Coelho
Cavalcante[i]
Lembro-me de que, quando o vi pela primeira vez, apregoava ele um leilão de festa religiosa, em São Luiz do Quitunde, aldeia alagoana, onde nasci.
Levara-o de Maceió para
ali Manoel César de Farias Mattos[ii],
tão poeta e tão boêmio quanto ele.
Do ponto de partida ao
de chegada, andaram de a pé dúzia e meia de léguas, à sombra de extenso capoeiral
em fruto, pousando aqui e acolá, e a vender aos pescadores daquelas praias
imagens pequeninas de Nossa Senhora dos Navegantes, propositadamente esculpidas
em cajá por um Affonso Bina, perito fabricante de carimbos do mesmo pau e
morador à rua do Sol, na capital do sururu de capote.
Pintavam ambos a manta[iii],
com a bondosa aquiescência unânime da escassa população quitundense, quando, de
súbito, aparece o escrivão Tito Passos[iv],
que ali fora ao encalço do amado filho ausente.
Manoel César morreu em
1886, quase anônimo, depois de haver cantado, num lirismo mais doce que mel de
uruçú, as moças e as perspectivas da natureza daquela sagrada nesga de
continente, que lhe dera naturalidade.
Até ao dia em que
partiu ele para o Rio, a vida de Guimarães Passos[v]
não teve, como diz a chapa hodierna, solução de continuidade.
Passou por todos os
liceus e por todos os colégios de Maceió como um dos mais talentosos e também o
mais vadio dos alunos, fazendo rir a mestres e condiscípulos com suas
insocegáveis diabruras.
Ensinaram-lhe isso Luiz
Mesquita[vi],
mimoso poeta lírico, do qual o talento se sepultou esquecidamente naquele meio estagnado,
e Guido Duarte[vii],
homem de insigne saber literário, autor de um soneto intitulado O Leque,
transcrito e decorado, àquela época, em todo o Brasil.
Na “Gazeta de
Notícias”, sob a edição de José Hygino de Carvalho[viii],
foi onde o futuro artista dos Versos de Um Simples pôs em letra de molde a
excelência originalíssima de sua musa.
Hygino não era homem de
alcance necessário às consequências das galhofas e sátiras impressas de
Guimarães e outros colaboradores, assacadas à burguesia apatacada e vingativa de
Maceió, e por isso teve, bastas vezes, de rebater, improficuamente, imprevistas
bordoadas que lhe vibraram caceteiros em almoeda.
Fausto de Barros[ix],
orador abolicionista; Carlos Valente, jornalista de uma fertilidade assombrosa,
cheio de bombas e gongorismo, por vezes acusado de plagiário, no acesso das
controvérsias; Oliveira e Silva[x],
que tanto se distinguiu, depois, na imprensa dos jornais cariocas, e tantos
outros rapazes estirados, hoje, na impassibilidade eterna do esqueleto, foram
os companheiros incomparáveis da mocidade radiosa do Guimarães.
Era a “Gazeta” o ponto
de reunião de todos eles, os quais trazia o José Hygino na palma das mãos, em
paga reconhecida de lhe encherem de brilho, de graça e de ledores o jornal. Ali
se combinava a fatura do lido órgão provinciano e mais o programa da pandega
noturna, o pão nosso de cada noite, como dizia o Fausto.
Tinha esta
originalidade efeito no hotel, ou melhormente, como se hoje diz, no frege do
Justo Mesquita, mulato laborioso e pachola, republicano, e consumado artista
culinário, então estabelecido à rua da Cambona[xi],
terceira casa à esquerda de quem ia para Bebedouro,
Um tal Machado,
infalível comensal, rico de matéria e de haveres herdados, era o responsável,
perante o hoteleiro, quando na algibeira de todos havia míngua de pecuniário
suficiente aos gastos da ceia.
Guimarães nunca tinha
vintém, quebrado sempre, quebradíssimo, como os sonetos do Doutor Aprígio.
Carlos Valente,
amarelo, cadavernoso, com um olhar oblíquo e sombrio, dentes grandes e podres,
sempre de mãos frias como as de um defunto, a língua dele era um trinchador a
esquartejar aquela pobre sociedade.
A política dominante, à
qual era sistematicamente adverso o diário de José Hygino, era o prato da
sobremesa: na boca do Barão de Traipu, Vice-Presidente, sempre em exercício, da
então Província, punham-se os maiores disparates deste mundo, e sobre o lombo
polpudo dos deputados provinciais, matutos cheios de ignorância e vazios de
desonra, cravavam-se, como a flecha certeira do índio no dorso da tartaruga, os
epigramas de Guimarães Passos e as verrinas de Valente.
