Um conto de Maria José da Silva
Nezinho Bezerra era filho de um sapateiro; nasceu em Pão de Açúcar, à beira do rio São Fancisco, no fim do século passado. Apenas com oito dias, foi atacado pelo sarampo.
Quando a doença passou, no lugar dos olhinhos azuis, ficaram apenas dois buracos. Com os anos, tornou-se um menino desajustado. Era macambúzio e irritadiço. Recusava qualquer afago, pois talvez visse nisso um ato de piedade. E foi crescendo sem aceitar o auxílio de ninguém...
Pequenino ainda, arrastando-se pela casa, focava horas esquecidas a ouvir o Joaquim martelar o couro, na sua banca de sapateiro. Pelas pancadas, com o correr do tempo, o menino pode distinguir quando o pai estava alegre ou triste, preocupado ou de bom humor. É que seu mundo era feito exclusivamente de sons. Vivia a compará-los, a guardá-los na memória auditiva e na sensibilidade de sua alma. Seus dias eram compridos, vazios. Não brincava com outros meninos de sua idade, nem mesmo com os irmãos. Chupava os dedinhos magros ou, às ocultas, apalpava os olhinhos secos.
Passando por uma lojinha, Joaquim viu uns brinquedos. Lembrou de Nezinho. O menino não tinha nada com que se distrair. Parou. Admirou a exposição das bugigangas e pegou um violãozinho.
- Quanto é isto?
- Quatro tostões.
- Ô, diabo! Um brinquedo tão caro!
O negociante fê-lo examinar:
- Veja, boa madeira... Ótimo som... A criança vai gostar...
Joaquim pensou que o filho gostaria mesmo. Reguingou um pouco. Nada... Tirou os níqueis do bolso. Comprou mesmo pelos quatro tostões.
Quando entregou o brinquedo à mulher, ela achou um despropósito. Dar um cruzado por aquilo!
- Ora, homem. Nezinho nem vê isso... Ao que o marido sentenciou:
- Não vê, mas sente!
Nezinho dormia, ressonando. A mãe, apesar de ter discordado do marido, estava satisfeita. Colocou o violãozinho na rede do filho e saiu, pé ante pé. Mas ficou observando a cena. Ele acordou e, mal se mexeu, sentiu qualquer coisa lhe roçando as costas. Tateou. As mãos esguias puxaram o objeto para si. E na solidão dos seus primeiros meses, sorriu ao sentir-se senhor daquilo. Pelo semblante, o brinquedo fora bem aceito. O menino encontrava um companheiro naquele instrumento elementar e rude. E o pequeno violão adquiriu som entre seus dedinhos mimosos.
Morreu-lhe a mãe. Ficou mais solitário e triste do que antes. Ernestina, a irmã mais velha, voltou-se para ele e assumiu o papel da morta.
Mirrado, débil, levou cinco anos a engatinhar pela casa, com a camisola a atrapalhar as incursões que fazia pelos cômodos daquele casarão antiquado. Arrastava-se de um canto para outro, misturando-se com o cachorro e o gato; punha o violãozinho nos adobos vermelhos e corria os dedinhos pelas cordas, derramando sons incoerentes, mas que o extasiavam. Disso talvez lhe viesse, no futuro, o hábito de tocar com o instrumento deitado sobre o colo. Nessa idade, já distinguia perfeitamente o chiado dos carros de bois subindo e descendo o morro. Era só perguntar-lhe quantos carros vinham e quantos iam e a resposta era precisa. Parava de engatinha e se voltava para o perguntador:
- Três. O do Mané desce como do Tião. E o do “seu” Chico sobe.
O curioso – um cavalão que se divertia com a criança – ia ver se era verdade. Voltava logo com uma alegria ingênua no olhar. E exclamara:
- Eita, Nezinho! Num erra nunca”.
Conhecia carro por carro, pelo chiado. Havia algo que se distinguia e talvez fosse essa a causa da sua inafabilidade. Isso chegou a alarmar as comadres. Para elas, Nezinho diferia de todos os cegos. E, enquanto os pão-de-açucarenses começavam a mostrar estima pelo menino, este se ia distanciando, distanciando...
Aquele brinquedo durou anos. No entanto, com o tempo, lá se foi! Um dos irmãos partira o violãozinho na cabeça do outro. Sabedor da sorte que coubera ao seu instrumento, Nezinho fez barulho. E voltou a sentir-se isolado, num mundo que só permitia entrada de sons. Chegando à idade escolar, Joaquim preparou-o para cursar o Instituto dos Cegos, no Rio de Janeiro.
Voltou já moço. Trazia bengala de junco, terno de linho, chapéu de palha e óculos fumados que lhe davam certa distinção. Caminhava por toda a Pão de Açúcar sem outro guia, a não ser a bengala. O homem muitas vezes tem um cachorro, um cavalo, Nezinho possuía uma bengala. Entendia-a. Batendo com a ponteira no lugar onde pretendia pisar, ouvia seus conselhos: sim ou não. A bengala era seus olhos. Guiava-o sem má vontade nem cansaço, ouvia-lhe os queixumes e as pragas.
Apenas chegado, recebeu convite para reger a banda de Santana do Ipanema, cidade que ficava a doze léguas de Pão de Açúcar. Os fazendeiros de toda a redondeza enviavam-lhe os filhos para aprender música, mas Nezinho não ouvia esses pedidos, tão absorvido estava pelas suas composições. Certa tarde ensolarada, chegou um emissário; vinha convidar o artista a conhecer Maceió. Nezinho aceitou e partiu no dia seguinte. Numerosas pessoas desceram à praia para vê-lo. Um convite de Maceió! E o povo exultou como se cada um fosse o convidado. Nezinho preocupava-se mais com aquela manifestação de amizade do seu povo do que com a sorte de sua música. O grupo conversava sobre o futuro, vaticinando-lhe a glória e ele mantinha-se silencioso, emocionado, apertando mãos amigas. O negro Malaquias interrompeu a conversação. Depois de idas e vindas, carregando malar até o barco à distância, aproximou-se do bando e batendo no pescoço, com um sorriso de orgulho:
- Seu Nezinho, tá cá o cangote. Monte nele... O rapaz despediu-se, pulou para os ombros do Malaquias, que se pôs a atravessar grande parte do rio com o fardo às costas. Não havia ainda cais e as embarcações não chegavam à praia, estacionando no meio do São Francisco. Homens robustos, como o Malaquias, trabalhavam carregando passageiros e mercadorias para o vapor, ou deste para a terra.
