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Carro de boi. Desenho de Percy Lau. |
Publicada no jornal CORREIO DA MANHÃ, do Rio de Janeiro, edição de 25 de abril de 1909, essa bela crônica de Ascendino Christo descreve, de forma precisa e em letras recheadas de emoção, a paisagem do sertão alagoano, na nossa querida Pão de Açúcar.
Para seguir com ele, imagine-se saindo de Meirus, passando pela Santa Cruz e descendo a ladeira do "Alto da Bela Vista", de onde se vislumbra a mais bela vista da planície onde repousa a cidade, o rio e a margem oposta, em terras sergipanas. Desde o Cavalete até o morro do Faria, vê-se a Lagoa da Porta, o Parujé, Itororó, Abaiti... até chegar no morro do Aranha.
No tema principal da crônica, a menção ao carro de boi, meio de transporte de cargas mais usado na época; e ao carreiro, condutor e figura central nesse ofício, a tanger os bois com varas de ferrão, enquanto gritava pelos seus nomes: "Oriente" !!!! "Ocidente" !!!! "Minuano" !!!
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Ascendino de Souza Christo nasceu em Pão de Açúcar em 20 de novembro de 1882. Filho de Theotonio Rodrigues de Souza Christo, que por muitos anos foi Escrivão na Comarca de Pão de Açúcar; e de Maria Luiza Xavier de Souza (irmã de Antônio Xavier de Assis, a quem já nos referimos em O PRIMEIRO PÃO-DE-AÇUCARENSE A GOVERNAR ARACAJU. Eram seus irmãos: Ephésia, Arsênia, Sizenando e Maria.
Em 1904, residia em Aracaju-SE, onde estudou no Atheneu Sergipense. Casou-se com Aurora Saxe Moreira, no Rio de Janeiro, a 22 de dezembro de 1917.
Sua capacidade intelectual lhe permitia escrever em jornais cariocas Correio da Manhã e O Paiz, onde trabalhou como tipógrafo e foi Secretário da Caixa Beneficente dos Empregados d'O Paíz. Foi também funcionário do Ministério da Guerra como Distribuidor da Imprensa Militar.
Faleceu no Rio de Janeiro a 16 de abril de 1920, deixando um filho menor chamado José Moreira Christo.
Vamos nessa viagem...
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Calmo e pesado, tênue
sopro agita a plumagem rala de árvores despidas. Nem força tem para suspender o
pó ressequido e ocre da tortuosa estrada. Há nervosos estertores de gravitos e
vagens secas a crepitar em estalidos irritantes ao calor intenso.
A longa estrada riscada
em sulcos paralelos, pontilhada de brilhantes seixos, vai pouco a pouco
imergindo na sombra plúmbea, guarda avançada da noite estrelada.
Três horas a fio, cavalgando
suarento tordilho[i],
coberto de pó e enfado, já sem prazer na visão da natureza esquelética, vi
passar desde minha partida de Meirús[ii]. E a montanha da estrada
em fogo fazia-me esgotar a esperança de um descanso perto de breve entrada na
linda cidade de Pão de Açúcar.
Agora percorria a baixada
que antecede o Alto da Bela Vista[iii], o ponto de onde se
descortina vasto horizonte de variedade empolgante, desde a cidade ao sopé, à
praia arenosa, ao rio azul e veloz até as montanhas em caprichosos recortes na
margem oposta.
Caminheiro prostrado de
jornada de muitos sóis e de muitas luas, combalido e sedento de água
refrigerante, que ali chega, se tiver ainda forças para dilatar as pálpebras
cerradas pela morte das energias e olhar o deslumbrante panorama: os montes, os
vales, cultivados campos, a casaria avermelhando, de telhados novos, paredes
alvas de cal, e o rio em filete de cristal ao fundo – caminheiro que ali chega,
corre, voa, galga a légua que o separa da cidade, do rio, sem cansaço, sem
alquebramento.
- Di-lo o povo na sua
adoração justa da natureza rica e emocionante.
Também eu sentia ânsia de
transpor o vale que me afastava da mágica culminância. Também sentia pruridos
de rever o já muito conhecido quadro tão grato aos meus olhos de adolescente! E
esporeava o manso tordilho, e atirava ao ar interjeições de alegria,
onomatopeias de animação.
- Êh! ... Êh!
...Tordilho, vamos. É ali a Bela Vista.
