Limeira, um pobre velho que, obrigado a servir de guia aos bandidos, apanhou três surras por ter errado o caminho”. Esse episódio foi fartamente noticiado por diversos jornais do Rio de Janeiro, então Capital Federal. O Diário de Notícias[xii] diz:
“O Coronel João Nunes, Ex-Comandante da Polícia pernambucana, vitoriosa a Revolução, retirou-se para a sua fazenda (Fazenda Sueca, a duas léguas da cidade) no município de Águas Belas. Assaltada a sua propriedade por Lampião, foi preso e conduzido como refém pelo sertão afora. Viveu uma odisseia. Amarrado a dois burros, cada um por um braço, foi arrastado pela caatinga em fogo durante dias seguidos. Lampião exigira a quantia de 15:000$000 (15 contos de réis) para libertá-lo.[xiii]
Escapou porque soube resistir a tudo como um bravo, sem uma imprecação ou uma queixa. Os cangaceiros, admirandos da sua resistência, exigiram de Lampião a sua liberdade, e o Chefe concordou:
- Um homem assim não se mata. Vá embora, cabra!
E o Coronel João Nunes foi posto em liberdade, levando no bolso trinta mil réis, que a mão amiga de um dos cangaceiros depositou discretamente, a fim de que não morresse de fome na longa caminhada de regresso à fazenda.” Seguiu então até Pão de Açúcar, de onde tomou um automóvel até Santana do Ipanema até alcançar a sua fazenda.[xiv]
Foi então que, tendo assumido os destinos do Município a 13/10/1930 (permaneceria até 13/04/1931 - 182 dias), o agora Interventor Manoel Rego organizou uma “força de defesa” arregimentando os mais destemidos pão-de-açucarenses, conforme se vê na fotografia por ele enviada ao então Secretário do Interior e Justiça, o Dr. Orlando Araújo.[xv]

O Dr. Orlando Araújo, Secretário do Interior e Justiça. Foto: Site História de Alagoas
 
Força de Defesa da cidade de Pão de Açúcar, organizada pelo Cap. Manoel Rego, à direita. 1930. Foto: Arquivo Público do Estado de Alagoas, cedida pelo saudoso historiador alagoano Davi Bandeira.
 4. HOMENAGENS.
Após a sua morte, em Pão de Açúcar, no dia 4 de dezembro de 1937, os pão-de-açucarenses, por meio de seus representantes, lhe prestaram algumas homenagens:
Leva o seu nome a Travessa Manoel Rego, que liga a Av. Ferreira de Novaes (na altura da Banca do Peixe) à Av. Bráulio Cavalcante (defronte ao Banco do Brasil); e a Escola Municipal localizada no povoado Ipueiras de Baixo, inaugurada no dia 20 de dezembro de 1970, durante a Gestão do Prefeito Antônio Gomes Pascoal tem Manoel Rego como Patrono.
A Travessa Manoel Rego, em Pão de Açúcar-AL, sentido Av. Bráulio Cavalcante - Av Ferreira de Novaes
A Unidade Municipal de Ensino Cap. Manoel Rego no povoado Ipueiras de Baixo

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NOTA:
Caro leitor,
Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, exibe postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo. Segue abaixo, como exemplo, a forma correta de referência:
Sugestão de registro de referência:
AMORIM, Etevaldo Alves. O CAPITÃO MANOEL REGO. Maceió, julho de 2020. Disponível em: http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/07/o-capitao-manoel-rego.html. Acesso em: dia, mês e ano.




[i] Diário das Alagoas, 9 de abril de 1860, p. 2.).