*** *** *** *** ***
Maceió recebeu-o como a um filho querido. Teve ai o primeiro contato com a plateia mais suscetível à música. Restava, portanto, aguardar a opinião dos críticos, que nem sempre se mostram favoráveis.
Mas, de Maceió partem louvores entusiásticos, que chegam até o Rio de Janeiro. A capital do país deseja conhecer o artista. Entretanto, por timidez, ou porque seu físico enfraquecido pedia repouso, não se apressou e voltou a Pão de Açúcar. Já reanimado pelo ar do seu torrão, aguardou impaciente novo convite, que chegou meses depois. Fez nova madrugada e embarcou. Mas, no Rio de Janeiro, parte da crítica acha que ele não pode ser comparado a Canhoto. Vencido, regressa a Alagoas, onde pensa continuar como professor. Entretanto, por volta de 1918, um amigo quis levar Nezinho para tocarem juntos. Ele foi.
Na noite em que os dois artistas do violão tocaram, poltronas e mais poltronas foram vendidas até a última hora. Os expectadores dividiam-se em duas facções: os admiradores do paulista e os do alagoano, provavelmente estes eram do Sententrião... Os dois artistas tocaram juntos. Qual seria a opinião da crítica sobre cada um? Surgiram apostas como nas corridas, como nos jogos de futebol. Entretanto, naquela noite, tocaram dois violonistas, ambos com técnica diversa, modos diferentes, mas com a mesma alma de artista. A própria crítica, que tão mal fizera ao alagoano, uniu-se nos louvores. E os que foram assistir ao concerto como quem vai ao estádio ou ao hipódromo, ficaram decepcionados com o “empate”...
Nezinho e Canhoto despediram-se como grandes amigos. E foi o nordestino quem levou o nome do paulista às plagas esquecidas daquele recanto alagoano.
Canhoto regressou a São Paulo e Nezinho resolveu partir para Pão de Açúcar, mas o amigo empresário achou melhor ficar ali, anunciando novos concertos. Assim se fez. Por fim, cansados pela vida que levava havia meses, propôs:
- Um descanso far-me-á bem. Depois voltarei. Mas, por hora, chega. Não aguento mais; qualquer dia caio desmaiado durante o concerto.
O acompanhante assustou-se, fez-se pálido e, minutos depois, descia a escada do hotel e ganhava a rua...
Fugira, levando vinte contos ganhos nos concertos. O desânimo de Nezinho, por saber-se só, foi maior do que a pena causada pelo roubo. Mais do que nunca encheu os ares com suas pragas. Era um pássaro engaiolado. Cantava, mas seu canto se perdia sem um eco. Que devem fazer as aves presas? Não cantar mais. Ele nunca mais tocaria. E seu orgulho doentio sofreu cruelmente. Exilou-se... Passava os dias, violão ao colo, os olhos secos vertendo lágrimas que ele procurava ocultar de si mesmo.
Por sua vontade, ficaria ali até família procurar notícias suas. Não se mexia. Foi seu Argemiro, o dono do hotel, quem telegrafou ao velho Bezerra contando-lhe a situação do filho. O pai não pode fazer a viagem, ficou combalido. Soube então que o filho do Coronel Antônio Machado estava no Rio. Tomou-lhe o endereço e passou um telegrama pedindo que se encarregasse de socorrer o músico. O filho do Coronel recebeu o pedido e cumpriu-o a contento. Dias depois, seu Bezerra recebia outro telegrama avisando da partida de Nezinho. O pobre velho chorou de alegria. O filho, dentro em pouco, estaria de novo no seio da família.
*** *** ***
Durante oito anos, ninguém aludiu, nem de leve, àquele assunto. E Nezinho vivia sem outro desejo senão o de continuar como maestro da banda de Santana do Ipanema. Tocava o dia inteiro, sozinho. Uma tarde, a barca trouxe alguns rapazes e os carregadores transportaram-nos, no cangote, até a praia. Entre eles, dois músicos que Nezinho conhecera no Rio. Perguntaram pela casa do velho Bezerra. Os moleques, cheirando novidade, levaram-nos até lá. O sapateiro trabalhava ainda quando eles lhe tomaram a porta. Foi recebê-los. Ouvindo-os falar, não disse nada e mandou chamar o filho. Nezinho veio. Não recebeu os amigos com efusão nem com frieza, porém, naquela noite, não pode dormir. Tinha a cabeça ardente de sonhos. Eram tão nítidos que parecia vê-los, senti-los. Voltaria ao Rio depois, conforme o sucedido, viajar. Libertava-se do pequeno mundo em que vivia. Uma madrugada partiu levado pelos dois artistas. Novamente os amigos se reuniram ao amanhecer na praia guarnecida de mamoneiras enfileiradas. Adeuses. Votos de felicidades...
Na Capital da República, tocou sem descanso. Emagreceu. As faces encovaram e o corpo arqueou-se. Num desses concertos, um maestro estrangeiro, de passagem pelo Brasil, depois de ouvi-lo, foi procurá-lo e apertou-lhe a mão dizendo:
- Acabo de ouvir o violão de Alagoas!
A frase pegou. E não mais se ouvia ninguém dizer: vou ouvir Nezinho Bezerra, mas o “violão de Alagoas”.
Pão de Açúcar seguia, com olhos amigos, a ascensão do filho mais moço do sapateiro da cidade. À tarde, nas reuniões familiares, vinha sempre à baila o nome de Nezinho. As cartas do Rio chegavam periodicamente. Contavam o que todos já tinham lido nos jornais. Mas, seu Bezerra as lia uma, duas, cinco vezes. Depois de bem decoradas, metia-as no bolso do paletó, deixava a oficina abandonada e saia. Subia a rua Augusta, uma rua comprida e larga, bordada de velhos tamarineiros. Ia direto a nossa casa. Ali reunião os amigos, isto é, quase todos os moradores e, conversa vai, conversa vem, lá ficavam até às nove horas, a hora de se recolher. Então os conversadores se dispersavam. Ele regressava, olhando o chão, um passarinho miúdo de quem não tinha pressa. Alumiava-lhe o luar. O chão, as sambaibas, os ouricuris, as casas, tudo dormia à claridade branca que vinha do céu.
