Por Etevaldo Amorim
Muitas
lembranças eu ainda guardo da infância em Campinas. Entre elas um acontecimento
trágico, de cujas proporções só agora tomo conhecimento.
Era noite alta, já madrugada. Meu
tio nos acordou na casinha dos fundos onde morávamos e nos dirigimos à porta de
sua casa, na Rua Amparo, no bairro Novo Campos Elíseos. Lá estava um carro com
alguns homens, que arregimentavam voluntários para controlar um incêndio
provocado pela queda de um avião. Favorecidos pelos espaços vazios que ainda
havia naquela parte nova do bairro, pudemos avistar o fogaréu nos eucaliptos, a cerca de seis quilômetros de onde estávamos. Meu pai e meu tio foram com
eles. Na volta, o relato estarrecedor: em meio ao fogo intenso, lutando com os
poucos recursos de que dispunham, ainda se deparavam com corpos carbonizados e
mutilados em meio aos destroços fumegantes do aparelho.
Agora,
vasculhando os jornais da época, no precioso portal da Biblioteca Nacional,
encontro detalhes daquele episódio que marcou a minha memória de criança. Na
madrugada do dia 23 de novembro de 1961, o avião Arco-Iris, um COMET 4¹ prefixo LV-AHR, da Aerolineas Argentinas, procedente de Buenos Aires, decolara do
Aeroporto Viracopos às 2:32 h com destino a Nova York, com escala em Trinidad. Depois
de uma inexplicável demora de 20 minutos na cabeceira da pista nº 32, o avião
decolou depois de o comandante dar o sinal convencional de que estava tudo em
ordem a bordo. Um minuto e meio depois caiu na região denominada Sítio
Lagoa, bairro Friburgo, três quilômetros do Aeroporto, devastando uma plantação
de eucalipto de propriedade do Sr. Werner Schaefer, abrindo uma clareira de
mais de trezentos metros e explodindo ao encontrar um aclive do terreno. O
radiotelegrafista de bordo não teve tempo de fazer qualquer comunicação. A
última foi momentos antes da decolagem.
Segundo informou depois o
comando da IV Zona Aérea, as condições atmosféricas naquela noite eram boas,
com teto de 400 metros e visibilidade de 6.000 metros. O plano de voo
apresentado pelo comandante previa uma viagem de 5 horas e 16 minutos até a
próxima parada: Trinidad.
O avião partira do aeroporto de
Ezeiza, em Buenos Aires, às 23 horas do dia 22, sob o comando de Roberto Môsca
e tendo a seu lado o Co-piloto Raul Quesada. Ao
chegar a Viracopos, a 1:15 h, cinco passageiros desembarcaram: Alan Skellenger,
Maria Mila Sole, Manuel Bonino, Maria J. Z. de Bonino e Victor Ventura. O Sr. J.
W. Glenz deixou de embarcar, escapando do sinistro.
Estavam a bordo 52 pessoas²,
sendo 40 passageiros e 12 tripulantes. Ambulâncias, viaturas policiais de três
guarnições de bombeiros de Campinas, inclusive um helicóptero da FAB, acorreram
ao local e, auxiliados por voluntários, conseguiram a muito custo debelar o
incêndio, passando à fase de identificação dos corpos. Reconheceram
imediatamente o comandante Roberto Môsca e o Co-piloto H. Loubert e apenas um
passageiro, dadas as condições em que ficaram os demais.
Bertoldo
Antônio, morador há 200 metros do local da queda, declarou à reportagem do
jornal carioca Última Hora: “Acordei
ouvindo violentas explosões e julguei que fosse um tremor de terra. Corri ao
local, mas nada pude fazer” Já o sitiante Werner Schaefer, de origem alemã,
disse que, ao ouvir as seguidas explosões, supôs tratar-se de alguma revolução.
Ainda segundo o Última Hora, sua esposa Olga Jurz declarou: “Julguei que fosse um terremoto. Saí com meu
marido e vimos o avião envolto em chamas. Foi horrível”.
O
fotógrafo Neldo Cantanti, que registro o acidente, conta que “Era um amontoado
de ferro retorcido e a gente pisava na terra queimada. Ainda chovia muito. Só
sobraram a cauda e as turbinas.” Ele ainda lembra que um dos passageiros perdeu
o voo devido à demora do taxista que o levava ao aeroporto. Perderia uma
reunião muito importante e, por esta razão, ficou muito irritado com o
motorista. Minutos depois, sabendo do acidente, agradeceu por salvar-lhe a vida.
Além
dos 52 mortos na queda, a tragédia fez mais uma vítima, a Srª Amália Fêit de
Serrano, 69 anos, que faleceu em Córdoba ao saber da morte do filho, o
arquiteto Ernesto Guilermo de Serrano.
Acabou
assim o fatídico voo 322.
Vislumbro
agora outra ligação com aquele fato. Meu pai era operário da DUNLOP DO BRASIL,
uma fábrica de pneus de origem britânica, que foi depois vendida à PIRELLI.
Essa Unidade de Campinas fornecia componentes à BOAC, fabricante do Comet 4.
Lembro-me que ganhei um aviãozinho de brinquedo numa das festas de
confraternização, uma miniatura do aparelho da BOAC.
Essas
lembranças da infância não se apagam nunca... e já faz 51 anos.
