Por Moreno Brandão²
Maceió,
maio (Agência Brasileira) – Arquitetos de ruínas.
Há
cerca de 27 anos a Vila da Pedra era uma pobre estação da encaiporada Estrada
de Ferro de Paulo Afonso. Apesar desse privilégio, aquele insignificante lugarejo
não tinha o menor adiantamento, podendo se dizer que era totalmente despovoado,
visto como, nas adjacências da estação, apenas havia duas casas. Por esse
tempo, mais ou menos, apareceu ali o coronel Delmiro Gouveia, homem de largo
descortino e de aptidões comerciais próprios dos millardários norte-americanos.
Delmiro
vinha buscar refúgio de Alagoas, cansado de lutas aspérrimas em que se metera
contra a situação, àquela época, dominante em Pernambuco.
Batendo-se
contra a mesma situação, o atilado negociante consumira grande parte de seus
cabedais.
Com
as somas restantes, com o auxílio valioso de seu crédito, com a benevolência
plausível e inteligente do governo de Alagoas, Delmiro Gouveia iniciou a obra
gloriosa que agora acaba de ser brutalmente destruída.
A
Pedra era um desses, que ele transformou em uma região fértil e povoada, onde
dia a dia se levantam casas.
Os
que vinham residir naquele povoado traziam, quase sempre, hábitos deploráveis
de sordidez e incontinência, mas foram forçados a praticar rigorosamente os
preceitos da higiene, tornando-se limpos e temperantes.
Da
Pedra foram draconicamente afastados os vendedores de aguardente e os que se
deleitavam com a perniciosa bebida.
Em
regra geral as mulheres residentes nas aldeias são dadas ao tabagismo. Não
usam, porém, cigarros finos e perfumados, dando preferência ao odioso cachimbo
de barro.
Esse
instrumento repugnante de gozo nunca penetrou na Vila da Pedra.
Mantendo
uma disciplina prusciana, à Conde de Lippe, Delmiro Gouveia, se algumas vezes
se demasiou em atos de descabida e ilimitada energia, saturou os sertanejos a
seu serviço de ideias elevadas e nobres e de aspirações invulgares em terras
onde são raros os que têm a mais ligeira noção de previdência e o menor
propósito de conforto.
A
par de algumas proibições que apenas revelavam excessos de mandonismo
ditatorial, Delmiro Gouveia punha em prática delicadezas próprias de um
cavalheiro magnânimo. O seu cuidado pelos meninos descendentes dos operários
empregados na fábrica da Pedra era extraordinário. Ele os queria instruídos,
fortes e independentes, para o que mantinha excelentes escolas na vila
operária, simulacros de ginásios e pagava salários aos pequenos para os quaís reservava
certas tarefas menos árduas e nocivas.
Fazia
também questão capital de que, no povoado onde tinha pleno domínio, não se
verificasse o menor atentado ao pudor.
E
com esse propósito chegou uma feita a uma medida excessivamente rigorosa e muito
censurada. Mas, em compensação, quantos operários casassem na Pedra, receberiam
dele o trajo completo do casamento, presente quase sempre de muito bom gosto
artístico e de preço elevado.
Na
Pedra, onde há cerca de 3 decênios, o único divertimento popular consistia em
cavalhadas de usança antiquíssima, estabeleceram-se diversões modernas, para as
quais havia magníficas instalações.
Viver
naquele povoado era, há cerca de três décadas, isolar-se completamente do
mundo, e ignorar o que se passava em alguns pontos um tanto remoto.
Delmiro
Gouveia deu remédio a isso, conseguindo que se estabelecesse na Pedra uma Estação
Telegráfica, uma Agência dos Correios e um órgão hebdomadário intitulado “Correio
da Pedra”, jornal muito bem impresso, criterioso, e cheio de artigos e notícias
interessantes. Com todos esses atrativos a Pedra tornou-se um centro de
convergência de sertajejos residentes nos municípios propínquos, os quais ali
recebiam lições de cultura e disciplina.