Lá em baixo, o São Francisco falava, ora lento.. lento, ora apressado. Às vezes o velho ia até o rio, admirá-lo, outras ele vinha em linha reto para casa. Atravessava a sala da frente, onde tinha a oficina, olhando para cada peça de ferramenta com o mesmo amor que o filho apalpava o violão. E sorria. Continuava andando a murmurar:
- Se não ficasse cego, estaria batendo sola ou lá no sítio tangendo a boiada!
No dia seguinte, a carta já estava amarfanhada e amarela, tantas as mãos que por ela haviam passado. Cedinho, seu Bezerra recomeçava o serviço. A todo o momento erguia a cabeça para falar com alguém que, passando pela rua, trelia com ele. Não raro, parava para um dedinho de prosa:
- Que é isso seu Joaquim. Não precisa trabalhar mais...
- Precisa-se viver.
- É isso não, seu Joaquim...
- Sei. Já estou muito velho. O sujeito insistia:
- Com um filho artista! E o velho conformado:
- Apois, tenho de trabalhar para sustentar o artista...
O outro lá ia, sorridente, e o velho ajeitava os óculos de aros grossos, punha toda a atenção no serviço. Mas logo deu de ser apanhado falando sozinho. Muitos mangavam dele. Ernestina, quando o via assim, dizia séria, pois a tristeza nunca a deixou esboçar sorriso:
- Pai deu prá contar as moscas...
Ernestina afastava-se, arrastando a enorme saia preta, batendo rapidamente a chinelinha de couro. E o velho voltava ao trabalho.
No Rio, Nezinho sofria como sempre. Estava outra vez só. Os dois amigos, depois de rápida temporada na Capital, resolveram evadir-se. Não julgando Nezinho tal como os demais, comentavam a partida. Nezinho não podia acompanha-los. Um dia se despediram, desejaram-lhe boa sorte e lá foram. O alagoano ficou só e doente, mas sem aquela impressão sufocante de quem se sente preso. O fato de o terem deixado sem constrangimento nem pena, levantou-lhe o moral combalido. Por conseguinte, como da primeira vez, mas por motivo bem diverso, não procurou comunicar ao pai.
Alguém o fez por ele. Seu Bezerra não tinha, no momento, nenhum conhecido no rio. Ficou aéreo. Lembrou-se de Luis, o filho que estava no Espírito Santo, e passou-lhe um telegrama. Luis recebeu a ordem paterna e partiu depressa. Grande surpresa lhe estava reservada. Esperou o irmão como da vez anterior. Enganou-se. Quem lhe veio ao encontro, pensando que tudo fora obra do acaso, foi um rapaz bem disposto e saudável.
Embarcaram para Aracaju, onde ficaram alguns dias no hotel até o momento da partida. Mal a cidade soube da chegada do músico, o hotel ficou apinhado. Todos queriam ouvi-lo. Nezinho, irritado, afirmou que não daria nenhum concerto. Procuraram Luis para convencer o irmão, mas este não intervinha na sua vida artística. Mas, na véspera da partida, quando Nezinho procurou Luis, não o encontrou... Fugira também ele, depois de lhe ter gasto o último vintém! E o músico, com o organismo depauperado, a alma em revolta, cedeu aos pedidos. Realizou dois concertos para poder regressar a Alagoas...
Quando o conheci, ele já passara por tudo isso. Pequena ainda, e não compreendendo a causa do seu constante mau-humor, eu lhe tinha medo. Na minha pouca idade, julgava-o louco, tal a sua maneira de agir. Estava sempre em nossa casa. Passava, reconhecia o local, entrava. Ia direto à sala de visitas, sentava-se na rede, ao pé da janela e ficava palestrando com mamãe. Certa vez, ele estava lá quando desabou uma tempestade. Explodiu:
- Por que isso não cai em cima de mim e não me arrasa? Mamãe alarmava-se.
- Deus ouve, Nezinho!
- Pois é para isso mesmo! – e sorria feliz com o susto de mamãe.
- Ora, há tantos cegos como você. Não os conheceu no Instituto? Quantos eram?
Não respondia. Evadira-se. Só voltava a si quando ouvia o estourar dos trovões. Então recomeçava:
- Não sei porque a terra não se abriu e me tragou no dia do meu nascimento!
- Nezinho! – e mamãe enxugava os olhos.
Eis a razão do medo que ele me causava. Temia seus repentes e os palavrões. Hoje pergunto: seria ele, realmente, o que procurava parecer? Imagino-o, agora, bem diverso. Fazendo-se de forte para escolher sua debilidade; mostrando-se grosseiro para ninguém lhe ver a alma por demais suave; a praguejar quando ansiava dizer palavras de amor; fingindo-se atrevido quando, na verdade, era a timidez em pessoa. Tinha de ser assim...
Poucas vezes o escutei tocar. Certo dia de feira, bem cedo, burlando a vigilância de mamãe, corri para fora. Desci a rua Augusta, passei diante do casarão antigo, pintado de branco, e parei defronte da casa do seu Bezerra. De dentro, vinha o bater do martelo. Ele ainda não fora à feira. Entrei.
- Bom dia, padrinho Joaquim. Como todas as crianças dali lhe chamavam assim, ele teve de erguer a cabeça e examinar a visitante. Sorriu ao ver-me. Apontou a porta do meio e:
- Entre, Pastora tá lá dentro...
Agora quem sorria era eu. Eram os doces... D. Pastora, sua segunda esposa, de quem não tinha nenhum filho, lembrava a feiticeira de “Branca de Neve”. E tinha, aliada à feiura, uma sovinice que desgostava o marido, e muito mais os de fora. Mas, em toda a cidade, tinham fama os doces de D. Pastora e os sapatos fabricados por Seu Joaquim. Ambos eram insuperáveis na sua arte. Os doces eram guardados no quarto da velha, em baixo da cama. Tudo contado, medido, pesado. O marido pensava que, só em nos mandar entrar, com a recomendação de nos dar doces, seria obedecido. Qual nada! É que nunca percebeu o vintém que levávamos escondido. Eu mesma, naquela manhã, virava e revirava, disfarçadamente, um vintém na mão. Ao obter a permissão, emboquei pelo corredor.
