Massilon Ferreira da Silva¹
Ao morrer que me deixem ser levado
Em pomposo cortejo que evolui
Em cantos solenes entoados,
Qual soberano egípcio (que não fui)
Depositem meu corpo inanimado
Num sarcófago envolto em ouro e prata,
E por companheiros, bem ao lado,
O wisk e o cigarro de Sinatra.
Sob a luz de uma estrela radiosa
E ao som de melodias eloquentes,
Habitarei entre jardins em Nínive.
Adornado com pétalas de rosas,
Embriagar -me - ei eternamente
De amor das mulheres que não tive.
____________
PÁGINAS
▼
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
sábado, 25 de outubro de 2014
NOITE DE INSÔNIA
Arthur
Azevedo
Se
há marido e mulher perfeitamente felizes, são os Guedes. Não se casaram por
paixão, mas o amor nunca lhes desertou da casa. Há muito tempo que isto dura,
como no primeiro dia.
D. Hortência não tem ciúme do
Guedes, nem este lhe dá motivos para isso. É verdade que, com três ou quatro
meses de casado, começou a esgueirar-se depois do jantar, voltando à
meia-noite. Mas, ainda hoje, nenhuma só vez capaz de sair sem perguntar a D.
Hortência:
— Queres ir?
Ela
prefere ficar em casa. Ainda está por haver outra senhora mais amiga dos seus
cômodos.
Uma noite, por acaso, Guedes entrou
em casa fora da hora habitual, e D. Hortência no dia seguinte pediu-lhe, com
muito bons modos, que nunca mais ficasse além da meia-noite.
— Bravo! – exclamou o marido. Aí
estão eles!
— Eles quem?
— Os ciúmes!
— Ora, que tolice! Ciúmes de que? De
quem? Não, senhor. Não são ciúmes. Apenas acho muito feio que um homem casado
fique na rua depois de meia-noite, sem sua mulher.
— Desculpa, o meu relógio estava
atrasado.
— Olha, se repetes esta gracinha,
ciúmes não tenho, mas zango-me deveras. Vê que é a primeira coisa que te peço.
— E espero que não seja a última.
Daí por diante o relógio do Guedes
nunca mais se atrasou. Era dar meia-noite e ele a entrar em casa. D. Hortência
adormecia invariavelmente uma hora antes. Os dois esposos só se falavam pela
manhã.
II
Entretanto, o Guedes era um modelo
de fidelidade conjugal; resistia a todas as tentações, livrando-se vitorioso
dos mais arriscados encontros. Ia todas as noites aos teatros, mas só dava
atenção às peças que se representavam e aos amigos com quem se aborrecia nos
entreatos.
Uma noite — noite fatal, um amigo: o
Remígio, o encontrou no Recreio e o convidou para uma ligeira patuscada, perto dali,
na rua do Núncio. Batizava seu filho. Tratava de dar cabo a um magnífico peru, que em vida se mostrara digno de um jardim zoológico e, depois de morto, faria as delícias do mais impertinente luculo.
O Guedes era o que se chama um bom
garfo. E em se tratando de peru assado, o pobre rapaz estava perdido. Por isto
aceitou o convite depois de perguntar:
— À meia-noite eu posso estar em
casa?
— Ora! Ora! Ora!
III
À meia-noite ainda o peru estava
intacto, e os convidados do Remígio fariam cruzes na boca. O Guedes, esquentado
por alguns cálices de conhaque e interessado por uma partida de gamão,
deixava-se estar muito tranquilo, à espera que dessem o sinal de ataque.
Para encurtar razões, quando deu por
si, passava de três horas.
— Que diabos!
Saiu inquieto e meio lá meio cá
porque o peru tinha sido abundantemente regado a um delicioso Collares.
Quando chegou ao Largo da Carioca,
os operários passavam para o trabalho, os vendedores ambulantes de peixe, fruta
e verdura atravessavam as ruas com os samburás vazios, na direção do Mercado.
A cidade despertava.
— Ora esta! Ora esta! Com que cara
vou aparecer a Hortência? Ora esta!
E quando entrou nos penates, era dia
claro!
IV
Penetrou no quarto de toucar que
ficava contíguo à alcova conjugal, sem que a porta rangesse nos gonzos, como de
costume, e começou a despir-se.
Mas, era preciso luz: não havia meio
de encontrar as chinelas. O Guedes riscou um fósforo e acendeu o bico de gás.
Nisto, ouviu D Hortência remexer-se no leito e suspirar largamente. Ficou frio
como um ladrão.
O pobre marido estava pronto para ir
deitar-se e cobrava ânimo para entrar na alcova, quando a voz de D. Hortência
quebrou aquele silêncio profundo:
— Guedes?
Mas esse “Guedes” era dito num tom
sereno, tranquilo, afetuoso.
O delinquente não respondeu; ela
repetiu:
— Guedes?
— Heim?
— Aonde vai você tão cedo?
— Como?
— Você não se está vestindo para
sair?
O Guedes compreendeu tudo. Estava
salvo! E respondeu imperturbavelmente:
— Passei uma noite de insônia. Desde
a meia-noite que me viro e reviro em nossa cama. Vou respirar um pouco do ar da
manhã, e ver se me faz bem...
E o mísero rapaz, cansado,
aborrecido, morto de sono — e meio cá meio lá — teve que vestir-se de novo e
dar um passeio matinal... forçado.
Estava punido, e D. Hortência
vingada... sem o saber.
____________
Extraído do jornal pão-de-açucarense A IDÉIA, 1910.
Arthur Azevedo. Nasceu em São Luiz (MA), a 07/07/1855 e faleceu no Rio de Janeiro, a 22/10/1908.
Filho de David Gonçalves de Azevedo (Vice-Cônsul de Portugal em São Luiz) e Emília Amália Pinto de Magalhães. Era irmão mais velho de Aluísio Azevedo, autor de O Cortiço.