Por Etevaldo
Amorim
Em Pão de Açúcar, houve
um tempo em que a popular “Rua de Cima” era chamada de “RUA DA AREIA”. E não
era sem razão.
Ainda pelo final da década de 1960, era comum ver as casas daquela via sendo praticamente invadidas pela areia, que vinha da extensa coroa que margeia o São Francisco. As partículas mais finas e mais leves, suspensas pela ação do vento sudeste, acumulavam-se no leito da rua e em todo o seu entorno, de tal modo que, em alguns pontos, quase não se via calçada.
Daí em diante, a ocorrência desse fenômeno foi aos poucos diminuindo, talvez pela alteração do regime de cheias do rio, em decorrência das barragens. Não havendo mais a renovação das areias quando das enchentes anuais, a sua composição foi se tornando mais argilosa e, portanto, mais pesada.
Os relatos desse
fenômeno remontam ao início do século XX.
Da Mensagem dirigida ao
Congresso Alagoano pelo governador Euclydes Malta, por ocasião da instalação da
2ª Sessão Ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de abril de 1902, consta uma
rubrica no valor de 5:000$000 (cinco milhões de Réis = 5 Contos de Réis) para o
serviço de remoção das areias na cidade de Pão de Açúcar, autorizada que fora
pela Lei nº 319, de 12 de junho de 1901, entregando-se à respectiva comissão
3:000$000 (3 contos de Réis).
A dita Comissão,
encarregada de coordenar a execução dos serviços, fora constituída por Ato do
mesmo Governador, em 22 de janeiro de 1902, assim composta: Cel. José da Silva Maia –
“Cazuza” (Intendente); Major Manoel Antônio Machado e o vigário Antônio José
Soares de Mendonça.[i]
A Comissão não perdeu
tempo. Tanto que, já em abril daquele ano, o jornal A Fé Christã, em edição do
dia 19, informa:
“O
trabalho de remoção das areias que obstruíam grande extensão da Rua da Praia,
está quase terminado. A Intendência despendeu 4:000$000 (Quatro Mil Contos de
Réis) e o Governo do Estado 3:000$000 (Três Mil Contos de Réis).
“A
procissão da Ressurreição desfilou pela rua desobstruída, cuja passagem, há seis
anos, estava interceptada.”
De orientação católica,
e vislumbrando a ocorrência de um fato extraordinário, o jornal faz uma revelação,
de certa forma surpreendente, envolvendo a igreja do Bonfim. Diz a mesma
matéria:
“Fato
importante e que vai sendo comentado por todos:
As
areias que formaram extensos montes e obstruíram a rua, quase soterrando muitas
casas e quintais, não atingiam, entretanto, o terreno onde existiu a antiga
capela do Senhor do Bonfim, cuja área foi somente ladeada por altos montes. Este
fato, que é admirável, faz crer numa graça especial de Nosso Senhor. Não há
outra explicação.
Em
vista do exposto, o Sr. Coronel José da Silva Maia, que tão bons serviços tem
prestado a este município, vai construir a Capela do Senhor do Bonfim no mesmo local,
ficando a que foi, há pouco edificada na Praça do Marcos, dedicada à invocação
de Nossa Senhora do Parto.”
Dessa notícia,
depreende-se o seguinte:
Primeiro, que existiu
outra “capela do Senhor do Bonfim”,
na então chamada Rua da Praia; segundo, que a igreja do Senhor do Bonfim, que
existe até hoje (remodelada) na praça de mesmo nome, foi construída entre o
final do século XIX e o início do século XX, (tanto que a mesma notícia dá
conta de que “Uma faísca elétrica
danificou a frente da capela nova do Senhor do Bonfim, fulminando 19
carneiros que se achavam abrigados no oitão do edifício)”; terceiro, que
ela continuou sob a mesma invocação, não se alterando para “Nossa Senhora do
Parto”, de acordo com a promessa feita; e, por último, que a Praça do Bonfim se
chamava “Praça do Marcos”. Mas, quem seria esse Marcos?...
A igreja do Bomfim em 1919, vendo-se a praça tomada pelas águas durante a grande cheia do rio São Francisco. |
Bem, o trabalho foi concluído. O problema, aparentemente, desapareceu. Entretanto, o serviço não foi bem feito, como aponta a reportagem intitulada “AMEAÇA TERRÍVEL”, do jornal Gutenberg, de Maceió, em 10 de maio de 1911. Segundo ela, não passou de um paliativo, e não teve o poder de coibir as suas causas. Os encarregados do serviço, não sendo profissionais, se limitaram apenas a retirar as areias acumuladas na rua e espalhá-las da própria coroa, ignorando a iminência de uma nova invasão, dado que lá estaria a mesma areia e continuaria o mesmo vento sudeste a agir inexoravelmente.