A casa era grande, velha, quase centenária. Vi-me sozinha. A principio, com a esperança dos doces, fiz-me dura, mas fui perdendo a coragem. Entrando por um corredor estreito e escuro, penetrei numa sala muito espaçosa. Tinha duas janelas quadradas, sem vidraças nem cortinas. Grandes móveis envelhecidos e empoeirados se viam nos cantos. No centro, entre uma porta que dava para o oitão, e outra que ia ter à cozinha, estava uma rede de tucum. O seu rec rec povoava a solidão. Era Nezinho a balançar-se com os dedos cruzados sobre o peito e a cabeça pendida para trás. De repende, mal cheguei, levantou a cabeça e olhou para o meu lado. Os óculos escuros estavam fixos em mim. Esperei. Meu instinto não dizia que eu estava descoberta. Pelo contrário, sugeria-me que ele ia tocar. Nisso ele chamou:
- Ernestina! Suspendi a resporação.
- Ernestina! Ô Ernestina!
Na cozinha havia um barulho de tachos, arrastar de pés e logo mais aparecia um rosto suado, curioso. Era uma mulher de meia idade, lenço na cabeça, enxugando as mãos vermelhas no avental enorme, que lhe servia o corpo. Era Ernestina. Ela não falava. Os olhos grandes, sem expressão, adquiriam vida e interrogavam. Nezinho pedia:
- O violão! Traga o violão!
Ernestina saiu como entrou. Mas voltou. Sempre silenciosa, entregou o instrumento ao irmão e afastou-se. Já à porta, indagou:
- Mais alguma coisa, Nezinho?
- Não.
Depois, num tom de voz sego, ele pediu:
- Veja se não tem ninguém por aí, me ouvindo.
Os olhos da mulher percorriam a sala e o oitão. Calei-me à porta, não sabendo se devia ir-me logo sem o doce, ou ficar a ouvir. Aqueles olhos da mulher passaram por mim sem me ver e:
- Ninguém, Nezinho.
Saiu arrastando as chinelas de couro, varrendo a sala com a saia comprida. Botei o rosto para fora da porta, já decidida a ficar e espiei. Nezinho sentou-se. Colocava o violão deitado no colo e com uma das mãos movimentava as cordas. Fiquei parada, ouvindo-o. Talvez tivesse feito algum barulho, imperceptível para mim, mas perceptível para o seu instinto, pois indagou irritado:
- Quem está aí? Não dei resposta. Então ele se levantou, foi até a janela, andou de um lado para outro, sem suspeitar que alguém pudesse estar oculto atrás de uma folha da porta. Depois, convencido de que não se enganara, voltou e se sentou na rede. Ai realizou operação aparentemente fácil, mas bem difícil de descrever. Tomou de uma gaita, dessas que os meninos passam e repassam pela boca, mas com armações que pareciam de óculos, prendendo-se às orelhas pelas duas hastes, de modo a ficar com a linha perfurada, de sopro, bem junta aos lábios. Essa gaita para ele, talvez para os músicos de Pão de Açúcar, era conhecida pelo nome de realejo, o que parece absurdo, mas justificado até certo ponto pelas aberrações da linguagem de grupos. Passou a boca sobre ela, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Experimentou-a. Suas notas eram claras e alegres. A seguir, deitou o violão no colo e passou os dedos sobre as cordas, tirando cascatas de sons.
A música invadiu a sala, jorrou pela janela do oitão, escancarada. A alma aprisionada de Nezinho como fugia com ela. O que ficou sobre a rede foi um homem triste, a assoprar a gaita, a apalpar o violão com as pontas dos dedos. E, aos meus olhos de menina nervosa, ele tomou proporções fantásticas. Enquanto tocava um instrumento, fazia-se acompanhar pelo outro. E enquanto executava a partitura, grossa lágrimas rolavam-lhe pelas faces encovadas e esmaecidas. Vendo-o assim, fique tão fora de mim que me traí. Avancei para ele e:
- Que música é essa, Nezinho? ...
Ele pareceu cair de muito alto, mas não se zangou. Chegou mesmo a responder-me numa voz mansa:
- O Guarani. Esta composição leva-nos muito alto, a uma região cheia de sol, onde tudo resplandece e a luz não conhece sombras... Falava mansamente. Era assim que devia ser a sua alma. Mansa e humilde, para poder elevar-se ao céu. E falava em luz, em sol... Ele que dizia odiar o sol por não nunca o ter visto, que dizia odiar a luz por não ser sensível a seus pobres olhos vazios... Isso foi rápido. Voltando a si, esbravejou. Chamou Ernestina. Brigou tanta que sumi de lá, sem me lembrar dos doces...Contudo, ficou-me na lembrança aquela sala ensombrada, de móveis rústicos e empoeirados, cheirando a couro curtido e a doces frescos. Infelizmente, apesar do muito que dele se esperava, a sua estrela não lhe foi propícia. Quando ela começava a brilhar, vinha aquela mão misteriosa e ocultava-a no firmamento. Essa mão sempre foi a de um amigo ou... Para que contar aqui? Compreendendo isso, desanimado pela maldade dos homens, até mesmo daquele que lhe eram caros, deixou-se ficar para sempre sentado naquela rede de tucum, naquela casa velha, naquele pacato recanto nordestino. Sua vida foi um perpétuo recomeçar...
Anos depois, Marieta, uma das irmãs, aquela que estava casada e residia em Pernambuco, levou a família toda para o Recife. E foi nessa capital que, um dia, morreu o “violão de Alagoas”. Desapareceu sem uma notícia nos jornais, sem alguém que lhe colocasse uma flor sobre a sepultura. É isso que eu, tantos anos depois, nesta cidadezinha paulista, onde ninguém sabe o seu nome nem conhece a sua vida, venho fazer agora. A menina de quatro anos que ele conheceu em Pão de Açúcar, e que às escondidas o ouviu, vem depositar uma flor – uma saudade – sobre a campa rasa, em que, no cemitério do Recife, repousa a poeira sagrada daquele que, em vida, foi um mártir harmonioso – Nezinho Bezerra.
