Mauro
Mota[i]
Entre
as pessoas referidas por Félix Pires de Carvalho, pessoas das relações pessoais
e de trabalho de Delmiro Gouveia, uma delas compensaria a aridez às vezes não
só da paisagem, também do homem do sertão nordestino.
Este,
sim, podia dizer: minha vida é um romance. Em cima do seu trenzinho, podia
oferecer argumento e elenco para um filme, com intérpretes de carne e de ferro.
Era o compadre Xandu, mais conhecido por Xanduzinho das Rosas, por ser muito
prazenteiro e cantador de toadas, não obstante já estar bastante velho.
Foto_Luiz Ruben F. de A. Bonfim |
Era
tão interessante, conta o memorialista sertanejo, o modo como agia Xanduzinho
como chefe do trem, que até hoje trafega das Piranhas (Marechal Floriano) a
Jatobá (Petrolândia), que acho mesmo de bom alvitre deixar um pouco a vida de
Seu Delmiro para intercalar neste modesto trabalho algumas das suas que eu
testemunhei e gostava mesmo de testemunhar por achar engraçadas.
Ele
fazia tudo na estrada, mas nunca achou quem fizesse representação contra ele, porque
a coerência que ele tinha com uns era suportada pelos outros, que imaginavam
amanhã também precisarem das mesmas coerências. E assim Xanduzinho ia cantando
a sua filosofia sem ser incomodado.
Xanduzinho
das Rosas era inimigo de horários e sinetas. Não abandonava passageiros nem os
pertences. Chapéu, embrulho e até jornal que eles deixassem cair pelos engates
ou pelas janelinhas dos vagões, parava a locomotiva para recolhê-los, fosse em
que altura fosse do ramal.
Seu
Félix mesmo, de viagem marcada a Piranhas, chegou uma vez esquipando em Jatobá,
tão cedo que “ainda estava sendo abraçado
por Morfeu”. Perto do cemitério, ao ouvir o apito do trem anunciando a
partida dentro de alguns minutos, teve que “impelir
a burra a maior velocidade das carreiras”.
Já
na rua de Jatobá, o compadre Lero (coronel Aureliano Menezes), que estava
fazendo a barba com o cabo do espelho enfiado do buraco da janela, interpelou-o:
-
Que pressa danada é essa? Quer matar essa bicha baixeira?
Explicando
que estava prestes a perder o trem para Piranhas, o “coronel” o tranquilizou:
-
Deixa de ser bobo. Eu também vou.
Pediu
à mulher para fazer café e cuscuz e chamou o moleque da casa:
- Corra
meu filho, vá à Estação e diga a Xanduzinho que aguente a mão que eu e compadre
Félix vamos viajar e chegamos daqui a pouco.
O
“daqui a pouco” foi mais de uma hora.
Lero se vestindo, procurando o parapó. Mas Xanduzinho aguentou a mão, somente
apitando, apitando, chamando.
No
trem tinha uma moça falando contra a demora, achando aquilo uma vergonha,
dizendo que aquela estrada de ferro era a pior do mundo.
Xanduzinho
perguntou a ela para onde se botava. Ela respondeu que morava no Rio de
Janeiro. Ia a Paulo Afonso ver a mãe que não via há muitos anos, e ainda mais aquele
atraso.
- Estrada pior do mundo!
Xanduzinho
ainda perguntou se ela gostaria se alguém maltratasse a mãe dela. Ela respondeu
mais zangada ainda:
-
Não admitiria o atrevimento.
-
Nem eu! – disse ele. A senhora está falando mal da minha, chamando ela de “pior do mundo”. Essa estrada é minha
mãe, fique sabendo.
Disse
isso e começou a cantar uma toada: “É
amando, e chorando e querendo bem”...
*** ***
***
Em
outra ocasião, o trem ia viajando, vimos debaixo de um imbuzeiro muito imbu
maduro. Então eu lhe disse: olha, Xanduzinho, que beleza!
Ele
mandou parar o trem para chuparmos imbu até quando todos ficamos satisfeitos
com o suco da saborosa fruta.
Outro
dia, não sei se por falta de passageiros, foi atrelada à máquina apenas a
primeira classe e nela embarcaram os passageiros de primeira e de segunda
classe, indo até o Coronel José Rodrigues, Chefe Político de Piranhas, com três
soldados da polícia alagoana e dois dos seus cangaceiros. Eu então lhe perguntei:
-
Que diferença há dos passageiros de segunda classe para os de segunda? Ele
respondeu:
-
Adiante você verá.
Quando
chegamos a um lugar em que havia muitas árvores secas, ele mandou parar o trem
e disse:
-
Os passageiros de segunda classe vão quebrar lenha para a máquina do trem; e,
virando-se para mim, disse? – Eis aí, Félix, a diferença que você me perguntou.
*** ***
***
Seu
Félix não tivera sorte no negócio tentado em Esplanada, na Bahia. Veio com toda
a bagagem. Numerosos volumes sobrados da liquidação, via Propriá, onde os
colocou em canoas para atingir Piranhas pelo São Francisco. Aí, para atender ao
pagamento dos fretes do trem, pediu que fizessem a pesagem dos sacos e caixões.
Xanduzinho
olhou tudo e disse:
- Pesar
o quê? Aí deve ter 50 quilos.
Seu
Gaudêncio, o empregado encarregado e que deveria substituí-lo depois da
aposentadoria, reclamou:
-
Isso assim já é demais, seu Xanduzinho! Dê ao menos 200 quilos...
Ele
deu. E continuou: “É amando, chorando e querendo bem...”
*** *** ***
Combinações
de uma transcrição do Diário de Pernambuco, 13 de março de 1966; 31 de dezembro
de 1967; 30 de janeiro de 1974.
Mauro Mota (Mauro Ramos da Mota e Albuquerque), jornalista, professor, poeta, cronista, ensaísta e memorialista, nasceu no Recife-PE, em 16 de agosto de 1911, e faleceu na mesma cidade em 22 de novembro de 1984. Filho de José Feliciano da Mota e Albuquerque e de Aline Ramos da Mota e Albuquerque, estudou na Escola Dom Vieira, em Nazaré da Mata, no Colégio Salesiano e no Ginásio do Recife. Diplomou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1937. Sexto ocupante da Cadeira 26, eleito em 8 de janeiro de 1970, na sucessão de Gilberto Amado e recebido pelo Acadêmico Adonias Filho em 27 de agosto de 1970.