Infelizmente,
uma alma danada e perversa planejou o assassínio de Delmiro Gouveia, o qual foi
realizado de modo admirável, a despeito da infinidade de precauções tomadas
pelo grande industrial para evitar a sanha tigrina dos seus inimigos.
A
polícia negligente, ronceira, se acumpliciou com os executadores do hediondo
homicídio e, empregando as artimanhas do mais inconcebível maquiavelismo,
deixou inculto o tenebroso crime, pelo qual estão espiando uns pobres diabos,
vítimas do mais tremendo erro judiciário verificado em Alagoas.
A
obra realmente benemérita do operoso cearense a que Alagoas tanto deve não se
interrompeu com o seu desaparecimento súbito, continuando a Pedra a ser como
que um farol que lançava projeções deslumbrantes sobre regiões tenebrosas.
Dado
o impulso inicial pelo inesquecível pioneiro da civilização, foi muito fácil
aos seus associados, principalmente ao Sr. Leonello Iona, continuarem o que se
começara sob tão bons auspícios.
Infelizmente,
a sombra corvejativa de uma asa negra pairava sobre a admirável criação de
Demiro Gouveia – a conhecida e tradicional Companhia Agro-Fabril Mercantil. Era
a “Machine Cotton”.
Esta
companhia, formada por indivíduos ousados de gana infartável de dinheiro,
coadunava com a existência de uma fábrica de linhas, que fizesse concorrência
aos seus estabelecimentos. E, como era assim a sua norma deplorável de ação,
começou ela a promover hostilidades contra a Companhia Agro-Fabril Mercantil
que, não obstante, progredia, conquistando quase todos os mercados brasileiros,
salvo os do Estado do Maranhão.
Depois
de algumas vicissitudes, a mesma empresa passou a ser propriedade dos Srs.
Menezes & Irmãos, que absolutamente não se afastaram, senão em
insignificantes minúcias, do programa delineado e fielmente executado por
Delmiro Gouveia.
Mas
sobreveio a tremenda crise em que o Brasil ainda se está debatendo.
Os
gêneros, que mais copiosamente produzimos, se desvalorizaram; a indústria têxtil
chegou a uma situação de extrema precariedade, o comércio vive oscilando entre
as concordatas e falências.
Por
mais sólida que fosse a firma Menezes & Irmãos, teria também de ceder às
acabrunhantes contingências impostas pela crise.
Com
um enorme “stock” de linhas que não se vendiam, com um acerco extraordinário de
dívidas ativas de que não conseguia receber nada, aquela firma recifense tentou
um empréstimo avultoso, em favor do qual emprenharam esforços enérgicos os Srs.
Dr. Estácio Coimbra, governador de Pernambuco, e Álvaro Paes, governador de
Alagoas. Nada se conseguiu dos estabelecimentos bancários perante os quais se
promoveu a importante operação.
Premida
por sérias dificuldades, a sociedade proprietária da Pedra teve de aliená-la,
cabendo à “Machine Cotton” se apropriar do estabelecimento fabril a que ela
votara tremenda execração.
Como
o indivíduo que tem a sordidez e a gana de vingança próprias de Shylock, a “Machine
Cotton” satisfez a fereza de seus instintos, suspendendo os trabalhos da
fábrica da Pedra e mandando arrebentar maquinismos novos e aperfeiçoados que os
Srs. Menezes & Irmãos iam instalar.
E,
assim, em virtude da ferocidade de uma cupidez bárbara sem limites, sofrem as
consternadas paragens dos sertões de Alagoas, Pernambuco e Bahia o mais
tremendo dos retrocessos.
Como
era natural, a “Machine Cotton” ficou geralmente odiada em Alagoas que, se for
possível, boicotará os seus produtos, até o momento em que essa companhia gananciosa
e prepotente se dispuser a prosseguir na obra civilizadora encetada por Delmiro
Gouveia.
A
atitude dessa poderosa empresa produziu nesta capital a mais vibrante
indignação.
Pode-se
avaliar a que ponto chegou essa indignação ou na vila operária da Pedra, ou nos
municípios propinquos àquele onde se elevou a construção gigantesca demolida
agora num acesso fremente e imperdoável de egoísmo e brutalidade.