Quando a doença passou, no lugar dos olhinhos azuis, ficaram apenas dois buracos. Com os anos, tornou-se um menino desajustado. Era macambúzio e irritadiço. Recusava qualquer afago, pois talvez visse nisso um ato de piedade. E foi crescendo sem aceitar o auxílio de ninguém...
Pequenino ainda, arrastando-se pela casa, focava horas esquecidas a ouvir o Joaquim martelar o couro, na sua banca de sapateiro. Pelas pancadas, com o correr do tempo, o menino pode distinguir quando o pai estava alegre ou triste, preocupado ou de bom humor. É que seu mundo era feito exclusivamente de sons. Vivia a compará-los, a guardá-los na memória auditiva e na sensibilidade de sua alma. Seus dias eram compridos, vazios. Não brincava com outros meninos de sua idade, nem mesmo com os irmãos. Chupava os dedinhos magros ou, às ocultas, apalpava os olhinhos secos.
Passando por uma lojinha, Joaquim viu uns brinquedos. Lembrou de Nezinho. O menino não tinha nada com que se distrair. Parou. Admirou a exposição das bugigangas e pegou um violãozinho.
- Quanto é isto?
- Quatro tostões.
- Ô, diabo! Um brinquedo tão caro!
O negociante fê-lo examinar:
- Veja, boa madeira... Ótimo som... A criança vai gostar...
Joaquim pensou que o filho gostaria mesmo. Reguingou um pouco. Nada... Tirou os níqueis do bolso. Comprou mesmo pelos quatro tostões.
Quando entregou o brinquedo à mulher, ela achou um despropósito. Dar um cruzado por aquilo!
- Ora, homem. Nezinho nem vê isso... Ao que o marido sentenciou:
- Não vê, mas sente!
Nezinho dormia, ressonando. A mãe, apesar de ter discordado do marido, estava satisfeita. Colocou o violãozinho na rede do filho e saiu, pé ante pé. Mas ficou observando a cena. Ele acordou e, mal se mexeu, sentiu qualquer coisa lhe roçando as costas. Tateou. As mãos esguias puxaram o objeto para si. E na solidão dos seus primeiros meses, sorriu ao sentir-se senhor daquilo. Pelo semblante, o brinquedo fora bem aceito. O menino encontrava um companheiro naquele instrumento elementar e rude. E o pequeno violão adquiriu som entre seus dedinhos mimosos.
Morreu-lhe a mãe. Ficou mais solitário e triste do que antes. Ernestina, a irmã mais velha, voltou-se para ele e assumiu o papel da morta.
Mirrado, débil, levou cinco anos a engatinhar pela casa, com a camisola a atrapalhar as incursões que fazia pelos cômodos daquele casarão antiquado. Arrastava-se de um canto para outro, misturando-se com o cachorro e o gato; punha o violãozinho nos adobos vermelhos e corria os dedinhos pelas cordas, derramando sons incoerentes, mas que o extasiavam. Disso talvez lhe viesse, no futuro, o hábito de tocar com o instrumento deitado sobre o colo. Nessa idade, já distinguia perfeitamente o chiado dos carros de bois subindo e descendo o morro. Era só perguntar-lhe quantos carros vinham e quantos iam e a resposta era precisa. Parava de engatinha e se voltava para o perguntador:
- Três. O do Mané desce como do Tião. E o do “seu” Chico sobe.
O curioso – um cavalão que se divertia com a criança – ia ver se era verdade. Voltava logo com uma alegria ingênua no olhar. E exclamara:
- Eita, Nezinho! Num erra nunca”.
Conhecia carro por carro, pelo chiado. Havia algo que se distinguia e talvez fosse essa a causa da sua inafabilidade. Isso chegou a alarmar as comadres. Para elas, Nezinho diferia de todos os cegos. E, enquanto os pão-de-açucarenses começavam a mostrar estima pelo menino, este se ia distanciando, distanciando...
Aquele brinquedo durou anos. No entanto, com o tempo, lá se foi! Um dos irmãos partira o violãozinho na cabeça do outro. Sabedor da sorte que coubera ao seu instrumento, Nezinho fez barulho. E voltou a sentir-se isolado, num mundo que só permitia entrada de sons. Chegando à idade escolar, Joaquim preparou-o para cursar o Instituto dos Cegos, no Rio de Janeiro.
Voltou já moço. Trazia bengala de junco, terno de linho, chapéu de palha e óculos fumados que lhe davam certa distinção. Caminhava por toda a Pão de Açúcar sem outro guia, a não ser a bengala. O homem muitas vezes tem um cachorro, um cavalo, Nezinho possuía uma bengala. Entendia-a. Batendo com a ponteira no lugar onde pretendia pisar, ouvia seus conselhos: sim ou não. A bengala era seus olhos. Guiava-o sem má vontade nem cansaço, ouvia-lhe os queixumes e as pragas.
Apenas chegado, recebeu convite para reger a banda de Santana do Ipanema, cidade que ficava a doze léguas de Pão de Açúcar. Os fazendeiros de toda a redondeza enviavam-lhe os filhos para aprender música, mas Nezinho não ouvia esses pedidos, tão absorvido estava pelas suas composições. Certa tarde ensolarada, chegou um emissário; vinha convidar o artista a conhecer Maceió. Nezinho aceitou e partiu no dia seguinte. Numerosas pessoas desceram à praia para vê-lo. Um convite de Maceió! E o povo exultou como se cada um fosse o convidado. Nezinho preocupava-se mais com aquela manifestação de amizade do seu povo do que com a sorte de sua música. O grupo conversava sobre o futuro, vaticinando-lhe a glória e ele mantinha-se silencioso, emocionado, apertando mãos amigas. O negro Malaquias interrompeu a conversação. Depois de idas e vindas, carregando malar até o barco à distância, aproximou-se do bando e batendo no pescoço, com um sorriso de orgulho:
- Seu Nezinho, tá cá o cangote. Monte nele... O rapaz despediu-se, pulou para os ombros do Malaquias, que se pôs a atravessar grande parte do rio com o fardo às costas. Não havia ainda cais e as embarcações não chegavam à praia, estacionando no meio do São Francisco. Homens robustos, como o Malaquias, trabalhavam carregando passageiros e mercadorias para o vapor, ou deste para a terra.
