Félix Lima
Júnior[i]
Creio que foi em meados
do ano de 1907 que eu deixei, de uma vez por todas, o seringal “Umary”, de
propriedade do Cel. Leite de Carvalho, no qual cortara borracha muito tempo,
sendo depois, durante quatro anos, gerente do barracão. Eu estava cansado
daquela vida desgraçada, daquele isolamento no meio da floresta densa, úmida,
tenebrosa, à margem de um rio cuja fama ruim corria mundo.
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Ilustração José Geraldo |
Já havia assistido
tanta gente morrer de impaludismo, de febres malignas, de malária e de uma
outra doença terrível, transmitida pelos mosquitos, doença que ataca a espinha
e deforma o indivíduo; já vira tantos seringueiros devorados pelos jacarés,
fulminados pela descarga elétrica do poraquê, quando pescavam ou se banhavam no
rio, ou desaparecidos na mata, para serem encontrados, dias depois,
semidevorados pelas onças ou mortos a frechadas pelos índios que dominava as terras
altas do seringal, índios que costumavam devorar as vítimas, enfiando as
cabeças num pau para leva-las para as suas malocas, onde dançavam semanas e
semanas em torno do sinistro troféu; já remara tanto na semiescuridão da selva
tropical, naqueles rios, lagos e igarapés solitários; já vivera sozinho,
completamente isolado, numa cabana de paxiúba, no meio da mata, sofrendo o
calor infernal dos trópicos, num dia, para tiritar na rede, logo depois, quando
a friagem chegava quase que sem aviso, em pleno verão, matando peixes, pássaros
e outros animais, além de homens, mulheres e crianças, vítimas de pneumonias
violentas, de constipações fortes e gripes dizimadoras; já bebera tanto
quinino, para me livrar do impaludismo, a ponto de estar com uma vista quase
perdida, além de ter-me fartado de assai e de patuá; já passara dias inteiros
pescando surubim, mandaí, pirarucu, ou caçando veados, pacas e antas para
melhorar a boia ordinária de farinha de mandioca e jabá assada todos os dias;
já andara tanto tempo enfiado num uniforme de brim mescla, e terçado à cintura
e rifle a tiracolo, numa monotonia de irritar os nervos de um Buda de pedra,
que em um dia de nostalgia, lembrando-me com saudade da família, principalmente
de minha mãe e da fazenda onde eu nascera até aquela topada estúpida de ir para
o Amazonas – resolvi deixar o emprego e voltar para minha terra.
Sim, esqueci-me de
dizer. Eu nasci em Pão de Açúcar, município sertanejo à margem do S. Francisco,
nas Alagoas, e para lá é que eu queria voltar. Ia para o Minador, pequena
fazenda de gado que eu herdara de meu pai e que fora fundada no ano remoto de
1843, pelo meu bisavô, um português emigrante que deixara sua aldeia, na Beira,
e viera para o Brasil tentar fortuna, em 1839, desembarcando no Recife, de um
veleiro imundo, sem um níquel, mas com disposição de vencer na vida e que, à
custa de economias ferozes, juntara uns cobres.
Deixei o seringal,
entreguei o barracão ao meu substituto e um belo dia, em Belém do Pará, na casa
aviadora do meu ex-patrão, recebi o meu saldo, cerca de 45 contos, uma pequena
fortuna para a época. Visitei a Basílica de Nazaré, onde ouvi missa, pagando
assim a promessa que fizera se escapasse com vida daquela aventura terrível a
que fora arrastado pela inexperiência, com dois primos, dando ouvidos às
histórias fantásticas de enriquecimento rápido no El-Dorado Amazônico e tomei passagem
no Prudente de Morais, do Lloyd Brasileiro, para Fortaleza, pois eu resolvera
passar 3 ou 4 meses em Guaramiranga[ii],
cidade na serra, de clima ameno, próprio para repouso e cura de doentes e
depauperados como eu.
