PÁGINAS

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

A MARQUESINHA DO RIACHO DOCE (Um episódio da campanha do petróleo no Brasil)

 Monteiro Lobato[i]

 

Em Alagoas. A catorze quilômetros de Maceió a estrada real em certo ponto margeia-se duns casebres humílimos - o bairro do Riacho Doce. A capela, uma ou duas vendas onde pouco há de vender, a agenciazinha do correio onde a chegada duma carta constitui acontecimento. Moram ali pescadores e gente que lida com cocos. Peixes do mar e frutos do coqueiro – a vida do Riacho Doce se condiciona a isso.

Há beleza natural. Lindo, o oceano, dividido em três faixas; primeiro, uma de pálido verde veronês; depois, uma de translúcido verde vivo das ondas da Copacabana; por último, a faixa azul que se limita com a linha do horizonte. Beirando o mar de três cores, a praia branca, que vira coqueiral a partir do ponto máximo alcançado pelas marés.

Coqueiros e mais coqueiros. Só coqueiros, nessa praia do riozinho já de nome internacional, citado nas revistas de petróleo e em tratados. Um riacho de águas mansas, pouco profundas, claras, que os pescadores e banhistas atravessam, no ponto em que a água lhes suba acima dos tornozelos.

Banhistas, sim. Riacho Doce é também praia de banhos. Na estação própria, algumas famílias vêm de Maceió passar ali uma semana ou duas.

A estrada real corre areienta por entre os coqueiros, acompanhando a praia. Por ela transitam criaturas a cavalo. Não usam selas. Montam em pelo, na anca, para maior comodidade, apesar do grotesco que é. Gente paupérrima, com todos os vincos dessa terrível “miséria brasileira”, só comparável à miséria chinesa. Os cavalos são cavalicoques, tão degenerados do normal sadio como as criaturas humanas. A subalimentação mostra seus estragos em todos os viventes porque o rendimento do solo é magérrimo. Mas ressurgirão esplêndidos no dia em que o subsolo for mobilizado.

Dois “palácios” se destacam, um contíguo ao outro, entre as choupanas do Riacho Doce. São duas vivendas de campo que já tiveram seu tempo. A primeira constituiu o “palácio de verão” do governador Fernandes Lima, que para lá refugia aos calores da capital. Essas estações governamentais em Riacho Doce quebravam o marasmo do lugarejo com a nota festiva das reuniões políticas, dos bailes, das retretas pela banda de Maceió, num coreto de que só existem hoje os alicerces de cimento. O “palácio” pertence agora à Cia. Petróleo Nacional, que o adquiriu, com um grande terreno anexo, por 25 contos. Nele estão hospedados os engenheiros geofísicos da Elbof.

Na vivenda seguinte mora Edson de Carvalho[ii], o rijo pioneiro do petróleo nordestino. Varanda ladrilhada de tijolo comum, com cadeiras de balanço e uma rede. No quintal, mangueiras e cajueiros velhíssimos. Que cajus dão aquelas árvores! Uma cerca de paus a pique separa o quintal da estrada. A um canto da cerca, um pé de embauva[iii]. Debaixo dele, um túmulo em miniatura, sempre com flores em cima. É onde dorme a Marquesinha do Riacho Doce.

Quem foi essa criatura à qual, positivamente, o Brasil deve uma grande coisa?

Uma preguicinha criada por Edson de Carvalho, falecida antes de completar um ano de idade. Recebeu-a de presente, filhotinha ainda e transformou-a em “pet”. Nas casas sem crianças há sempre um animal, cão ou gato, que se beneficia dos carinhos maternais e paternais privados do alvo normal dos filhos. Na vivenda de Edson não havia cão nem gato. A preguicinha tornou-se o “pet” querido.

A embauva do quintal fornecia-lhe os brotos com que se alimentava. Preguiça não vivem sem embauva perto. Foi logo elevada ao marquesado. Virou a Marquesinha do Riacho Doce – e mereceu-o pela sua inteligência, sua dignidade, seus olhos ultra-negros, profundos de expressão. Integrou-se na família. Entendia tudo. Acompanhava o evolver do sonho de Edson. Sempre no colo de um ou de outro, pagava os mimos com abraços e olhares. Há infinitos de mistério no olhar duma preguicinha.