*** *** *** *** ***
Maceió recebeu-o como a um filho querido. Teve ai o primeiro contato com a plateia mais suscetível à música. Restava, portanto, aguardar a opinião dos críticos, que nem sempre se mostram favoráveis.
Mas, de Maceió partem louvores entusiásticos, que chegam até o Rio de Janeiro. A capital do país deseja conhecer o artista. Entretanto, por timidez, ou porque seu físico enfraquecido pedia repouso, não se apressou e voltou a Pão de Açúcar. Já reanimado pelo ar do seu torrão, aguardou impaciente novo convite, que chegou meses depois. Fez nova madrugada e embarcou. Mas, no Rio de Janeiro, parte da crítica acha que ele não pode ser comparado a Canhoto. Vencido, regressa a Alagoas, onde pensa continuar como professor. Entretanto, por volta de 1918, um amigo quis levar Nezinho para tocarem juntos. Ele foi.
Na noite em que os dois artistas do violão tocaram, poltronas e mais poltronas foram vendidas até a última hora. Os expectadores dividiam-se em duas facções: os admiradores do paulista e os do alagoano, provavelmente estes eram do Sententrião... Os dois artistas tocaram juntos. Qual seria a opinião da crítica sobre cada um? Surgiram apostas como nas corridas, como nos jogos de futebol. Entretanto, naquela noite, tocaram dois violonistas, ambos com técnica diversa, modos diferentes, mas com a mesma alma de artista. A própria crítica, que tão mal fizera ao alagoano, uniu-se nos louvores. E os que foram assistir ao concerto como quem vai ao estádio ou ao hipódromo, ficaram decepcionados com o “empate”...
Nezinho e Canhoto despediram-se como grandes amigos. E foi o nordestino quem levou o nome do paulista às plagas esquecidas daquele recanto alagoano.
Canhoto regressou a São Paulo e Nezinho resolveu partir para Pão de Açúcar, mas o amigo empresário achou melhor ficar ali, anunciando novos concertos. Assim se fez. Por fim, cansados pela vida que levava havia meses, propôs:
- Um descanso far-me-á bem. Depois voltarei. Mas, por hora, chega. Não aguento mais; qualquer dia caio desmaiado durante o concerto.
O acompanhante assustou-se, fez-se pálido e, minutos depois, descia a escada do hotel e ganhava a rua...
Fugira, levando vinte contos ganhos nos concertos. O desânimo de Nezinho, por saber-se só, foi maior do que a pena causada pelo roubo. Mais do que nunca encheu os ares com suas pragas. Era um pássaro engaiolado. Cantava, mas seu canto se perdia sem um eco. Que devem fazer as aves presas? Não cantar mais. Ele nunca mais tocaria. E seu orgulho doentio sofreu cruelmente. Exilou-se... Passava os dias, violão ao colo, os olhos secos vertendo lágrimas que ele procurava ocultar de si mesmo.
Por sua vontade, ficaria ali até família procurar notícias suas. Não se mexia. Foi seu Argemiro, o dono do hotel, quem telegrafou ao velho Bezerra contando-lhe a situação do filho. O pai não pode fazer a viagem, ficou combalido. Soube então que o filho do Coronel Antônio Machado estava no Rio. Tomou-lhe o endereço e passou um telegrama pedindo que se encarregasse de socorrer o músico. O filho do Coronel recebeu o pedido e cumpriu-o a contento. Dias depois, seu Bezerra recebia outro telegrama avisando da partida de Nezinho. O pobre velho chorou de alegria. O filho, dentro em pouco, estaria de novo no seio da família.
*** *** ***
Durante oito anos, ninguém aludiu, nem de leve, àquele assunto. E Nezinho vivia sem outro desejo senão o de continuar como maestro da banda de Santana do Ipanema. Tocava o dia inteiro, sozinho. Uma tarde, a barca trouxe alguns rapazes e os carregadores transportaram-nos, no cangote, até a praia. Entre eles, dois músicos que Nezinho conhecera no Rio. Perguntaram pela casa do velho Bezerra. Os moleques, cheirando novidade, levaram-nos até lá. O sapateiro trabalhava ainda quando eles lhe tomaram a porta. Foi recebê-los. Ouvindo-os falar, não disse nada e mandou chamar o filho. Nezinho veio. Não recebeu os amigos com efusão nem com frieza, porém, naquela noite, não pode dormir. Tinha a cabeça ardente de sonhos. Eram tão nítidos que parecia vê-los, senti-los. Voltaria ao Rio depois, conforme o sucedido, viajar. Libertava-se do pequeno mundo em que vivia. Uma madrugada partiu levado pelos dois artistas. Novamente os amigos se reuniram ao amanhecer na praia guarnecida de mamoneiras enfileiradas. Adeuses. Votos de felicidades...
Na Capital da República, tocou sem descanso. Emagreceu. As faces encovaram e o corpo arqueou-se. Num desses concertos, um maestro estrangeiro, de passagem pelo Brasil, depois de ouvi-lo, foi procurá-lo e apertou-lhe a mão dizendo:
- Acabo de ouvir o violão de Alagoas!
A frase pegou. E não mais se ouvia ninguém dizer: vou ouvir Nezinho Bezerra, mas o “violão de Alagoas”.
Pão de Açúcar seguia, com olhos amigos, a ascensão do filho mais moço do sapateiro da cidade. À tarde, nas reuniões familiares, vinha sempre à baila o nome de Nezinho. As cartas do Rio chegavam periodicamente. Contavam o que todos já tinham lido nos jornais. Mas, seu Bezerra as lia uma, duas, cinco vezes. Depois de bem decoradas, metia-as no bolso do paletó, deixava a oficina abandonada e saia. Subia a rua Augusta, uma rua comprida e larga, bordada de velhos tamarineiros. Ia direto a nossa casa. Ali reunião os amigos, isto é, quase todos os moradores e, conversa vai, conversa vem, lá ficavam até às nove horas, a hora de se recolher. Então os conversadores se dispersavam. Ele regressava, olhando o chão, um passarinho miúdo de quem não tinha pressa. Alumiava-lhe o luar. O chão, as sambaibas, os ouricuris, as casas, tudo dormia à claridade branca que vinha do céu.
