Conto
de Breno Accioly[i]
Lembro-me
numa memória que me conta o meu Natal de nove anos. Era um Natal possuindo
todas asBreno Accioly. Revista Sombra-1949
cores do mar bem como todos os desenhos das nuvens, e não lhe
faltavam, apesar de toda essa riqueza estratosférica e marítima, as vozes da
Nau Catarineta se arrebentando na amplidão de adeuses, sempre comoventes.
O
Natal do bairro da Levada da sonolenta Maceió possuía manjedoura, além dos três
Reis Magos, e a ele aderiam caixeiros, gigolôs, seminaristas, mulheres de cinco
cruzeiros, viúvas, investigadores, Juízes, Cônegos, Desembargadores e doidos
que ficavam escavacando as cavernas das ventas com lâminas de unhas
emporcalhadas, quando não soltavam palavrões, faziam gestos obscenos com as
mãos, os dedos, os punhos, as línguas. Isso acontecia em Maceió, mesmo pobre
apesar das riquezas da Nau Catarineta, apesar dos berros dos instrumentos de
uma banda de música lembrarem furiosas gargantas de crianças em férias.
Não
havia Nau Catarineta nem banda de música no Natal de Santana do Ipanema,
tampouco aqueles cestos subindo pessoas na Roda Gigante. Havia, no entanto, o
Presépio de “Seu Hermídio”, um artesão que obumbrava o prestígio do Padre
Bulhões porque era ele o maior homem do Natal. Padre Bulhões perdia longe para
Seu Hermídio, não porque a casa de Seu Hermídio possuísse uma sala que podia
ser comparada a uma nave, de tão grande. Mas pelo motivo de Seu Hermídio viver
de canivete nas mãos, esburacando palmos e palmos de madeira, talhando, dando
formas de imagens a toros, que eram trazidos dos montes nos lombos de jumentos,
na cabeça de biscateiros encachaçados e pornográficos. A matutada gostava de
Seu Hermídio, outrossim, as crianças que aprendendo a falar logo balbuciavam
“Sê Hermidi” – tão vasto como um rio, tão sozinho como um caramujo, tão
impenetrável qual o mistério da morte.
Todos
desconheciam o motivo por que Seu Hermídio não arredava o pé de casa, jamais
alimentara um namoro, outrossim, ninguém sabia ao certo onde ele havia nascido
nem pessoa alguma sabia precisar em que ano chegara a Santana do Ipanema aquele
homem, alto, magro, à maneira de um cachorro faminto, olhando a todos de viés
como se amasse a perspectiva dos ângulos; aquele home que tinha como mundo uma
casa de platibanda vermelha, coberta de telhas encardidas, bolorentas.
Quando
os habitantes de Santana do Ipanema abriram os olhos, era Seu Hermídio, o mais
íntimo de toda a cidade, aquele que recebia das crianças mais afeto, pois as
crianças Seu Hermídio parecia viver. Todas as vezes que o procuravam,
encontravam-no, ou deslocando os olhos de Santa Luzia, ou pintando as chagas de
São Roque, quando não colava um braço de um boneco maneta, destorcia o pescoço
de um soldado de molas, aleijado à fúria de mãos inocentes.
Mas,
como era suja a casa de Seu Hermídio! Aranhas bordavam redes e lenços de prata
que tão leves, não conseguiriam desfazer o equilíbrio da mais delicada e
sensível das balanças.
E
ainda existiam sapos enormes, alimentando-se de insetos que, por acaso, fossem
visitar a cozinha, sapos-cururus, sapos-mijadores capazes de cegar alguém com
aqueles esguichos qual jatos de pútridos lança-perfumes. Seu Hermídio também
não temia as lacraias, silêncios repelentes, abomináveis ferrões vermelhos,
longe ou perto das paredes, imóveis à maneira de crocodilos.
Das
redondezas chegava gente a procurar Seu Hermídio, a trazer-lhe imagens
desbotadas, crucifixos pubos, uma porção de coisas velhas, do tempo do onça,
que pediam a atenção de mãos hábeis. E as mãos de Seu Hermídio davam jeito,
descobriam um modo de amenizar aleijões, recompor traços e silhuetas devoradas
pela gulodice do tempo.
Somente
à véspera da Noite de Natal Seu Hermídio espanava as janelas, enxotava os
sapos, espantava caranguejeiras de pernas cabeludas, ao tempo em que arrancava
da face aquela tristeza que lhe adormecia os olhos, punha de lado aquela sua
paciência, tão comum na vida dos bois. E fazia tudo isso para escancarar as
portas, deixar à vista de todos o seu Presépio, onde o Menino-Deus dormia numa
manjedoura do tamanho de uma banana-pão.
O
presépio de Seu Hermídio era uma gama de molas invisíveis. Se se pusessem
quinhentos réis no buraco de uma salva de papelão, colocada à direção do Norte,
o Menino-Deus acordava e deixava ver-se-lhe o azul dos olhos sorrindo, enquanto
Nossa Senhora balançava a cabeça, agradecendo liturgicamente, São José levava a
mão direita até as barbas (não sei por que), enquanto os cavalos dos três Reis
Magos faziam menção de galopar pela estrabaria adentro. O Presépio de Seu
Hermício estava cheio de molas invisíveis, repito. E sentado ao lado do
Presépio, à direção do Sul, Seu Hermídio vigiava os matutos que se
acotovelavam, praguejavam ao disputar um lugar bem próximo do sorvedouro da
salva de papelão.