*** ***
Transposto o alto, para
trás a íngreme e enfadonha ladeira, eu era mais forte: vira a cidade amada e o
rio querido. Uma grande alegria repassada de alívio ungia min’alma, o coração
pulava de contentamento. Em breve alcançara um carro de boi, morosamente
estadejando[iv] para a cidade. Chiava
pesaroso, num concerto rústico, gemendo ao peso da carga arrumada em pilhas.
E lá ia o tosco veículo,
ora chorando em lamentos lancinantes a sorte da craibeira do eixo, meio
carbonizado, reluzente, pelo atrito constante dos cocões[v] — ora soluçando trôpego,
cansado já, empoeirado do caminho das estradas. Guinchava, às vezes, acelerando
a pesada andadura pelo bárbaro ferroar aos mansos bois.
Sempre monótono, cantando
alegrias ou entoando nênias[vi], jamais calado, vai pelos
caminhos ingratos até o repouso, onde descansa do sol em pino à sombra escassa
de alguma árvore, pendido o cabeçalho[vii] ao chão. Só aí para de
cantar, só aí cessa a música esquisita que atirou aos ares durante horas sem
fim.
*** ***
Contou-me o carreiro —um
rapagão sadio e forte, sempre pregado à palmatória[viii] do
seu carro, alegre, jovial, cantarolando loas ou imitando, às vezes, passarinhos
em assovio fino, estrídulo: - contou-me o carreiro com lágrimas nos olhos:
— O meu melhor boi
chamava-se “General”. Era um animal de estimação: coiceiro[ix] afamado,
nenhum outro o vencia no seu posto. Fazia gosto ver como ele escorava a dianteira numa
descida ‘a pique. ...
Viajara muito e não
esquecia atoleiro onde passasse uma vez, nem ignorava precipício a evitar. Do
rio – de Pão de Açúcar – até vinte, e trinta e mais léguas, na ‘redondeza’ ele
fora, por longos anos, o melhor, o mais valente boi de carro. Atravessara
valados, galgara serras e palmilhara alagadiços; à chuva, ao sol causticante;
de dia, à noite; à luz nitente[x], na treva horrífica;
sempre aquilo: manso, pronto ao constante viajar, liso e belo, de ‘pelo
lustroso’, como se a alegria de viver lhe mudasse em gozo a agrura do labor.
Daí a sua alcunha de ‘General’. Como um bravo que foi teve sua ferida de honra
e de reforma.
Foi ao descer da enorme e maldita ladeira do Parujé. Uma dianteira era um velhaco e manhoso garrote, ainda enfezado e selvagemente forte. O ‘alma do diabo’ tirou em disparada ladeira abaixo. Em frente, abria-se o chão num escancarado grotão, atraindo o carro, a carga os bois e eu. O outro dianteira era manso, porém, fraquinho, perdeu a ação: deixou-se arrastar na corrida infernal. O momento era terrível: mais um arranco do garrote, e estaríamos perdidos. Foi quando “General”, aquele bravo “General”, num esforço inaudito, ouvindo os meus scio! ... Scio! ...desesperados, sustou a carreira danada em que íamos e, desviando o carro do precipício com extraordinário sacrifício, arrastou-nos devagar até ao sopé do despenhadeiro.
No lombo roxo do Parujé,
porém – concluiu abatido, o carreiro – ficara-se com um mugido de cortar
coração’, uma das suas unhas presa ao vale por uma fita rubra de sangue. ”
NOTA
Caro leitor,
[i]
Cavalo cujo pelo, de fundo brancacento salpicado de pequenas manchas, lembra a
cor do tordo. (Tordo: Ave passeriforme, da família dos muscicapídeos, com o
corpo coberto por penas coloridas (preto, marrom ou cinza), especialmente
conhecida pelo canto; sabiá).
[viii]
Palmatória. Peça do carro de boi onde se senta o carreiro.
[x] Nitente = resistente.
É muito bom ler suas historias lembro muito avó Pai Cazuzinha ,que sempre viajava com meu pai Enoque Ferro que tinha. Carro de boi e me frz lembrar das viagens com toldo que fazia para visjsr e nao pegar sol boas lembrancas.
ResponderExcluirBela crônica! Enriquece cada vez mais o acervo cultural, com fatos, detalhes pitorescos e personagens de nossa terra Pão de Açúcar. Parabéns ao autor
ResponderExcluir" Que vontade eu tenho de sair
ResponderExcluirNum carro de boi, ir por aí
Estrada de terra que só me leva só me leva
Nunca mais me traz....."