Os dois primos que
tinham ido comigo é que não tinham tido sorte: um desaparecera no Acre, lá para
os confins de Sena Madureira, e nem a sua mala voltara; o outro morrera afogado
no Iaco, um dos afluentes do Purus, quando pescava, numa monteia, de madrugada,
e seus dois companheiros de barraca ficaram convencidos que a canoa fora
alagada e virada pela boiuna, a cobra grande, rainha das águas, pois eles
tinham ouvido seu uivo longínquo, no lago próximo, logo que o rapaz saíra do
porto. Aquela gente ignorante acreditava, entre outras coisas, na existência da
boiuna, da iara, do jurupurí...
Desembarquei em
Fortaleza e segui no outro dia para Guaramiranga, recomendado a um negociante
de lá, o Sr. José Sotero, que me cedeu uma casa meio isolada, distante três
quilômetros da cidade, na qual costumava ele passar o verão. Eu estava cansado,
pálido, esgotado, desfigurado mesmo e tinha esperanças de me restabelecer em
três ou quatro meses. E logo estivesse restabelecido não hesitaria! Iria embora
para o Minador e de lá só pretendia sair para o cemitério de Pão de Açúcar...
Dias depois que eu
chegara à serra, notei que a maioria dos habitantes estava convencida de que eu
era milionário... Milionário não, multimilionário! Todos eles eram pobres
roceiros, vivendo com dificuldade da exploração de pequenas propriedades,
lutando com a seca, com o fisco, com os cangaceiros, com o diabo... Uma pessoa
que aparecia assim, relativamente bem vestida, com uma boa mala de couro, tendo
dinheiro para viver sem trabalhar, devia ser rica... E tendo vindo do Amazonas,
seria certamente milionária...
Comecei a ser assediado
por pedidos de dinheiro emprestado, por pedidos de auxílio para doenças e
enterros, para resolver casos de família; fui padrinho de um casamento e
convidado para padrinho de batismo de crianças cujos pais conhecia ligeiramente
ou nunca vira... Todos queriam estar relacionados com o Coronel que vinha do
El-Dorado onde notas de 200$000 serviam somente para acender charutos e peles
de borracha eram lavadas com cerveja e vinhos finos quando o preço da hévea
subia a... 20$000 o quilo. – era o que
pensavam eles, pobres diabos ignorantes que viviam quase na miséria e davam
ouvidos às histórias fantásticas dos agentes dos donos de seringais que vinham
contratá-los para o serviço no extremo norte.
Eu morava sozinho. Uma
preta velha – a Generosa, que eu contratara, vinha pela manhã, cuidava da casa,
preparava as refeições, lavava a minha roupa e saia para a sua palhoça, distante
uns dois quilômetros, mais ou menos, logo que eu acabava de jantar, às sete da
noite. Certo dia, tendo ido a Guaramiranga, à casa do Sotero, fazer compras,
ele, que se tornara meu amigo, entendeu prevenir-me:
- O senhor deve tomar
as suas precauções. Morar sozinho naquele pondo isolado, e além disso com fama
de rico...Não é boa coisa. Há muita gente ruim neste mundo. Eu não quero
alarmá-lo; estou prevenindo apenas como amigo. Durma com um olho aberto e uma
pistola perto da cama.
E quando eu ia montando
a cavalo para voltar para casa, depois de tomar uma xícara de café saboroso,
daquele café colhido na serra do Baturité, o melhor do Brasil, o meu novo amigo
preveniu-me ainda:
- Olho aberto, meu caro
Sr!.. Quem previne amigo é!
Saí preocupado. É
verdade que já tinha tido as minhas desconfianças. Tanto assim que, mal saía a
Generosa, eu trancava as portas e ia ler junto a um candeeiro belga que
comprara ao Sotero, conservando ao meu lado, por precaução, a Winchester
trazida do Amazonas. Eu não era dos mais medrosos. Já vivera muito tempo num
seringal e não corria de caretas facilmente. O primeiro patife, pois, que
tentasse destelhar a casa ou arrombar uma porta, levariam uns tiros para perder
a vontade de furtar. E, note-se: eu não sou dos piores atiradores...