[ii] Diário de Pernambuco, 28 de novembro de 1924. http://memoria.bn.br/DocReader/029033_10/13499

[iii] MENDONÇA, Aldemar de. Pão de Açúcar, História e Efemérides. 1974.
[iv] Luís Filipe Maria Fernando Gastão, conde d'Eu (Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston; Neuilly-sur-Seine, 28 de abril de 1842 — Oceano Atlântico, 28 de agosto de 1922), foi um nobre francês, tendo sido conde d'Eu. Gastão era neto do rei Luís Filipe I de França, tendo renunciado aos seus direitos à linha de sucessão ao trono francês em 1864, quando do seu casamento. Tornou-se príncipe imperial consorte do Brasil por seu casamento com a última princesa imperial de facto, D. Isabel Cristina Leopoldina de Bragança, filha do último imperador do Brasil, Dom Pedro II. Faleceu quando voltava ao Brasil para celebrar o centenário da independência brasileira do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1922.

[v] SANTOS, Magno Francisco de Jesus. UM PASSEIO EM DIAS DE TORMENTAS: A VIAGEM DO CONDE D’EU ÀS PROVÍNCIAS DO ANTIGO NORTE DO BRASIL. UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2016. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/his/v36/0101-9074-his-36-e6.pdf. Acesso em: 20 de julho de 2020.

[vi] Antônio da Silva Jardim (Capivari, 18 de agosto de 1860 — Nápoles, 1 de julho de 1891) foi um advogado, jornalista e ativista político brasileiro, formado na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1º de julho de 1891, fez uma viagem de turismo à Itália, na companhia de Joaquim Carneiro de Mendonça. Em Nápoles, visitava o vulcão Vesúvio quando escorregou e caiu em uma de suas bocas, desaparecendo.

[vii] Almirante João Mendes Salgado, era filho de João Mendes Salgado e de Dona Sabina Joaquina da Fonseca. Nasceu no Rio de Janeiro, em 3 de março de 1832 e ali faleceu no dia 30 de julho de 1894.

[viii] Albuquerque, Lauro Marques de. Município de Pão de Açúcar. Diário de Pernambuco, 16 de setembro de 1934.

[ix] João de Araújo Nunes nasceu em 27 de janeiro de 1881 em Águas Belas (PE). Filho de Lourenço Nunes Barretto e Thereza Rodrigues de Araújo. Foi casado com Amélia da Silva Gueiros.
João Nunes Por: Antônio Vilela, Site Cariri Cangaço http://cariricangaco.blogspot.com/2012/03/joao-nunes-por-antonio-vilela.html O Coronel João Nunes foi comandante da Força Pública de Pernambuco, diretor da Casa de Detenção e do Presídio de Fernando de Noronha. Também foi prefeito de Águas Bela (sua terra natal), Garanhuns e Canhotinho. Blog do Mendes http://blogdomendesemendes.blogspot.com/2016/12/lampiao-e-o-coronel-joao-nunes.html
João Nunes fixou residência em Águas Belas em 1927, quando deixou o Comando da PM. Diferentemente do Cel. Manoel Rego, que fora investido do poder por conta da Revolução, o Cel. João Nunes, figura das mais relevantes da Maçonaria permambucana, foi destituído do cargo de Prefeito de Águas Belas.

[x] MENDONÇA, Aldemar de. MONOGRAFIA DE PÃO DE AÇÚCAR. Jornal do Recife, 3 de dezembro de 1930.
[xi] Jornal do Comércio, RJ, 10 de dezembro de 1930. http://memoria.bn.br/DocReader/364568_12/7022

[xii] http://memoria.bn.br/DocReader/093718_01/4920 Diário de Notícias, 19 de abril de 1931.

[xiii] Jornal Pequeno, 1º de dezembro de 1930, http://memoria.bn.br/DocReader/800643/47967

[xiv] Jornal do Comércio, RJ, 10 de dezembro de 1930. http://memoria.bn.br/DocReader/364568_12/7022

[xv] Orlando Valeriano de Araújo nasceu em Maceió no dia 22 de novembro de 1882, filho do comendador Tibúrcio Valeriano de Araújo e de Constância Carolina de Araújo.
Em 1902 foi um dos fundadores da Sociedade Dramática Teatral Dias Cabral em Maceió. Bacharelou-se em direito pela Faculdade do Recife em 1908. Secretário do Interior do governo do interventor Hermillo de Freitas Melro, instalado em Alagoas logo após a vitória da Revolução de 1930. (ente 14 de outubro de 1930 a 9 de agosto de 1931). Fonte: www.historiadealagoas.com.br


sábado, 25 de julho de 2020

PIRILAMPOS (Lendas sanfranciscanas)

