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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

PRINCESA FABULOSA

Hormino Lyra[i]

Hormino Lyra


Filha do rei da lua e de uma fada, com seu busto de mulher encantadora e cauda de peixe, governava MÃE-D’ÁGUA todos os rios, todos os mares, por ordem da progenitora, consoante lenda antiga.

No caudaloso São Francisco era o pavor dos canoeiros de antanho. Como as sereias habitantes dos rochedos escarpados entre a Itália e Capri, as quais atraiam os viajantes com a doçura da voz a fim de os conduzir para cima dos escolhos, atraía a princesa fabulosa os canoeiros com a sua cantiga suave a fim de os conduzir para o fundo do rio majestoso.

Quando desaparecia “zingador” bem apessoado, fora MÃE D’ÁGUA que dele se aproximara, pois quem a vê fica logo encantado e cai n’água e se afoga.

João da Mata era o suco dos morenos e muitas paixões causara em todos os arredores de Paulo Afonso. Casara-se por fim com mimosa jovem, filha de um holandês com brasileira.

Findo o ano de noivos, fizera a primeira viagem pra tratar de negócios. Com os olhos lacrimosos, despedira-se da gentil esposa, beijara o primogênito e partira.

Em Piranhas, conseguira passagem na canoa “Bentevi” e embarcara com destino a Penedo, igualmente banhada pelas águas boas do majestoso São Francisco.

Alta noite. O pobre não conciliara ainda o sono na tolda da canoa. Parecia-lhe estar vendo, em idílio infantil, divino, a esposa dormir docemente presa ao filho adorado que ressonava, cingindo-lhe com os bracinhos roliços o pescoço de neve porcelana.

João da Mata levantara-se pé ante pé: fora fumar um cigarro fora da tolda e contemplar a beleza peregrina do luar consolador, mágico, que mergulhara a “Bentevi” em banho galvanizante de prata e transformara o São Francisco em cristal de baccarat.

Com o velame arreado, a canoa descia o rio. À proa, achava-se preso pela resistente embira, enorme feixe de galhos verdes que, deitado à mercê das correntezas, auxiliava a descida blandíflua.

A modo, a bendita lua acompanhava cariciosamente o barco solitário; e, para não dormitar, o zingador cauteloso namorara-se da pastorinha nomada a queixar-se-lhe em toada triste, cava, monótona, cantarolando versos de terna modinha sertaneja.

Sentado estava o moço viajante à borda da “Bentevi”, mastigando loas, quando ouvira de repente estridente risada. Era a MÃE D’AGUA que o acompanhava, gozando as delícias do luar. Em seguida cantara com voz encantadora, e dormira o zingador, embriagado pela música divina.

Indiferente às suas seduções, como Ulisses ao doce canto das sereias, não adormecera João da Mata com as cantigas dela.

Então, se aproximara do lindo moreno e pedira-lhe ao menos deixasse cair sobre os seus olhos a luz suave dos olhos dele.

Homem forte e valente, não se intimidara com a presença do monstro fabuloso.

À esmola de um olhar, suplicava mais de perto, segurando-se à borda da embarcação.

Ficara mais indiferente.

Pelo amor da mãe.

Impassível.

Pelo amor do pai.

Impassibilíssimo.

Pelo amor da esposa.

Ele, ao de leve, a olhara e... o que se mais dera, sabe-o a brisa fagueira, pois esta levara consigo o pipilar dos beijos; sabe-o a doce lua, pois só esta presenciara, lá em cima, João da Mata nos braços da MÃE D’ÁGUA e com a filha da fada submergir-se nas águas murmurantes.

(Já se concebe atualmente esta hipótese: toscanejando, dera o zingador um arranco na canoa, e o pobre João, a cochilar, caíra n’água; então, os as piranhas vorazes em cardumes o comeram, dilacerando-lhe as carnes com os dentes anavalhados; ou se afogara, fora levado pela correnteza, saíra à barra e, faminto, o tubarão, tão comum no Atlântico tropical, devorara-o com extrema avidez.)

No leito do rio majestoso, consoante a credulidade da gente simples, deve MÃE D’ÁGUA habitar palácio encantado, feito da areia mais alva e mais fina existente, no qual se presume haver tesouro magnífico; entretanto, quem lhe cai nos braços, a ventura não terá de gozar as delícias da morada nobre com os carinhos da princesa fabulosa.

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Transcrito de REVISTA DA SEMANA, 11 de maio de 1935.

http://memoria.bn.br/DocReader/025909_03/12497

 

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[i] Poeta, romancista e ensaísta, HORMINO ALVES LYRA nasceu em Pão de Açúcar, Alagoas, em 3 de agosto de 1877. Fez seus estudos secundários no Ginásio São João em Penedo, onde exerceu as funções de censor e lecionou com substituto de várias cadeiras.

Em princípio, pensou dedicar-se à vida eclesiástica. Entretanto, não obstante a sua crença religiosa, percebeu que não tinha vocação para o sacerdócio. Prestou, então, concurso para a Fazenda e para os Correios e Telégrafos. Aprovado em ambos, preferiu o segundo, sendo admitido como Telegrafista.

Escreveu para vários jornais e revista como O Malho e Revista da Semana.

Suas principais obras são: Dona Ede (romance), em 1913; O 14 (contos), também em 1913; O Barão do Triunfo, 1941, separada da Imprensa Nacional (memória); Crisol (poesia), 1960. Troveiro, 1960 (poesia).

Foi casado, em primeiras núpcias, com Alayde Vaz Ribeiro e, em segunda, com Marieta de Mello Carvalho (filha do Coronel Augusto Álvaro de Carvalho e de D. Maria Luiza de Mello Carvalho), falecida em 5 de janeiro de 1961.

Hormino Lyra é filho de Higino da Rocha Lyra e Francisca Alves da Rocha Lyra, e irmão de Manoel Alves Lira (que foi prefeito de Pão de Açúcar no período de 08/06/1947 a 22/01/1947) e do Cônego Lyra (Fernando Alves Lyra), que dá nome a uma escola no povoado Lagoa de Pedra, onde nasceu (segundo Aldemar de Mendonça). Hormino Lyra faleceu no rio de Janeiro em 13 de setembro de 1970.

  

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