Fôssemos
nós os autores de um ato tão deplorável, e, com certeza, os nossos censores
estrangeiros não deixariam de, referindo-se a ele, pôr em evidência o estado
rudimentar de nossa civilização.
Mas
quem toma alvitres semelhantes ao que recentemente foi posto em prática na vila
operária da Pedra, não merece o título de bárbaro, porque é apenas digno do de
selvagem.
_________________
¹
Publicado no jornal Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1930.
²
Francisco Henrique Moreno Brandão, nasceu em Pão de açúcar, a 14/09/1875 e
faleceu em Maceió, a 27/08/1938.
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OS PIRILAMPOS (Lendas sanfranciscanas)
Por Francisco Henrique Moreno Brandão¹
A noite, muito negra e muito fria,
veio de inferno.
Por isso, no samba animado que havia
em casa de Aninha Peixe, não se dava um intervalo entre uma dança e outra sem
que a comparência, de parte as distinções de sexo ou de idade, não fosse ingerindo
goles sucessivos de camboim, deliciosa bebida fabricada nos engenhos de Brejo
Grande e Piaçabuçu e trazida para ali na sua canoa, alcunhada de “Flor da
Bocarra”, pelo Manoel de Serva.
Depois as “cirandas” e outras
espécies coreográficas do populário brasileiro continuavam, dando ensejo a que
aqueles próximos descendentes dos urumarys, em meneios pecaminosos, em cortejos
lúbricos a que nenhuma dama se furtava, revelassem a força incontestável de um
atavismo sempre em vésperas de repontar estuoso.
A sala tibiamente alumiada por um
“alcoviteiro” era um apartamento sórdido, sem reboco, nem ladrilho. A poeira
que os pés dos dançarinos levantavam se juntava à fumaça dos cigarros amarelos
ordinários e ao cheiro acre dos corpos suarentos.
Tudo isto tornava a atmosfera
irrespirável e parecia aumentar a excitação nervosa dos dançadores.
Lá na cozinha, duas velha memoravam
as virtudes do fundador daquela aldeia, Frei Dorotheu, um verdadeiro taumaturgo,
que ali se entregara a uma catequese, cujos frutos estavam agora bem visíveis
no mais repugnante dos contrastes.
De casario alinhado e relativamente
confortável, erguido no tempo do frade franciscano, subsistia apenas uma ruinaria
extensa, bem diversa do que era visto nas eras de esplendor da Ilha de São
Pedro.
O convento de taipa fora também se
desmoronando aos poucos. Ora uma goteira renitente vinha apodrecer uma tábua do
soalho, ora uma rajada frenética do vento sueste, atingindo violentamente uma
janela, a quebrava. Mais tarde caia um trecho do frontispício e a brecha que
ficava, ia-se alargando desmensuradamente.
Mão fatídica parecia ir derrubando
as telhas da cobertura, hoje uma, amanhã outra, mais tarde outra,
sucessivamente outras e outras, e assim por diante.
O estrago se consumiu tão
celeremente, que o andar térreo do convento se tornou uma pocilga de bácoros e
no compartimento superior, nas celas despovoadas de frades, fizeram repugnantes
morcegos o seu poso habitual e querido.
Não era menor a deterioração da
igreja, cuja fachada um raio rachara de meio a meio.
Das imagens que ali houvera poucas
restavam, pois quase todas foram surrupiadas, não faltando um novo Judas que
vendesse outra vez o desdenhado Cristo. As que ficavam nos seus nichos tinha o
aspecto grotesco de bonzos e se mostravam de uma amarelidão ictérica, pois as
frequentes intempéries as haviam cruelmente descolorido.
O próprio ladrilho do templo fora
torpemente roubado e andava servindo de múltiplos misteres nas casas que, na
Ilha de São Pedro, não estavam ainda desertas.