Toda
aquela engrenagem parecia suportar o peso de todas as esmolas do mundo. E que
engrenagem inteligente! Se a esmola fosse de mil réis, o Menino-Deus ficava
mais tempo acordado enquanto a Estrela D’Alva se inundava de uma luz perene.
Tudo no Presépio era calculado, pois ninguém podia escurecer os dedos tocando
naquele Rei Mago de cor preta. Dir-se-ia que o Presépio se assemelhava a um
mundo, cujas fronteiras fossem de arame farpado. Um parapeito impedia de ver-se
mais de perto as ovelhas enfiarem a boca nos feixes de palhas; somente ao
alcance da gente ficava a salva de papelão, engolindo, engolindo moedas, sem
cerimônia como um insaciável estômago uivante.
Não
posso esquecer-me da pergunta que fizera à minha avó:
-
Terá por aqui um Presépio como o de Seu Hermírio?
A
resposta me magoou. E por isso mesmo eu detestei o rolar amoroso da Roda
Gigante do Natal de Maceió, achei sem sabor o caldo de cana, recusei,
obstinado, o convite que recebera de atirar fechas num alvo de fácil alcance,
porque meu pensamento me levava para perto do Presépio de Seu Hermídio, para
perto de uma véspera de Natal em Santana do Ipanema, precisamente há um ano
atrás, onde eu não me cansava de admirar a sabedoria de um homem
semi-analfabeto enriquecer ainda mais a riqueza dos sonhos mirabolantes de meus
nove anos, com aquela Nossa Senhora balançando a cabeça, agradecendo as
esmolas, liturgicamente, e o Menino-Deus sempre acordando para melhor ver a
ingenuidade dos sertanejos.
Transcrito
da revista A CIGARRA, Rio de Janeiro, dezembro de 1954.
Caro
leitor,
Este
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com
informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em
qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é
correto e justo.
[i]
BRENO ROCHA ACCIOLY. (Santana do Ipanema -
AL 22/03/1921 - Rio de Janeiro - RJ 13/03/1966). Escritor,
jornalista, médico. Filho de Manuel Xavier Accioly e de Maria de Lourdes
Rocha Accioly. Aos nove anos foi morar em Maceió onde terminou os preparatórios
no Colégio Diocesano. No Recife, em 1938, fez o curso pré-médico no Ginásio
Pernambucano. Matriculou-se na Escola de Medicina do Recife (PE), mas sua
inclinação era para a literatura. Participou do Congresso de Poesias, realizado
1941. Colaborou no jornal da arquidiocese alagoana, O Semeador, a partir de 1937.
Em dezembro de 1942 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso
na Faculdade de Ciências Médicas (1946), especializando-se em hanseníase.
Foi médico da Prefeitura da então capital federal. Colaborou
nos Diários Associados, na Revista do Brasil e
em Autores e Livros, quando de sua vida
acadêmica no Recife, com
destaque para O Jornal de Alagoas da
década de 1950, em seu suplemento dirigido pelo jornalista Arnoldo Jambo.
Participou do grupo da Revista Branca. Escreveu
crônicas para rádios e jornais. Permaneceu, algum tempo, internado em uma
clínica psiquiátrica. Patrono da cadeira nº 19 da ACALA. Patrono da
cadeira nº 05 da ASCLA. Obras: João Urso, Rio
de Janeiro: Edições EPASA, 1944, com o qual recebeu o prêmio Coelho Neto, da
ABL, bem como o prêmio de contos Afonso Arinos, da ABL e o prêmio Graça
Aranha da Fundação Graça Aranha, prefácio de José Lins do Rego; Cogumelos, Rio de
Janeiro: Edição A Noite, 1949, prefácio de Gilberto Freyre (contos).; Contos, Rio de
Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1953; Maria
Pudim, Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora,
1955, capa de Poty (contos); Dunas, Rio
de Janeiro:Ed. O Cruzeiro, 1955 (romance); Os
Cata-Ventos, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1962 (contos). A Eucaristia e a
Verdade, in Primeira Semana Eucharística
Parochial, de 24 a 31 de Outubro de 1937, na Igreja Matriz de Jaraguá, Maceió:
1937, p. 198-205. Deixou inédito: Siracusa, Pedras e Izabela, três
romances. Foram publicados: Os Melhores Contos de
Breno Accioly, seleção de Ricardo Ramos, São Paulo: Global
Editora, 1984 e Onze Contos Inéditos, Maceió:
Edicultec, 1989, organização de Rommel Acioly, ilustrações de Darel e Bruno
Giorgi; Breno Accioly: Obras Reunidas, São Paulo:
Escrituras, 1999. João Urso Urso Contos
Incríveis de Breno Accioly, Maceió: Imprensa Oficial Graciliano
Ramos, 2015. Breno Accioly Onze Contos
Inéditos, Maceió: Edicultec, 1989, organização de Rommel
Acioly, ilustrações de Darel e Bruno Giorgi. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.
Etevaldo, meu amigo... Breno Accioly é fantástico. Ganhei de um santanense amigo, seu primeiro livro. Onde entre tantas preciosidades, tem o conto : João Urso. Belíssimo. Obrigada pela partilha. Um grande abraço,
ResponderExcluirGorettI Brandão