Por Francisco Henrique Moreno Brandão[i]
Ilha de S. Pedro-Porto da Folha- SE
Foto: portodafolha.com
A noite, muito negra e muito fria, veio de inverno. Por isso, no samba animado que havia em casa de Aninha Peixe, não se dava um intervalo entre uma dança e outra sem que a comparência, de parte as distinções de sexo ou de idade, não fosse ingerindo goles sucessivos de camboim, deliciosa bebida fabricada nos engenhos de Brejo Grande e Piaçabuçu e trazida para ali na sua canoa, alcunhada de “Flor da Bocarra”, pelo Manoel de Serva.
Depois as “cirandas” e outras espécies coreográficas do populário brasileiro continuavam, dando ensejo a que aqueles próximos descendentes dos urumarys, em meneios pecaminosos, em cortejos lúbricos a que nenhuma dama se furtava, revelassem a força incontestável de um atavismo sempre em vésperas de repontar estuoso.
A sala tibiamente alumiada por um “alcoviteiro” era um apartamento sórdido, sem reboco, nem ladrilho. A poeira que os pés dos dançarinos levantavam se juntava à fumaça dos cigarros amarelos ordinários e ao cheiro acre dos corpos suarentos. Tudo isto tornava a atmosfera irrespirável e parecia aumentar a excitação nervosa dos dançadores.
Lá na cozinha, duas velhas memoravam as virtudes do fundador daquela aldeia, Frei Dorotheu[ii], um verdadeiro taumaturgo, que ali se entregara a uma catequese, cujos frutos estavam agora bem visíveis no mais repugnante dos contrastes.
De casario alinhado e relativamente confortável, erguido no tempo do frade franciscano, subsistia apenas uma ruinaria extensa, bem diversa do que era visto nas eras de esplendor da Ilha de São Pedro.
O convento de taipa fora também se desmoronando aos poucos. Ora uma goteira renitente vinha apodrecer uma tábua do soalho, ora uma rajada frenética do vento sueste, atingindo violentamente uma janela, a quebrava. Mais tarde caia um trecho do frontispício e a brecha que ficava, ia-se alargando desmesuradamente.
Mão fatídica parecia ir derrubando as telhas da cobertura, hoje uma, amanhã outra, mais tarde outra, sucessivamente outras e outras, e assim por diante. O estrago se consumiu tão celeremente, que o andar térreo do convento se tornou uma pocilga de bácoros e no compartimento superior, nas celas despovoadas de frades, fizeram repugnantes morcegos o seu poso habitual e querido.
Não era menor a deterioração da igreja, cuja fachada um raio rachara de meio a meio. Das imagens que ali houvera poucas restavam, pois quase todas foram surrupiadas, não faltando um novo Judas que vendesse outra vez o desdenhado Cristo. As que ficavam nos seus nichos tinha o aspecto grotesco de bonzos e se mostravam de uma amarelidão ictérica, pois as frequentes intempéries as haviam cruelmente descolorido. O próprio ladrilho do templo fora torpemente roubado e andava servindo de múltiplos misteres nas casas que, na Ilha de São Pedro, não estavam ainda desertas.
Morto o pastor zeloso, esborcinadas as construções que ele fizera, pedindo esmolas em uma e outra margem do São Francisco, também os sampedrenses, esquecendo exemplos e conselhos, se desmandaram. Apareceu logo um mandão feroz, que passou a viver de rapinas, impondo terror a todo mundo, tomando criações aos donos, comprando fiado e pagando com desaforos e ameaças, raptando as mulheres e filhas alheias, até que montou um serralho, povoado por umas cinco ou seis pelliôas, que os seus gostos mutáveis os forçavam a trocar por outras novas. O exemplo da lasciva despeiada medrou de tal forma que ninguém em breve se arriscava a casar com moça de São Pedro, receoso de um logro.