Conhecia todos os meus
vizinhos. Entretanto, redobrei de precauções, comecei a notar os desconhecidos
que passavam na estrada e passei a dormir com os ouvidos bem abertos e com a
Winchester junto à cama. Precaução e água benta nunca fizeram mal a ninguém...
A casa era de taipa,
mas bem construída, cumeeira alta, bem coberta, portas e janelas de pinho de
Riga, reforçadas, todas com taramelas fornidas, bem pregadas. Um ladrão podia
assaltar a casa, roubar-me, matar-me, mas não o faria com muita facilidade.
Cerca de um mês depois
de o Sotero ter-me prevenido eu acordei, certa madrugada, com um pequeno ruído.
Levantei-me sem fazer barulho, não risquei fósforo, não acendi o candeeiro e,
em pé, junto à cama, fiquei escutando, procurando saber o que era. Parecia um
rato grande furando a parede ou o chão para fazer um buraco. Como o barulho
continuasse, eu fui, pé ante pé, pelo corredor, em direção à sala de jantar.
Era uma noite bonita, de lua quase cheia, e eu verifiquei, espantado, que uma
pessoa, do lado de fora da casa, estava calmamente furando a parede de taipa à
altura da taramela da porta da sala de jantar. O trabalho era feito com muita
cautela. Quando o buraco estivesse pronto, ela meteria o braço, levantaria a
taramela, sem barulho, estava assim senhora da casa.
O plano, raciocinei às
pressas, fora bem engendrado e quem o organizara, para me roubar, talvez para
me matar, devia ser alguém que conhecia o interior da casa. Mas o momento não
era para reflexões e hesitações! Eu tinha de agir, e agir com urgência!
Pensei um momento
enquanto ouvia o barro caindo no chão à proporção que o buraco aumentava.
Dentro de poucos minutos o patife colocaria o braço e abriria a porta.
Organizei o meu plano e tratei de executá-lo. Fui à cozinha, de pés descalços,
como estava, trouxe um maço de cordas bem fortes, um facão afiado, passei no
quarto, trouxe a Winchester, por segurança, e fiquei de pé, junto à parede onde
estava sendo aberto o buraco, de maneira que o ladrão não desconfiou de coisa
alguma. E quando ele, tendo aberto o buraco, colocou o braço, procurando
alcançar a taramela, eu segurei-o pelo pulso, puxei bem, de modo que ele
ficasse unido à parede, do lado de fora, sem poder mexer-se. Amarrei o braço
com a ponta da corda, bem amarrado, subi numa mesa que havia no meio da sala e
prendi a outra ponta da corda numa das linhas da casa. Fiz isso sem o menor
barulho, e verificando que estava tudo em ordem, fui dormir. Não tive a
curiosidade de saber quem tentara assaltar a casa. Era madrugada alta, cerca de
três horas, e dentro em pouco tempo o dia amanheceria. Eu olharia, então, para
a cara do gatuno...
Deitei-me e dormi mais
do que desejava. Não sei se foi a emoção ou outra coisa qualquer, mas só me
levantei às seis horas, dia claro. Enfiei as chinelas, peguei o rifle e corri à
sala. O sol já estava de fora e a sala, coberta de telha vã, não estava muito
escura. Distinguia-se já alguma coisa. Notei logo que algo de anormal
acontecera. Abri a janela às pressas e o que eu vi fez-me ficar arrepiado, com
os cabelos em pé. A corda pendia da linha e na ponta balançava-se um pedaço de
braço! Por mais incrível que pareça o ladrão, para poder fugir, cortara ou
mandara que alguém cortasse o seu próprio braço! E lá estava pendurado aquele
pedaço de carne sangrenta, balançando-se na ponta da corda, gotejando sangue;
no chão se formara uma poça de sangue negro, coalhado, nojento. Era uma cena
capaz de bolir até com quem tivesse nervos de aço. Fiquei nervoso, espantado,
com o coração pulsando violentamente.