A luta de Edson e seus companheiros no Sul ia tremenda. Estavam exaustos e no fim. Sentiam-se completamente vencidos e, no íntimo, até se envergonhavam de ainda persistirem quixotescamente na liça, fingindo uma convicção de vitória que era pura mentira. As deserções e traições dos companheiros; o silêncio e a má vontade dos jornais; a indiferença do público já degenerada em hostilidade cruel; cada subscritor a suspirar o suspiro das vítimas: “Fui na onda, meu caro; caí na asneira de comprar tantas ações” – e a resposta inevitável do “esperto”: “Ah, eu sabia disso. Petróleo? Não há petróleo no Brasil – e essas tais companhias o que merecem é cadeia, nada mais”.

O Departamento Mineral nadava num mar de delícias. Conseguira matar uma por uma todas as iniciativas, como quem mata piolhos – estalando-as entre as unhas. As companhias de São Paulo já estavam por terra. O perigoso poço do Araquá tivera a audácia de chegar a 1.076 metros, mas aos golpes do Departamento já lá estava, felizmente, detido no seu avanço – e com o audacioso sujeitinho que o levara até essa profundidade posto fora da companhia. No Riacho Doce as manobras secretas tinham conseguido inutilizar os três poços tentados por Edson. O sabotador do último deles foi recebido no Rio entre palmas – e colocado como chefe supremo do petróleo oficial, no famigerado Departamento. Merecia aquela recompensa quem tão maquiavelicamente soubera agir contra a teimosa empresa alagoana. Pode ele, então, partejar a célebre monografia sobre as rochas gond-wanicas, onde provava, por a mais b, que não havia petróleo em todo hemisfério meridional, e, portanto, também não havia no Sul do Brasil – trabalho que mereceu do ministro da Agricultura palmas especiais, tornando-se a bíblia daquela gente.

A guerra contra a companhia do Edson foi de uma ferocidade inaudita. Momento houve em que empregaram a força. Um interventor[iv] de Alagoas, por sugestões do Departamento Mineral, mandou ocupar militarmente a sonda, expulsando de lá o pessoal da companhia. Edson, o incorporador, o responsável por tudo perante milhares de acionistas, viu-se durante catorze meses impedido de penetrar nas propriedades da empresa. Teve de fugir para o Rio, onde pacientemente ficou à espera de que o interventor caísse...

Um dia o interventor caiu e Edson pode voltar para sua casinha do Riacho Doce. Mas em que situação econômica, santo Deus! Em que situação moral! Dinheiro já não havia nenhum. Dias houve de faltar cinco mil réis para a comida – mas a sua convicção quanto à existência de petróleo no Riacho Doce era tamanha que nada lhe quebrava o ardor. Não tinha dinheiro? Muito bem. Trabalharia sem dinheiro.

Loucura pura! Perfurar sem dinheiro! Realizar esse trabalho dispendiosíssimo, que é uma perfuração, sem dinheiro! Já era o delírio do homem tomado de ideia fixa. Já era transtorno mental. Ninguém se apiedou dele, ninguém se riu, como no palácio do duque todos riam do cavaleiro de la Mancha, porque, abandonado de todos, ninguém mais acompanhava a ação de Edson.

O pioneiro louro despiu o paletó e, impossibilitado de contratar um sondador, fez-se ele mesmo o sondador na Nacional. Auxiliado por dois homens dali, ex-pescadores, que não precisavam de dinheiro para viver, pois tinham o mar e os cocos, meteu mãos ao trabalho.

Um grande sonho o animava. Edson sabia, tinha provas de que o último poço lá aberto pelo antigo Serviço Geológico, em 1922, tocara em petróleo livre aos 300 metros. Ora, se ele conseguisse chegar a essa profundidade, fatalmente também tocaria em petróleo – e tudo estaria salvo. O segredo da sua resistência verdadeiramente absurda deve ter sido esse. Deliberou, jurou consigo levar o poço São João até os 300 metros. Se nada encontrasse, então sim – abandonaria tudo, confessando a derrota.

Mas não se perfura sem dinheiro. Há sempre necessidade de algum para a compra deste ou daquele material na cidade – e a cidade não vende fiado aos loucos.