A reportagem aponta
ainda para a necessidade de uma ação preventiva, qual fosse a de implantar um “tapete de plantas” sobre parte da areia,
coisa que existia, e cujas plantas foram “estupidamente
arrancadas”.
Encontramos um relato
dessa difícil situação, que transcrevemos do jornal O CRUZEIRO, de Penedo,
publicado no dia 27 de agosto de 1909. Esse jornal era de propriedade de Manoel
Caetano de Aguiar Brandão, filho do Dr. Félix Moreno Brandão e, portanto, irmão
do historiador Francisco Henrique Moreno Brandão.
O texto não está
assinado, mas sugere que seja do próprio Moreno Brandão, haja vista que, nesse
mesmo jornal, no dia 29 de julho, há notícia de que ele estaria em Pão de
Açúcar em busca de “melhoras para a saúde”.
No dia 12 de agosto de 1909, o mesmo jornal diz que ele estaria melhor e que
continuava em Pão de Açúcar. Por fim, na edição do dia 15 de outubro, o jornal
diz:
“Vindo do Sertão, onde permaneceu durante alguns meses, tivemos o prazer
de abraçar o nosso prezado confrade Moreno Brandão, digno irmão do diretor
desta folha.”
A matéria foi publicada
no dia 27 de agosto e só em 15 de outubro ele estava de volta a Penedo. Por
certo enviou o texto, sob encomenda, pela “Chata” Moxotó, que fazia a linha
semanal regular Penedo-Piranhas, descendo às quintas-feiras.
Ei-lo:
“PÃO DE AÇÚCAR, A CIDADE SOTERRADA
Como se tivesse passado
sobre ela um sopro de desgraça, ei-la, a bela cidade sanfranciscana sepultada
sob as areias; amortalhada em alvacentas nuvens de pó, envolta a alma dos seus
infelizes habitantes no desespero que gera a certeza da impotência para lutar.
Dez anos havia que não
pisávamos o solo pão-de-açucarense. Conservávamos na lembrança as belezas todas
da cidade sertaneja, com sua casaria simétrica e alvadia, com suas
incomparáveis renques de frondosas tamarineiras, com suas várzeas belíssimas.
Um dia, sol a pino, com o coração torturado por intensa saudade, penetramos na
terra que foi teatro de nossos brincos infantis.
Saudades levamos no
coração, de crepe se cobriu nossa alma ante a desolação daquele torrão amado.
Casas em ruínas, montes
enormes de areias a soterrar vivendas, donde espavoridos, loucos fugiam os
moradores que, sem teto, sem abrigo, privados do lar que construíram, seus
moradores iam à procura de um lar que os abrigasse!
Ruas desertas, uma
tristeza de necrópole a pairar em toda parte. E diante de tanta dor, diante de
tanta miséria, a indiferença dos poderosos, a indiferença daqueles que têm o
dever iniludível de velar pelo bem-estar do povo.
As impressões que aí
ficam toscamente registradas vê a propósito da resolução que acaba de tomar o
Conselho Municipal de Pão de Açúcar de contrair com o Estado um empréstimo de
25:000$000 para a aquisição da empresa de águas daquela cidade.
Parece-nos que melhor
andaria o governo municipal pão-de-açucarense aplicando tal empréstimo aos
trabalhos de remoção das areias, que em época não remota soterraram
completamente a cidade.
É preciso refletir que
muitas dezenas de contos de réis serão assim salvas, além de que trata-se de
benefício útil a todas as classes.
Esperamos que, melhor
orientados, os representantes municipais de Pão de Açúcar tomarão em
consideração o apelo que, em nome do povo, ora fazemos aos seus sentimentos
patrióticos.”
Há muito tempo sem a
ameaça das areias, segue em paz e promissora a “Rua de Cima”, que já foi “São
Francisco” e atualmente se chama “Vereador Germínio Araújo Costa”.
Pão de Açúcar. A praça do Bonfim com a igreja ao fundo. |
NOTA:
Caro leitor,
Deste Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E
LITERATURA”, constam artigos repletos de informações históricas relevantes.
Essas postagens são o resultado de muita pesquisa, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso sejam do seu interesse para utilização em qualquer
trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é
correto e justo.
[i] CIDADE DO RIO, Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1902.
Mais uma pérola do Blog do Etevaldo. Meu amigo, quão maravilhosos são suas pesquisas, parabéns e muito obrigado pelo envio!
ResponderExcluirGrande 👏👏👏
ResponderExcluirMuito bom ter alguém pra contar essas histórias, do nosso Pão de Açúcar.
ResponderExcluir👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirEsse brilhante trabalho de pesquisa me fez refletir em como o homem vem moldando, por anos, seu habitat. Numa vertente, precisa remover areias do rio; noutra, proíbem a retirada dessa mesma areia, que assorea o leito desse marco nacional...
ResponderExcluirParabéns pelo belo trabalho
ResponderExcluirFantástica suas publicações...Parabéns!
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