Lá em baixo, o São Francisco falava, ora lento.. lento, ora apressado. Às vezes o velho ia até o rio, admirá-lo, outras ele vinha em linha reto para casa. Atravessava a sala da frente, onde tinha a oficina, olhando para cada peça de ferramenta com o mesmo amor que o filho apalpava o violão. E sorria. Continuava andando a murmurar:
- Se não ficasse cego, estaria batendo sola ou lá no sítio tangendo a boiada!
No dia seguinte, a carta já estava amarfanhada e amarela, tantas as mãos que por ela haviam passado. Cedinho, seu Bezerra recomeçava o serviço. A todo o momento erguia a cabeça para falar com alguém que, passando pela rua, trelia com ele. Não raro, parava para um dedinho de prosa:
- Que é isso seu Joaquim. Não precisa trabalhar mais...
- Precisa-se viver.
- É isso não, seu Joaquim...
- Sei. Já estou muito velho. O sujeito insistia:
- Com um filho artista! E o velho conformado:
- Apois, tenho de trabalhar para sustentar o artista...
O outro lá ia, sorridente, e o velho ajeitava os óculos de aros grossos, punha toda a atenção no serviço. Mas logo deu de ser apanhado falando sozinho. Muitos mangavam dele. Ernestina, quando o via assim, dizia séria, pois a tristeza nunca a deixou esboçar sorriso:
- Pai deu prá contar as moscas...
Ernestina afastava-se, arrastando a enorme saia preta, batendo rapidamente a chinelinha de couro. E o velho voltava ao trabalho.
No Rio, Nezinho sofria como sempre. Estava outra vez só. Os dois amigos, depois de rápida temporada na Capital, resolveram evadir-se. Não julgando Nezinho tal como os demais, comentavam a partida. Nezinho não podia acompanha-los. Um dia se despediram, desejaram-lhe boa sorte e lá foram. O alagoano ficou só e doente, mas sem aquela impressão sufocante de quem se sente preso. O fato de o terem deixado sem constrangimento nem pena, levantou-lhe o moral combalido. Por conseguinte, como da primeira vez, mas por motivo bem diverso, não procurou comunicar ao pai.
Alguém o fez por ele. Seu Bezerra não tinha, no momento, nenhum conhecido no rio. Ficou aéreo. Lembrou-se de Luis, o filho que estava no Espírito Santo, e passou-lhe um telegrama. Luis recebeu a ordem paterna e partiu depressa. Grande surpresa lhe estava reservada. Esperou o irmão como da vez anterior. Enganou-se. Quem lhe veio ao encontro, pensando que tudo fora obra do acaso, foi um rapaz bem disposto e saudável.
Embarcaram para Aracaju, onde ficaram alguns dias no hotel até o momento da partida. Mal a cidade soube da chegada do músico, o hotel ficou apinhado. Todos queriam ouvi-lo. Nezinho, irritado, afirmou que não daria nenhum concerto. Procuraram Luis para convencer o irmão, mas este não intervinha na sua vida artística. Mas, na véspera da partida, quando Nezinho procurou Luis, não o encontrou... Fugira também ele, depois de lhe ter gasto o último vintém! E o músico, com o organismo depauperado, a alma em revolta, cedeu aos pedidos. Realizou dois concertos para poder regressar a Alagoas...
*** *** ***
Quando o conheci, ele já passara por tudo isso. Pequena ainda, e não compreendendo a causa do seu constante mau-humor, eu lhe tinha medo. Na minha pouca idade, julgava-o louco, tal a sua maneira de agir. Estava sempre em nossa casa. Passava, reconhecia o local, entrava. Ia direto à sala de visitas, sentava-se na rede, ao pé da janela e ficava palestrando com mamãe. Certa vez, ele estava lá quando desabou uma tempestade. Explodiu:
- Por que isso não cai em cima de mim e não me arrasa? Mamãe alarmava-se.
- Deus ouve, Nezinho!
- Pois é para isso mesmo! – e sorria feliz com o susto de mamãe.
- Ora, há tantos cegos como você. Não os conheceu no Instituto? Quantos eram?
Não respondia. Evadira-se. Só voltava a si quando ouvia o estourar dos trovões. Então recomeçava:
- Não sei porque a terra não se abriu e me tragou no dia do meu nascimento!
- Nezinho! – e mamãe enxugava os olhos.
Eis a razão do medo que ele me causava. Temia seus repentes e os palavrões. Hoje pergunto: seria ele, realmente, o que procurava parecer? Imagino-o, agora, bem diverso. Fazendo-se de forte para escolher sua debilidade; mostrando-se grosseiro para ninguém lhe ver a alma por demais suave; a praguejar quando ansiava dizer palavras de amor; fingindo-se atrevido quando, na verdade, era a timidez em pessoa. Tinha de ser assim...
Poucas vezes o escutei tocar. Certo dia de feira, bem cedo, burlando a vigilância de mamãe, corri para fora. Desci a rua Augusta, passei diante do casarão antigo, pintado de branco, e parei defronte da casa do seu Bezerra. De dentro, vinha o bater do martelo. Ele ainda não fora à feira. Entrei.
- Bom dia, padrinho Joaquim. Como todas as crianças dali lhe chamavam assim, ele teve de erguer a cabeça e examinar a visitante. Sorriu ao ver-me. Apontou a porta do meio e:
- Entre, Pastora tá lá dentro...
Agora quem sorria era eu. Eram os doces... D. Pastora, sua segunda esposa, de quem não tinha nenhum filho, lembrava a feiticeira de “Branca de Neve”. E tinha, aliada à feiura, uma sovinice que desgostava o marido, e muito mais os de fora. Mas, em toda a cidade, tinham fama os doces de D. Pastora e os sapatos fabricados por Seu Joaquim. Ambos eram insuperáveis na sua arte. Os doces eram guardados no quarto da velha, em baixo da cama. Tudo contado, medido, pesado. O marido pensava que, só em nos mandar entrar, com a recomendação de nos dar doces, seria obedecido. Qual nada! É que nunca percebeu o vintém que levávamos escondido. Eu mesma, naquela manhã, virava e revirava, disfarçadamente, um vintém na mão. Ao obter a permissão, emboquei pelo corredor.
