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quinta-feira, 14 de março de 2024

AS AREIAS DA RUA DE CIMA E A IGREJA DO BONFIM

Por Etevaldo Amorim


Em Pão de Açúcar, houve um tempo em que a popular “Rua de Cima” era chamada de “RUA DA AREIA”. E não era sem razão.


Ainda pelo final da década de 1960, era comum ver as casas daquela via sendo praticamente invadidas pela areia, que vinha da extensa coroa que margeia o São Francisco. As partículas mais finas e mais leves, suspensas pela ação do vento sudeste, acumulavam-se no leito da rua e em todo o seu entorno, de tal modo que, em alguns pontos, quase não se via calçada.


Daí em diante, a ocorrência desse fenômeno foi aos poucos diminuindo, talvez pela alteração do regime de cheias do rio, em decorrência das barragens. Não havendo mais a renovação das areias quando das enchentes anuais, a sua composição foi se tornando mais argilosa e, portanto, mais pesada.


Os relatos desse fenômeno remontam ao início do século XX.


Da Mensagem dirigida ao Congresso Alagoano pelo governador Euclydes Malta, por ocasião da instalação da 2ª Sessão Ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de abril de 1902, consta uma rubrica no valor de 5:000$000 (cinco milhões de Réis = 5 Contos de Réis) para o serviço de remoção das areias na cidade de Pão de Açúcar, autorizada que fora pela Lei nº 319, de 12 de junho de 1901, entregando-se à respectiva comissão 3:000$000 (3 contos de Réis).


A dita Comissão, encarregada de coordenar a execução dos serviços, fora constituída por Ato do mesmo Governador, em 22 de janeiro de 1902, assim composta: Cel. José da Silva Maia – “Cazuza” (Intendente); Major Manoel Antônio Machado e o vigário Antônio José Soares de Mendonça.[i]


A Comissão não perdeu tempo. Tanto que, já em abril daquele ano, o jornal A Fé Christã, em edição do dia 19, informa:


“O trabalho de remoção das areias que obstruíam grande extensão da Rua da Praia, está quase terminado. A Intendência despendeu 4:000$000 (Quatro Mil Contos de Réis) e o Governo do Estado 3:000$000 (Três Mil Contos de Réis).


“A procissão da Ressurreição desfilou pela rua desobstruída, cuja passagem, há seis anos, estava interceptada.”


De orientação católica, e vislumbrando a ocorrência de um fato extraordinário, o jornal faz uma revelação, de certa forma surpreendente, envolvendo a igreja do Bonfim. Diz a mesma matéria:


“Fato importante e que vai sendo comentado por todos:


As areias que formaram extensos montes e obstruíram a rua, quase soterrando muitas casas e quintais, não atingiam, entretanto, o terreno onde existiu a antiga capela do Senhor do Bonfim, cuja área foi somente ladeada por altos montes. Este fato, que é admirável, faz crer numa graça especial de Nosso Senhor. Não há outra explicação.


Em vista do exposto, o Sr. Coronel José da Silva Maia, que tão bons serviços tem prestado a este município, vai construir a Capela do Senhor do Bonfim no mesmo local, ficando a que foi, há pouco edificada na Praça do Marcos, dedicada à invocação de Nossa Senhora do Parto.”


Dessa notícia, depreende-se o seguinte:


Primeiro, que existiu outra “capela do Senhor do Bonfim”, na então chamada Rua da Praia; segundo, que a igreja do Senhor do Bonfim, que existe até hoje (remodelada) na praça de mesmo nome, foi construída entre o final do século XIX e o início do século XX, (tanto que a mesma notícia dá conta de que “Uma faísca elétrica danificou a frente da capela nova do Senhor do Bonfim, fulminando 19 carneiros que se achavam abrigados no oitão do edifício)”; terceiro, que ela continuou sob a mesma invocação, não se alterando para “Nossa Senhora do Parto”, de acordo com a promessa feita; e, por último, que a Praça do Bonfim se chamava “Praça do Marcos”. Mas, quem seria esse Marcos?...


rio São Francisco na cheia de 1919, em Pão de Açúcar
A igreja do Bomfim em 1919, vendo-se a praça tomada pelas
águas durante a grande cheia do rio São Francisco.

Bem, o trabalho foi concluído. O problema, aparentemente, desapareceu. Entretanto, o serviço não foi bem feito, como aponta a reportagem intitulada “AMEAÇA TERRÍVEL”, do jornal Gutenberg, de Maceió, em 10 de maio de 1911. Segundo ela, não passou de um paliativo, e não teve o poder de coibir as suas causas. Os encarregados do serviço, não sendo profissionais, se limitaram apenas a retirar as areias acumuladas na rua e espalhá-las da própria coroa, ignorando a iminência de uma nova invasão, dado que lá estaria a mesma areia e continuaria o mesmo vento sudeste a agir inexoravelmente.