Por sua vez, as mulheres casadas não estavam longe de certas tendências pecaminosas e raríssimas eram aquelas que não se mostravam muito latitudinárias em matéria de concessões amatoriais. Com isso começou também a predominar em longa escala a embriaguez, que empolgava desde a criança de 8 anos até o septuagenário de giba proeminente, encurvado para o chão, de olhos mortiços e passos trêmulos.
Como dois lances de redes deitada ao São Francisco bastavam para garantir abundante colheita de peixes, e dois mergulhos de covos davam, em camarões enormes, uma quantidade miraculosa, quase não se trabalhava na antiga aldeia, e todos viviam mais ou menos bem.
A serraria fechada, onde ninguém mourejava mais, fora dilapidada no melhor do seu acervo de ferramentas, e agora fazia prodígios de equilíbrio para não se nivelar com o solo, quando o vento canalizado entre as alas da cordilheira marginal ao mediterrâneo brasileiro rugia com ímpeto descomunal.
As roças eram meia dúzia de metros plantados por um sampedrense mais laborioso e rapinadas pela coletividade insulana em peso.
No quadro que outrora formava a aldeia havia cinco ou seis tavernas e outras tantas casas de jogo. Em umas e outras as rixas eram frequentes, havendo facadas, tiros e punhaladas, que ninguém punia.
Mas, enquanto esses lugares suspeitos andavam repletos de frequentadores, a olaria contava apenas com a assiduidade de duas ou três velhas de face repulsiva, as quais ali praticavam a mais rudimentar das indústrias.
Esse descalabro fez que as afugentassem de São Pedro as massas numerosas que, no mês de janeiro, iam ali assistir às festas proverbiais do Espírito Santo. Para ela convergia tudo quanto havia de mais seleto na região oparina e a pobre ilha habitada por caboclos semi-civilizados, se transfigurava faustamente, dando a impressão de uma metrópole regularmente povoada, tamanho era o movimento da rua. Agora nada disso se via. Nem ao menos, cumprindo a última vontade de Frei Dorotheu, no dia do celeste claviculário, havia ateada em frente a cada residência uma fogueira. Como lhe esqueceram depressa as injunções, faziam justamente o que ele expressamente proibia.
Viviam em contínuos batuques de que um dos mais estridentes era aquele que estava sendo realizado na noite do pescador apostolar. É verdade que as almas cândidas sempre lembradas do frade santo estavam a esperar a cada momento que o poderio deste se mostrasse num castigo exemplar.
O castigo não veio, porém veio uma advertência. Das bandas do nascente, miríades incontáveis de pirilampos apareceram, cobrindo o comprimento do diâmetro da ilha circular. Esses vagalumes, ora formavam um listrão enorme, ora davam a ideia perfeita de um círculo ou de uma elipse, ora se dispunham triangularmente, mais tarde surgiam em pelotões dispersos em falanges que acima da ilha procuravam direções inteiramente díspares. Por fim, pousando, num átomo, sobre uma tamarineira existente diante do convento, ali ficaram, dando a ideia de uma iluminação fantástica.
A recomendação de Frei Dorotheu foi então lembrada e os foliões ébrios que dançavam lubricamente na casa de Aninha Peixe foram se dispersando, dispersando, medrosos e enfiados.
Frei Dorotheu de Loreto. Foto Os Caputhinhos
na Bahia - Pietro Vittorino Regni





[i] Transcrito do jornal A ESQUERDA, Rio de Janeiro, 17 de julho de 1931. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=297984&pesq=%22moreno%20brand%C3%A3o%22&pagfis=2486.

[ii] Nascido na Suíça e ordenado na Itália, ali chegou muito jovem, em 1849, e permaneceu até sua morte em 1878, em Piaçabuçu.