Morto o pastor zeloso, esborcinadas
as construções que ele fizera, pedindo esmolas em uma e outra margem do São Francisco,
também os sampedrenses, esquecendo exemplos e conselhos, se desmandaram. Apareceu
logo um mandão feroz, que passou a viver de rapinas, impondo terror a todo
mundo, tomando criações aos donos, comprando fiado e pagando com desaforos e
ameaças, raptando as mulheres e filhas alheias, até que montou um serralho
povoado por umas cinco ou seis pelioas que os seus gostos mutáveis os forçavam
a trocar por outras novas. O exemplo da lasciva despeiada medrou de tal forma
que ninguém em breve se arriscava a casar com moça de São Pedro, receoso de um
logro.
Por sua vez, as mulheres casadas não
estavam longe de certas tendências pecaminosas e raríssimas eram aquelas que
não se mostravam muito latitudinárias em matéria de concessões amatoriais.
Com isso começou também a predominar
em longa escala a embriaguês, que empolgava desde a criança de 8 anos até o
septuagenário de giba proeminente, encurvado para o chão, de olhos mortiços e
passos trêmulos.
Como dois lances de redes deitada ao
São Francisco bastavam para garantir abundante colheita de peixes, e dois
mergulhos de covos davam, em camarões enormes, uma quantidade miraculosa, quase
não se trabalhava na antiga aldeia, e todos viviam mais ou menos bem.
A serraria fechada, onde ninguém
mourejava mais, fora dilapidada no melhor do seu acervo de ferramentas, e agora
fazia prodígios de equilíbrio para não se nivelar com o solo, quando o vento
canalizado entre as alas da cordilheira marginal ao mediterrâneo brasileiro
rugia com ímpeto descomunal.
As roças eram meia dúzia de metros
plantados por um sampedrense mais laborioso e rapinadas pela coletividade
insulana em peso.
No quadro que outrora formava a
aldeia havia cinco ou seis tavernas e outras tantas casas de jogo. Em umas e
outras as rixas eram frequentes, havendo facadas, tiros e punhaladas, que
ninguém punia.
Mas, enquanto esses lugares suspeitos
andavam repletos de frequentadores, a olaria contava apenas com a assiduidade
de duas ou três velhas de face repulsiva, as quais ali praticavam a mais
rudimentar das indústrias.
Esse descalabro fez que as
afugentassem de São Pedro as massas numerosas que, no mês de janeiro, iam ali
assistir às festas proverbiais do Espírito Santo. Para ela convergia tudo
quanto havia de mais seleto na região oparina e a pobre ilha habitada por
cabolhos semi-civilizados, se transfigurava faustamente, dando a impressão de
uma metrópole regularmente povoada, tamanho era o movimento da rua. Agora nada
disso se via. Nem ao menos, cumprindo a última vontade de Frei Dorotheu, no dia
do celeste claviculário, havia ateada em frente a cada residência uma fogueira.
Como lhe esqueceram depressa as injunções, faziam justamente o que ele
expressamente proibia.
Viviam em contínuos batuques de que
um dos mais estridentes era aquele que estava sendo realizado na noite do
pescador apostolar.
É verdade que as almas cândidas
sempre lembradas do frade santo estavam a esperar a cada momento que o poderio
deste se mostrasse num castigo exemplar.
O castigo não veio, porém veio uma
advertência. Das bandas do nascente, miríades incontáveis de pirilampos
apareceram, cobrindo o comprimento do diâmetro da ilha circular. Esses
vagalumes, ora formavam um listrão enorme, ora davam a ideia perfeita de um
círculo ou de uma elipse, ora se dispunham triangularmente, mais tarde surgiam
em pelotões dispersos em falanges que acima da ilha procuravam direções
inteiramente díspares. Por fim, pousando, num átomo, sobre uma tamarineira
existente diante do convento, ali ficaram, dando a ideia de uma iluminação
fantástica.
A recomendação de Frei Dorotheu foi
então lembrada e os foliões ébrios que dançavam lubricamente na casa de Aninha
Peixe foram se dispersando, dispersando, medrosos e enfiados.
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¹
Transcrito do jornal A ESQUERDA, Rio de Janeiro, 17 de julho de 1931.
Disponível em: memoria.bn.br.
Foto: portodafolha.com
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