A reportagem aponta ainda para a necessidade de uma ação preventiva, qual fosse a de implantar um “tapete de plantas” sobre parte da areia, coisa que existia, e cujas plantas foram “estupidamente arrancadas”.


Encontramos um relato dessa difícil situação, que transcrevemos do jornal O CRUZEIRO, de Penedo, publicado no dia 27 de agosto de 1909. Esse jornal era de propriedade de Manoel Caetano de Aguiar Brandão, filho do Dr. Félix Moreno Brandão e, portanto, irmão do historiador Francisco Henrique Moreno Brandão.


O texto não está assinado, mas sugere que seja do próprio Moreno Brandão, haja vista que, nesse mesmo jornal, no dia 29 de julho, há notícia de que ele estaria em Pão de Açúcar em busca de “melhoras para a saúde”. No dia 12 de agosto de 1909, o mesmo jornal diz que ele estaria melhor e que continuava em Pão de Açúcar. Por fim, na edição do dia 15 de outubro, o jornal diz:


Vindo do Sertão, onde permaneceu durante alguns meses, tivemos o prazer de abraçar o nosso prezado confrade Moreno Brandão, digno irmão do diretor desta folha.”


A matéria foi publicada no dia 27 de agosto e só em 15 de outubro ele estava de volta a Penedo. Por certo enviou o texto, sob encomenda, pela “Chata” Moxotó, que fazia a linha semanal regular Penedo-Piranhas, descendo às quintas-feiras.


Ei-lo:


PÃO DE AÇÚCAR, A CIDADE SOTERRADA

Como se tivesse passado sobre ela um sopro de desgraça, ei-la, a bela cidade sanfranciscana sepultada sob as areias; amortalhada em alvacentas nuvens de pó, envolta a alma dos seus infelizes habitantes no desespero que gera a certeza da impotência para lutar.


Dez anos havia que não pisávamos o solo pão-de-açucarense. Conservávamos na lembrança as belezas todas da cidade sertaneja, com sua casaria simétrica e alvadia, com suas incomparáveis renques de frondosas tamarineiras, com suas várzeas belíssimas. Um dia, sol a pino, com o coração torturado por intensa saudade, penetramos na terra que foi teatro de nossos brincos infantis.


Saudades levamos no coração, de crepe se cobriu nossa alma ante a desolação daquele torrão amado.


Casas em ruínas, montes enormes de areias a soterrar vivendas, donde espavoridos, loucos fugiam os moradores que, sem teto, sem abrigo, privados do lar que construíram, seus moradores iam à procura de um lar que os abrigasse!


Ruas desertas, uma tristeza de necrópole a pairar em toda parte. E diante de tanta dor, diante de tanta miséria, a indiferença dos poderosos, a indiferença daqueles que têm o dever iniludível de velar pelo bem-estar do povo.


As impressões que aí ficam toscamente registradas vê a propósito da resolução que acaba de tomar o Conselho Municipal de Pão de Açúcar de contrair com o Estado um empréstimo de 25:000$000 para a aquisição da empresa de águas daquela cidade.


Parece-nos que melhor andaria o governo municipal pão-de-açucarense aplicando tal empréstimo aos trabalhos de remoção das areias, que em época não remota soterraram completamente a cidade.


É preciso refletir que muitas dezenas de contos de réis serão assim salvas, além de que trata-se de benefício útil a todas as classes.


Esperamos que, melhor orientados, os representantes municipais de Pão de Açúcar tomarão em consideração o apelo que, em nome do povo, ora fazemos aos seus sentimentos patrióticos.”


Há muito tempo sem a ameaça das areias, segue em paz e promissora a “Rua de Cima”, que já foi “São Francisco” e atualmente se chama “Vereador Germínio Araújo Costa”.

 

Pão de Açúcar. A praça do Bonfim com a igreja ao fundo.

NOTA:

 

Caro leitor,

Deste Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] CIDADE DO RIO, Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1902. 

7 comentários:

  1. Mais uma pérola do Blog do Etevaldo. Meu amigo, quão maravilhosos são suas pesquisas, parabéns e muito obrigado pelo envio!

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  2. Muito bom ter alguém pra contar essas histórias, do nosso Pão de Açúcar.

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  3. 👏🏼👏🏼👏🏼

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  4. Esse brilhante trabalho de pesquisa me fez refletir em como o homem vem moldando, por anos, seu habitat. Numa vertente, precisa remover areias do rio; noutra, proíbem a retirada dessa mesma areia, que assorea o leito desse marco nacional...

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  5. Parabéns pelo belo trabalho

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  6. Fantástica suas publicações...Parabéns!

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