Problema insolúvel. Onde levantar dinheiro? Em Maceió, impossível. Nem a chegar até lá o pioneiro se atrevia. Oito meses passou sem pôr o pé em Maceió. Os numerosos pequenos acionistas por ele “logrados” eram capazes de linchá-lo, se o vissem na rua. A campanha de difamação promovida pelo oficialismo a serviço dos “trusts” fora perfeita.

Último recurso: o sertão. Talvez no sertão, por aquelas bibocas não chegam jornais e nenhum eco do que se passa na parte “civilizada” do Brasil, pudesse levantar algum dinheirinho. Ideia de louco – mas que é um pioneiro do petróleo no Brasil senão um louco varrido?

Edson despediu-se da esposa, afagou a Marquesinha e, montado numa perfeita réplica de Rocinante, lá partiu. Ia fazer essa loucura quixotesca de penetrar no sertão em busca do que menos há lá: dinheiro.

Foi o pondo máximo da sua carreira. O delírio do heroísmo. Léguas e léguas, dias e dias, semanas e semanas sob aquela soalheira criminosa do sertão, com paradas aqui e ali para catequizar este ou aquele matuto, ensinar-lhe o que era petróleo e, ao cabo duma luta tremenda, vender-lhe uma ação. Cada ação vendida era  um milagre. No primeiro mês desse martírio conseguiu vender cinco. Quinhentos mil réis! Uma fortuna – e Edson, com as esperanças renascidas, voltou radiante para casa, para a sonda, para o serviço.

E pode perfurar mais uns metros.

Mas o dinheiro acabou. Nova entrada pelos sertões. Nova catequese. Novas semanas de soalheira terrível. Novo dinheirinho em notas ressecas, de tanto tempo guardadas no lenço vermelho, lá no fundo das arcas. E Edson voltou e m ais uma vez retomou o serviço, perfurando mais uns metros.

Terceira entrada no sertão, dessa vez lá pelas zonas onde corria o bando sinistro de Virgulino. Chegou a cruzar-se com a gente de Lampião. E o penoso da catequese?

Sua garganta secava de tanto falar, de tanto explicar o grande negócio que seria para o matuto adquirir uma ação de petróleo. “Mas que história de petróleo é essa?” “Petróleo é querosene”, tinha Edson de ensinar. O matuto sabe o que é querosene, pois o compra na venda para a sua lamparina, e acha caro. Admitia, portanto, que se aquele moço tirasse querosene de dentro da terra seria u m bom negócio – poderia fornecer querosene para todas as lamparinas do sertão – e largava as sebentas notas do lenço vermelho.

Mas tudo cansa. Um dia Edson fraqueou. Um acidente qualquer na sondagem o fez despertar de tudo. “É loucura insistir”, pensou consigo. “Chega. Já lutei demais. Estou no fim”. Deu ordem para suspender-se o serviço. “Vocês tratem da vida”, disse aos dois auxiliares. Vou parar com isto. Não aguento mais”. Os dois auxiliares nada responderam. Ficaram com os olhos no moço vencido que, a passos lentos e cabeça baixa, seguia de rumo à sua casa, a trezentos metros dali.

Era o fim da campanha do petróleo no Brasil. Tudo falhara em São Paulo e tudo ia falhar no Norte. Edson, o último combatente, depois de queimados os últimos cartuchos, tomara resolução de largar o poço e sumir. Era engenheiro. Em qualquer parte, bem longe de Alagoas, ocultar-se-ia no anonimato dum trabalho qualquer. O petróleo do Riacho Doce estava definitivamente derrotado. José Bach, Pinto Martins, ele...

Quando pisou na varanda da sua modesta vivenda, o plano da nova vida já estava definitivamente assente em sua cabeça: fugir para o Sul no dia seguinte. Chamou a esposa para comunicar-lhe a resolução. Dona Elisa não estava. Só estava em casa a Marquesinha, que, ao vê-lo, lhe abriu os braços. Edson tomou-a e sentou-se na rede, a olhar para aqueles olhos negríssimos. Notou que no abraço da preguicinha havia qualquer coisa de novo, de mais forte, de mais significativo. Também notou que seu olhar era de censura e queixa. Aquilo o impressionou. Edson enterneceu-se.