A casa era grande, velha, quase centenária. Vi-me sozinha. A principio, com a esperança dos doces, fiz-me dura, mas fui perdendo a coragem. Entrando por um corredor estreito e escuro, penetrei numa sala muito espaçosa. Tinha duas janelas quadradas, sem vidraças nem cortinas. Grandes móveis envelhecidos e empoeirados se viam nos cantos. No centro, entre uma porta que dava para o oitão, e outra que ia ter à cozinha, estava uma rede de tucum. O seu rec rec povoava a solidão. Era Nezinho a balançar-se com os dedos cruzados sobre o peito e a cabeça pendida para trás. De repende, mal cheguei, levantou a cabeça e olhou para o meu lado. Os óculos escuros estavam fixos em mim. Esperei. Meu instinto não dizia que eu estava descoberta. Pelo contrário, sugeria-me que ele ia tocar. Nisso ele chamou:
- Ernestina! Suspendi a resporação.
- Ernestina! Ô Ernestina!
Na cozinha havia um barulho de tachos, arrastar de pés e logo mais aparecia um rosto suado, curioso. Era uma mulher de meia idade, lenço na cabeça, enxugando as mãos vermelhas no avental enorme, que lhe servia o corpo. Era Ernestina. Ela não falava. Os olhos grandes, sem expressão, adquiriam vida e interrogavam. Nezinho pedia:
- O violão! Traga o violão!
Ernestina saiu como entrou. Mas voltou. Sempre silenciosa, entregou o instrumento ao irmão e afastou-se. Já à porta, indagou:
- Mais alguma coisa, Nezinho?
- Não.
Depois, num tom de voz sego, ele pediu:
- Veja se não tem ninguém por aí, me ouvindo.
Os olhos da mulher percorriam a sala e o oitão. Calei-me à porta, não sabendo se devia ir-me logo sem o doce, ou ficar a ouvir. Aqueles olhos da mulher passaram por mim sem me ver e:
- Ninguém, Nezinho.
Saiu arrastando as chinelas de couro, varrendo a sala com a saia comprida. Botei o rosto para fora da porta, já decidida a ficar e espiei. Nezinho sentou-se. Colocava o violão deitado no colo e com uma das mãos movimentava as cordas. Fiquei parada, ouvindo-o. Talvez tivesse feito algum barulho, imperceptível para mim, mas perceptível para o seu instinto, pois indagou irritado:
- Quem está aí? Não dei resposta. Então ele se levantou, foi até a janela, andou de um lado para outro, sem suspeitar que alguém pudesse estar oculto atrás de uma folha da porta. Depois, convencido de que não se enganara, voltou e se sentou na rede. Ai realizou operação aparentemente fácil, mas bem difícil de descrever. Tomou de uma gaita, dessas que os meninos passam e repassam pela boca, mas com armações que pareciam de óculos, prendendo-se às orelhas pelas duas hastes, de modo a ficar com a linha perfurada, de sopro, bem junta aos lábios. Essa gaita para ele, talvez para os músicos de Pão de Açúcar, era conhecida pelo nome de realejo, o que parece absurdo, mas justificado até certo ponto pelas aberrações da linguagem de grupos. Passou a boca sobre ela, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Experimentou-a. Suas notas eram claras e alegres. A seguir, deitou o violão no colo e passou os dedos sobre as cordas, tirando cascatas de sons.
A música invadiu a sala, jorrou pela janela do oitão, escancarada. A alma aprisionada de Nezinho como fugia com ela. O que ficou sobre a rede foi um homem triste, a assoprar a gaita, a apalpar o violão com as pontas dos dedos. E, aos meus olhos de menina nervosa, ele tomou proporções fantásticas. Enquanto tocava um instrumento, fazia-se acompanhar pelo outro. E enquanto executava a partitura, grossa lágrimas rolavam-lhe pelas faces encovadas e esmaecidas. Vendo-o assim, fique tão fora de mim que me traí. Avancei para ele e:
- Que música é essa, Nezinho? ...
Ele pareceu cair de muito alto, mas não se zangou. Chegou mesmo a responder-me numa voz mansa:
- O Guarani. Esta composição leva-nos muito alto, a uma região cheia de sol, onde tudo resplandece e a luz não conhece sombras... Falava mansamente. Era assim que devia ser a sua alma. Mansa e humilde, para poder elevar-se ao céu. E falava em luz, em sol... Ele que dizia odiar o sol por não nunca o ter visto, que dizia odiar a luz por não ser sensível a seus pobres olhos vazios... Isso foi rápido. Voltando a si, esbravejou. Chamou Ernestina. Brigou tanta que sumi de lá, sem me lembrar dos doces...Contudo, ficou-me na lembrança aquela sala ensombrada, de móveis rústicos e empoeirados, cheirando a couro curtido e a doces frescos. Infelizmente, apesar do muito que dele se esperava, a sua estrela não lhe foi propícia. Quando ela começava a brilhar, vinha aquela mão misteriosa e ocultava-a no firmamento. Essa mão sempre foi a de um amigo ou... Para que contar aqui? Compreendendo isso, desanimado pela maldade dos homens, até mesmo daquele que lhe eram caros, deixou-se ficar para sempre sentado naquela rede de tucum, naquela casa velha, naquele pacato recanto nordestino. Sua vida foi um perpétuo recomeçar...
Anos depois, Marieta, uma das irmãs, aquela que estava casada e residia em Pernambuco, levou a família toda para o Recife. E foi nessa capital que, um dia, morreu o “violão de Alagoas”. Desapareceu sem uma notícia nos jornais, sem alguém que lhe colocasse uma flor sobre a sepultura. É isso que eu, tantos anos depois, nesta cidadezinha paulista, onde ninguém sabe o seu nome nem conhece a sua vida, venho fazer agora. A menina de quatro anos que ele conheceu em Pão de Açúcar, e que às escondidas o ouviu, vem depositar uma flor – uma saudade – sobre a campa rasa, em que, no cemitério do Recife, repousa a poeira sagrada daquele que, em vida, foi um mártir harmonioso – Nezinho Bezerra.
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REVISTA DA SEMANA, RJ, 11 e 18 de abril de 1953.
Fonte: Hemeroteca Digital. Disponível em: .
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