Numa noite de muqueca e
de vinhaça, aniversário do Oliveira e Silva, mais conhecido por o Sabugo, o
Barão e seus correligionários foram radicalmente vingados: Júlio Mesquita, no
auge de uma carraspana formidolosa, dispersou os fregueses à acha de lenha,
rachando a cabeça do vate epigramático.
Dos inúmeros ofendidos
da reacionária jolda intelectual foi um deles o Doutor João Gomes Ribeiro[xii],
famoso tribuno, polemista de eterno fôlego, despeitado e temido, o único,
talvez, escapo à viperina e sempre injusta análise crítica de Thobias Barreto.
Acontece aparecerem,
empós, numa revista literária, uns versos de um tal Charles Guerin ou Charles
Berquin postos em vulgar pelo Guimarães.
Ora, João Gomes, que
conhecia como a si próprio o autor da tradução, o qual fora seu discípulo, encaixou
nas colunas do jornal que redigia o seguinte:
“Pede-se ao senhor Sebastião Cícero Guimaraes Passos o especial obséquio
e trazer ou mandar a esta redação os originais dos lindos versos que traduziu e
fez, ontem, publicar. O curioso autor destas regras, seu velho admirador, as
traça unicamente por dois motivos: ter dúvidas sobre o conhecimento da língua
de Voltaire por parte do jovem tradutor e certeza absoluta de que Charles Berquin
nunca, jamais, existiu.”
Essa mofina pôs em
reboliço os arraiais literários.
O velho Tito Passos,
que se impava de nobre orgulho do estro invejável do filho, pôs a mão na
cabeça.
O poeta, ao ver-se
perdido, correu, então, aos amigos, aos parentes e às senhoras das relações do
jornalista, que substituiu a mortificante morfina por uma notícia muito hábil,
uma espécie de sentença absolutória, não por unanimidade, mas por maioria de
votos.
Supõe-se, e eu creio que
erradamente, que foi esse acontecimento, aliás, sem importância, que dera causa a retirar-se o
poeta para o Rio de Janeiro, onde, pouco tampo volvido, os maiores homens de
pena abriram-lhe praça, acatando-o com refinamentos de grata fraternidade,
distinção essa que se ele referia em carta a Luiz Mesquita:
“A vida nômada, a mesma; a ignorância, cada vez mais enciclopédica,
tanto que me consentiram membro fundador da Academia. Imortal! Está direito: eu
não tenho onde cair morto.”
___
Transcrito da revista O
Malho, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1919, em cuja publicação se exibe uma caricatura
de Kalixto[xiii],
feita em 1906, na Confeitaria Colombo, em que, pelo que se pode entender, o
artista pôs a inscrição: “Fato é que o
meu cigarro quebra queixo. Guimarães”
NOTA:
Caro leitor,
Este Blog, que tem como
tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas
resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da
competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso
algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que
faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário
registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.
[i]
João Francisco Coelho Cavalcante – “João Barafunda” (São Luiz do Quitunde-AL, 16
de junho de 1874/Rio de Janeiro-RJ, 18 de novembro de 1938). Ver JOÃO
BARAFUNDA, O DESTEMIDO PANFLETÁRIO ALAGOANO,
http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/10/joao-barafunda-o-destemido-panfletario.html
[ii]
Tinha um filho chamado Major Manoel de Farias Mattos, falecido em 1917, no
Engenho Todos os Santos, em São Luiz do Quitunde.
[iii]
Expressão utilizada originalmente em Portugal, que significa fazer travessuras,
sair do sério, deitar e rolar, fazer grande alarido, diabruras, desordens, fazer
coisas extraordinárias. Mais ou menos como a conhecida “Pintar o Sete”.
[iv] Major
Tito Alexandre Ferreira Passos. Pai do poeta Guimarães Passos, autor de. Faleceu
em Maceió no dia 27 de março de 1910.
[v]
Sebastião Cícero dos Guimarães Passos. Poeta alagoano, nasceu em Maceió, em 22
de março de 1867 e faleceu em Paris (França), em 9 de setembro de 1909. Era
filho do Major Tito Alexandre Ferreira Passos e de Rita Vieira de Guimarães
Passos. Casou-se com Celsa da Silva Freire, filha de Flávio Clementino da Silva
Freire – Barão de Mamanguape e da poetisa Carmem Evangelista Salles – Carmem Feeire
(Baronesa de Mamanguape).
[vi] Luiz
Mesquita. (Maceió - AL 1861). Poeta, advogado, deputado estadual, jornalista.
Foi promotor das comarcas de Porto Calvo, Alagoas (atual Marechal Deodoro) e
Pilar. Deputado estadual nas
legislaturas. 1913-14; 15-16 e 17-18. Autor da letra do Hino de Alagoas. Como
jornalista atuou no Diário da Manhã, Gazeta de Alagoas, O Momento, O Gutemberg,
A Tribuna e Jornal de Alagoas. Pseudônimos: Mr. Louis, Yann e Xisto. Romeu de
Avelar o transcreve em sua Coletânea de Poetas Alagoanos. Hymno da Loja Cap. Virtude e Bondade,
publicado em O Malhete, numero 4, Anno I
de 24/06/1899, p. 4. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.