Sim. Como abandonar a Marquesinha? Levá-la para o Sul, impossível. Teria também de levar o pé de embauva. Deixá-la com aqueles pescadores equivalia a condená-la à morte. Quem, naquela rudeza, teria coração bastante para compreender e amar a Marquesinha?

E Edson, o homem forte, vacilou. “Ela não quer que eu vá. Quem sabe se não é o destino que a faz abraçar-me assim?” Olhou-a bem fundo nos olhos negríssimos. Aqueles olhos ultra-humanos falavam, imploravam que não fosse – que a não abandonasse entre estranhos desalmados. E Edson, invadido de subitânea ternura, mudou de ideia. Deliberou ficar. E ficou.

No dia seguinte pela manhã torna ao serviço. Os dois auxiliares sorriram.

- “Continua, então, patrão”?

- Que remédio?! A Marquesinha não quer...”

Metem mãos à obra. Vão emendando uma haste na outra e descendo a coroa rotativa. O ferro alcança o fundo do poço, então na cota dos 250 metros. A máquina é posta em movimento. O sistema começa a regirar. Lá no seio da terra a broca vai progredindo com a sua lentidão desesperadora. Súbito, a água da boca do poço referve em borbulhas.

- “Será gás?” murmura o pioneiro, com o coração aos pinotes.

Chega um fósforo. Sim! Gás inflamável – gás de petróleo, o sinaleiro, o anunciador da grande coisa procurada” ...

Tomado de profunda emoção, Edson corre ao paletó pendurado dum cajueiro e manda um bilhetinho histórico a dona Elisa, em inglês: (Sua esposa é americana).

“Wify: it looks we are getting there – the well is boiling – just come over – say nothing. Hubby. (Wify: parece que vencemos – o poço está a ferver – venha já – não fale nada. Hubby).

Mais uns metros perfurados nos dias que se seguiram e o gás irrompe tremendo. A folhinha marcava o mês de junho de 1935.

...   ...   ...

Era a vitória do Brasil contra a força tremenda do oficialismo a serviço das forças externas escravizadoras. Era o triunfo da Nacional, de Edson, dos seus companheiros do Sul. Era o começo do Brasil de amanhã. Era o bruxulear do Quarto Poder Mundial do Petróleo. E se essa coisa tremenda veio, foi apenas porque o abraço da Marquesinha do Riacho Doce impediu em certo momento que o último soldado desertasse.

Logo depois a preguicinha fechava os olhos para sempre, sem causa visível. Instrumento do destino que foi, desapareceu logo que teve sua missão cumprida. Dela só resta hoje aquele túmulo em miniatura embaixo da embauva. Nele há sempre uma flor do dia. Como há uma lágrima de infinita ternura nos olhos de Edson sempre que conta do abraço e do olhar de censura com que, impedindo-lhe a fuga, a Marquesinha salvou a campanha do petróleo no Brasil.

O Engenheiro Edson de Carvalho


Desembocadura do Riacho Doce






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Transcrito do jornal Correio Paulistano, São Paulo, 24 de setembro de 1936.

Para saber mais acesse https://www.historiadealagoas.com.br/a-saga-do-petroleo-alagoano-iii-edson-de-carvalho.html    



[i] José Bento Renato Monteiro Lobato (Taubaté, 18 de abril de 1882 – São Paulo, 4 de julho de 1948).

[ii] Edson Feitosa de Carvalho nasceu em Vitória, atual Quebrangulo, no dia 23 de julho de 1897. Era filho de João Honório de Carvalho e Carolina Feitosa. No dia 29 de setembro de 1917, em Bronx, New York, casou-se com Liesel Ott, uma alemã criada nos Estados Unidos. Quando se naturalizou brasileira passou a se chamar Elise. Em segundas núpcias, casou-se com Vicentina Soares de Oliveira.

[iii] O mesmo que Imbaúba. Designação comum, extensiva às árvores do gênero Cecropia, nativas das regiões tropicais americanas, de folhas grandes, flores em espiga e pequenos frutos nuciformes, também conhecidas por árvore-da-preguiça, imbaíba, umbaúba, etc.

[iv] Afonso de Carvalho – Interventor Federal de 10 de janeiro de 1933 a 2 de março de 1934.