Hormino
Lyra[i]
Hormino Lyra |
Filha
do rei da lua e de uma fada, com seu busto de mulher encantadora e cauda de
peixe, governava MÃE-D’ÁGUA todos os rios, todos os mares, por ordem da
progenitora, consoante lenda antiga.
No
caudaloso São Francisco era o pavor dos canoeiros de antanho. Como as sereias
habitantes dos rochedos escarpados entre a Itália e Capri, as quais atraiam os
viajantes com a doçura da voz a fim de os conduzir para cima dos escolhos,
atraía a princesa fabulosa os canoeiros com a sua cantiga suave a fim de os
conduzir para o fundo do rio majestoso.
Quando
desaparecia “zingador” bem apessoado, fora MÃE D’ÁGUA que dele se aproximara,
pois quem a vê fica logo encantado e cai
n’água e se afoga.
João
da Mata era o suco dos morenos e muitas paixões causara em todos os arredores
de Paulo Afonso. Casara-se por fim com mimosa jovem, filha de um holandês com
brasileira.
Findo
o ano de noivos, fizera a primeira viagem pra tratar de negócios. Com os olhos
lacrimosos, despedira-se da gentil esposa, beijara o primogênito e partira.
Em
Piranhas, conseguira passagem na canoa “Bentevi” e embarcara com destino a
Penedo, igualmente banhada pelas águas boas do majestoso São Francisco.
Alta
noite. O pobre não conciliara ainda o sono na tolda da canoa. Parecia-lhe estar
vendo, em idílio infantil, divino, a esposa dormir docemente presa ao filho
adorado que ressonava, cingindo-lhe com os bracinhos roliços o pescoço de neve
porcelana.
João
da Mata levantara-se pé ante pé: fora fumar um cigarro fora da tolda e
contemplar a beleza peregrina do luar consolador, mágico, que mergulhara a
“Bentevi” em banho galvanizante de prata e transformara o São Francisco em
cristal de baccarat.
Com
o velame arreado, a canoa descia o rio. À proa, achava-se preso pela resistente
embira, enorme feixe de galhos verdes que, deitado à mercê das correntezas,
auxiliava a descida blandíflua.
A modo,
a bendita lua acompanhava cariciosamente o barco solitário; e, para não
dormitar, o zingador cauteloso namorara-se da pastorinha nomada a
queixar-se-lhe em toada triste, cava, monótona, cantarolando versos de terna
modinha sertaneja.
Sentado
estava o moço viajante à borda da “Bentevi”, mastigando loas, quando ouvira de
repente estridente risada. Era a MÃE D’AGUA que o acompanhava, gozando as
delícias do luar. Em seguida cantara com voz encantadora, e dormira o zingador,
embriagado pela música divina.
Indiferente
às suas seduções, como Ulisses ao doce canto das sereias, não adormecera João
da Mata com as cantigas dela.
Então,
se aproximara do lindo moreno e pedira-lhe ao menos deixasse cair sobre os seus
olhos a luz suave dos olhos dele.
Homem
forte e valente, não se intimidara com a presença do monstro fabuloso.
À
esmola de um olhar, suplicava mais de perto, segurando-se à borda da
embarcação.
Ficara
mais indiferente.
Pelo
amor da mãe.
Impassível.
Pelo
amor do pai.
Impassibilíssimo.
Pelo
amor da esposa.
Ele,
ao de leve, a olhara e... o que se mais dera, sabe-o a brisa fagueira, pois
esta levara consigo o pipilar dos beijos; sabe-o a doce lua, pois só esta
presenciara, lá em cima, João da Mata nos braços da MÃE D’ÁGUA e com a filha da
fada submergir-se nas águas murmurantes.
(Já
se concebe atualmente esta hipótese: toscanejando, dera o zingador um arranco
na canoa, e o pobre João, a cochilar, caíra n’água; então, os as piranhas
vorazes em cardumes o comeram, dilacerando-lhe as carnes com os dentes anavalhados;
ou se afogara, fora levado pela correnteza, saíra à barra e, faminto, o
tubarão, tão comum no Atlântico tropical, devorara-o com extrema avidez.)
No
leito do rio majestoso, consoante a credulidade da gente simples, deve MÃE
D’ÁGUA habitar palácio encantado, feito da areia mais alva e mais fina
existente, no qual se presume haver tesouro magnífico; entretanto, quem lhe cai
nos braços, a ventura não terá de gozar as delícias da morada nobre com os
carinhos da princesa fabulosa.
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Transcrito
de REVISTA DA SEMANA, 11 de maio de 1935.
http://memoria.bn.br/DocReader/025909_03/12497
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[i]
Poeta, romancista e ensaísta, HORMINO ALVES LYRA nasceu em Pão de Açúcar,
Alagoas, em 3 de agosto de 1877. Fez seus estudos secundários no Ginásio São
João em Penedo, onde exerceu as funções de censor e lecionou com substituto de
várias cadeiras.
Em princípio, pensou
dedicar-se à vida eclesiástica. Entretanto, não obstante a sua crença
religiosa, percebeu que não tinha vocação para o sacerdócio. Prestou, então,
concurso para a Fazenda e para os Correios e Telégrafos. Aprovado em ambos,
preferiu o segundo, sendo admitido como Telegrafista.
Escreveu para vários jornais
e revista como O Malho e Revista da Semana.
Suas principais obras são:
Dona Ede (romance), em 1913; O 14 (contos), também em 1913; O Barão do Triunfo,
1941, separada da Imprensa Nacional (memória); Crisol (poesia), 1960. Troveiro,
1960 (poesia).
Foi casado, em primeiras
núpcias, com Alayde Vaz Ribeiro e, em segunda, com Marieta de Mello Carvalho
(filha do Coronel Augusto Álvaro de Carvalho e de D. Maria Luiza de Mello Carvalho),
falecida em 5 de janeiro de 1961.
Hormino Lyra é filho de
Higino da Rocha Lyra e Francisca Alves da Rocha Lyra, e irmão de Manoel Alves
Lira (que foi prefeito de Pão de Açúcar no período de 08/06/1947 a 22/01/1947)
e do Cônego Lyra (Fernando Alves Lyra), que dá nome a uma escola no povoado
Lagoa de Pedra, onde nasceu (segundo Aldemar de Mendonça). Hormino Lyra faleceu
no rio de Janeiro em 13 de setembro de 1970.
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