[vii] Guido Martins
Duarte. (Nasceu em Pernambuco, 1842-
Salvador - BA - 11/10/1893).
Jornalista, poeta, guarda-livros. Começou a trabalhar, como guarda-livros, na
Companhia União Mercantil, de Fernão Velho, em janeiro de 1876. Atuou nas campanhas
abolicionista e republicana. Foi redator, até 1877, de O Século, juntamente com
João Gomes Ribeiro, e colaborou com A Estreia e a Gazeta de Notícias. Dirigiu A
Nova Crença, desde seu aparecimento em 06/01/1884; atuou, também, no José de
Alencar, órgão do Clube Literário do mesmo nome, jornal que foi lançado em 07
de setembro de 1882 e, finalmente no O Gutenberg, onde criou a seção Cofre de
Pérolas, na qual foi responsável pelo lançamento de muitos poetas da província,
jornais estes editados em Maceió. Foi eleito, em 1883, presidente da Sociedade
de Instrução e Amparo dos Caixeiros de Maceió e, em 1884, diretor da Sociedade
Libertadora Alagoana. Foi secretário da Associação Comercial de Maceió, em 1890. Lutou pela abolição do cativeiro e
pela República. Sócio do IAGA, admitido em 03/09/1884. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.
[viii] José
Hygino de Carvalho. Foi proprietário do jornal O NACIONAL, A CIDADE e GAZETA DE
NOTÍCIAS. Faleceu em Maceió a 29 de agosto de 1905.
[ix] Dr.
Fausto de Barros. (Engenho Remédio, Murici - AL 18/12/1864 - Engenho Santa Fé,
Murici - AL 04/04/ 1897). Poeta, deputado estadual, advogado. Filho de José
Teodoro Bezerra de Melo e Americana Augusta de Barros Corrêa. Estudou, em
Maceió: com o prof. Francisco Domingos da Silva, diretor do Colégio Bom Jesus.
Terminou os preparatórios em Recife, ingressando na Faculdade de Direito, onde
se formou em 1889. É nomeado promotor em Taquaretinga, sendo, logo depois,
transferido para Bom Conselho, ambas em Pernambuco. Regressou a Alagoas e foi
promotor nas comarcas, então reunidas, de União e Murici. Foi nomeado Fiscal da Alfândega em Juiz de
Fora (MG), ficou, porém, adido ao Tesouro Nacional, sendo, depois, removido
para o cargo de secretário do Tribunal de Contas, no Rio de Janeiro. Em 1894 retornou a AL. Deputado estadual na
legislatura 1895-96, eleito pelo recém-criado Partido Democrata de Alagoas.
Patrono da cadeira 8 da AAL. Romeu de Avelar o transcreve em sua Coletânea dos
Poetas Alagoanos. O seu poema Teu Olhar foi inserto no livro Terra das Alagoas,
editado em Roma. Colaborou com: O Gutenberg, Gazeta de Notícias, e, ainda, com
a revista Paulo Afonso. Fonte: ABC DAS
ALAGOAS.
[x]
Antônio José de Oliveira e Silva (Pilar-AL, 1864 – Rio de Janeiro, 1911). Era
tio de Zadir Indio, segundo a Revista da Semana, Ano XIX, nº 39, 02.11.1911; e,
segundo o Correio da Manhã de 21 de janeiro de 1911, seu primo, conforme nota
de falecimento assinada, entre outros parentes, por Costa Rego, este sim, seu
sobrinho.
[xi]
Rua da Cambona, atual Rua General Hermes.
[xii]
Bacharel João Gomes Ribeiro. Advogado estabelecido na rua Nova, nº 6. Nomeado
lente do Lyceu Alagoano em 1890. Filho do fiscal da Alfândega João Gomes
Ribeiro (falecido em 1875). A 27 de julho de 1892 passou a ocupar a função de
Chefe de Redação do jornal O Nacional. Faleceu em Maceió a 26 de outubro de 1897.
[xiii]
Calixto Cordeiro ou K. Lixto (Niterói, 1877 - Rio de Janeiro, 11 de fevereiro
de 1957) foi caricaturista, desenhista, ilustrador, litógrafo, pintor e
professor brasileiro. Filho de Manoel Cândido Coutinho e Luiza Evangelista
Cordeiro Coutinho. Casado com Nair Jalles Cordeiro, com quem teve os filhos
Horácio Calixto Cordeiro e Néia Calixto Cordeiro.