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¹ Fabricado pela Britsh Overseas Airways, também conhecida por sua sigla, BOAC. Essa empresa aérea do Reino Unido surgiu como fusão entre a Britshi Airways Ltd. e a Imperial Airways no ano de 1939. Em 1974, a BOAC fundiu-se com a Britsh European Airways com ato do parlamento britânico de 1971. Em 1975, foi a primeira companhia aérea a utilizar um avião a jato para transporte de passageiros, com o De Havilland Comet.
² Procedentes de Buenos Aires: Horácio A. Esteverena,
capitão da Marinha Argentina e sua esposa Marta Hortensia Martoreli; Eduardo
Leonidas Vago, Gerente-Geral das Companhias Marítimas Argentinas; Carlos
Francisco Bertoa de Liano, oficial do Exército argentino; Colette Lousberg de
Arlia, belga de 31 anos; Bernardo Fridman, negociante argentino de 57 anos;
Ramon Garcia, argentino 56 anos; Marta L. Smart, estudante argentina de 17
anos, filha do gerente-geral da Aerolineas Argentinas nos Estados Unidos,
Albert Smart; Mário Antônio Couto, negociante argentino 40 anos; José Antônio
Reyes, eletrotécnico argentino 42 anos; Gilbert Jean Luy, norte americano 47
anos e sua esposa Luciana Rosa Larreia de Luy, peruana 31 anos; Oscar Manuel
Manna, despachante aduaneiro argentino 26 anos; Salomon Burstzein, argentino
naturalizado 56 anos; David Smith, orador luterano argentino de 39 anos;
Nicolas Susta, arquiteto argentino de 32 anos; José Antônio Talawe, 22 anos
oficial do Exército argentino; Renee Sweig, industrial austríaco 43 anos; Edgar
Bercebal, negociante argentino 30 anos; Ernesto Guilhermo Serrano, arquiteto
argentino 43 anos; Emílio Giancola, sacerdote argentino naturalizado 31 anos;
Maria Gracia Guerrieri de Barreiro, argentina 58 anos; Maria Rosa Guerrieri,
argentina 31 anos; Ricardo Jesus Ezcurra, negociante argentino 46 anos; Oscar
Reinaldo Buhrer, estudante argentino 10 anos; Amanda Maria Correia de Buhrer,
argentina 45 anos; Abraham Wolf Kiszemberg, argentino naturalizado 37 anos;
Francisco Colucci, piloto civil argentino 31 anos; Alejandro Martin, piloto
civil argentino, 33 anos;Jorge Cesar Rodrigues, piloto civil argentino 36 anos;
Francisco Carlos Gabrieli, piloto civil argentino 29 anos, diretor de
aeronáutica da Província de Mendonza; Nicolas Rado, industrial argentino 35
anos; Clemente Gomez, argentino 31 anos; William Boryk; Carlos Leonardo
Sersosino, argentino 35 anos funcionário da Aerolineas Argentinas, o único que
se dirigia a Trinidad; C. Z. Omfz; Stig Forum Smitd, ex-chefe de pilotos em
Nova Yorque, que viajava como passageiro. Embarcaram em Campinas: Isidor
Hegyr; Erzsebt Biro Hagyi; Magid Raduan. Tripulantes:
Roberto Môsca, piloto; Raul Mário Quesada, co-piloto; Maurício Loubet,
co-piloto reserva; Boris Juan Marijanac, navegante; Carlos Leiva, mecânico;
Juam Leira, engenheiro de vôo; Antônio Sigilli, operador de rádio; Washington
Garcia, comissário; Ricardo Henrique Garcia, comissário; Cândida Perez,
aeromoça; Lylian Casanovich, aeromoça;Manuel Vallecillos, navegante reserva.
Equipes de resgate em meio aos destroços do avião
Foto: Neldo Cantanti.
Destroços do Comet 4. Foto: Neldo Cantanti.
Capa da edição extra do Correio Popular de
Campinas, que fez a cobertura do acidente.
Indicação do possível local do acidente, arredores do Cemitério dos Alemães.
Fonte: Google. Edição: Edilberto Princi Portugal.
Comet
4, em 1961, no aeroporto de Orly, França. Foto: Georges Cozzika.
Nas pesquisas para compor este artigo encontrei esta foto no site http://aviation-safety.net/database/operator/airline.php?vai=6813. Como a sua reprodução estava condicionada à autorização do autor, solicitei de imediato. Getilmente, o Sr. Georges Cozzika, um francês de origem grega, físico nuclear aposentado, hoje com 71 anos, permitiu-me utilizá-la para ilustrar este pequeno relato.
Em 1961, câmera na mão, o jovem estudante interessado em aviões frequentava, na companhia de um amigo, o aeroporto de Orly, sul de Paris, quando fez esta foto do avião da Aerolineas Argentinas. Orly foi o principal aeroporto da França até a inauguração do Charles de Gaulle, em Roissy, em 1974. Noutras vezes, iam ao mais antigo, de Le Bourget, norte de Paris, onde Lindberg desembarcou em 1927, na célebre façanha de voar 33 horas e meia desde Nova Yorque. Revelou-me que, até bem pouco tempo, não tinha conhecimento de que aquele belo aparelho havia sido abatido por essa tragédia.
FONTES:
Diário de Notícias, 25/11/1961. Disponível em:
A Noite, 24/11/1961. Disponível em:
Diário da Noite, 24/11/1961. Disponível em:
Diário Carioca, 25/11/1961. Disponível em:
Última Hora, 25/11/1961. Disponível em:
Pró-memória – Campinas.
Portal do Aeroporto Internacional de Viracopos.