Antes, porém, que
chegasse a Generosa, eu cortei a corda e enterrei o pedaço de braço num
barreiro. No fundo do quintal, num buraco bem fundo, para os cachorros não
desenterrarem. Cobri a poça de sangue da sala e lavei-a depois. Tapei o buraco
da parede com um pouco de barro que preparei e sobre o que ocorreu não falei a
pessoa alguma, nem mesmo a Generosa. Queria ver se descobria o ladrão. Visitei
depois os moradores próximos, mas nenhum se ausentara ou aparecera com o braço
cortado. Conversei com muita gente, indaguei, botei verde para colher maduro,
mas nada surgiu. Os dias foram se passando e eu não descobri coisa alguma. Está
claro que eu não podia esquecer o que acontecera e muitas noites passei em
claro sem descobrir a solução do problema.
No princípio do outro
mês eu fui, como de costume, a Guaramiranga, fazer compras na casa do Sotero.
Montei a cavalo e apeei-me em frente à casa dele. Entrei e fiquei surpreendido
vendo no balcão Dona Lindaura, sua esposa, a quem eu jamais encontrara no
estabelecimento comercial do marido. Perguntei pelo dono da casa e ela, toda
sem jeito, meio nervosa, respondeu-me:
- Ah, o senhor não
soube? Meu marido está no hospital, em Fortaleza.
- No hospital, em
Fortaleza? E de que está ele doente? – Indaguei.
E a aflita senhora,
mais nervosa ainda, com uma lágrima nos olhos, explicou, enquanto despachava
uma matutinha que comprava um vestido de chita azul:
- O Sotero, coitado,
não é homem que goste de caçadas. É até muito caseiro. Mas um amigo nosso tanto
insistiu com ele, tanto insistiu, que ele foi caçar tatus, há uns quinze dias,
de madrugada, lá na serra. Saiu de casa às duas horas. A noite estava muito
escura. No meio do caminho, ele tropeçou numa raiz e caiu, fraturando o braço
esquerdo, que teve de ser amputado...
______
Transcrito na Revista
Vida Doméstica, Rio de Janeiro, fevereiro de 1949.
*** ***
NOTA.
A indicação de locais e
datas, bem com a narrativa em primeira pessoa, sugere que o autor fala de si
mesmo, de suas origens, suas andanças e aventuras. Nessa armadilha caiu o
cronista J. de Figueiredo Filho[iii]
que, em crônica publicada no Diário de Pernambuco, edição de 6 de março de 1955,
diz que Lima Junior esteve, de fato, no Amazonas...fala de Guaramiranga...etc.
Essa possibilidade,
porém, não existe. Notemos que o fato ocorre em 1907. Félix Lima Junior nasceu
em 6 de março de 1901. Teria, portanto, seis anos de idade.
O mais provável é que
Lima Júnior esteja falando de alguém da família, talvez um tio, ou do seu avô paterno
– MANOEL BEZERRA LIMA.
Caro leitor,
Este Blog, que tem como
tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas
resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da
competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso
algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que
faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário
registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.
[i]
Félix Lima Junior (Maceió - AL 06/03/1901 – Maceió - AL 10/06/1986), filho de
Félix Alves Bezerra Lima e de Francisca Wanderley Lima, e primo de Manoelito
Bezerra Lima, o nosso “Nezinho Cego”.
[ii]
Guaramiranga, do tupi guará (guará) e miranga ou piranga (vermelho),
significando Guará Vermelho, é um município brasileiro localizado na Região
Serrana do Estado do Ceará, a 105,5 km da capital, Fortaleza.
[iii]
José de Figueiredo Filho.