Um conto de Hormino Lyra
Em
uma tarde umbrosa e triste, dezenas de indivíduos que vinham acompanhar o
féretro do desventurado esposo de Dona Emília, deixavam refletir nos olhos
profunda mágoa. Fora homem tão digno...
As
amigas da viúva escutavam-na com atenção, cercavam-na de cuidados e ora, como
esta, também carpiam, ora proferiam palavras consoladoras.
Sentadas
a um canto, meio assustadas, achavam-se duas inocentes crianças. Eram Carlos e
Lili.
Quando
em casa tudo serenou, iniciaram as duas crianças este diálogo:
—
Aonde foi paizinho? Perguntou a menina ao menino.
—
Morreu.
—
Vovó disse que ele estava dormindo.
—
Disse para enganar.
—
Como?
—
Ouvi mamãe dizer de noite, chorando tanto... tanto: “O meu filho tão pequeno ,
e já sem pai!”
—
Não diga, Carlinho! Se eu soubesse, fazia barulho de choro quando os homens iam
levando paizinho.
—
Ele não ficava, Lili! Você não viu tanta gente grande chorando? Não levaram o
paizinho assim mesmo?
—
Ele não volta?
—
Você não se lembra do papai da Nicota? Pois é: disseram que ele voltava,
e... até hoje!
Lili
desatou em pranto.
Enquanto
o irmão, também choroso, com delicadeza consolava a boa amiga, e uma senhora a
conduzia ao colo, acautelando-a com bastante carinho, a criança, meio fatigada,
deitava molemente a cabeça e acomodava um antebraço sobre os ombros de quem a
acalentava e adormecia a soluçar de vez em vez.
Andavam
sempre juntos aqueles inocentes, e comovia o mais empedernido coração quando
falavam acerca do pai querido com saudade infinita. E tinham razão, pois o
major reformado Josino Duarte, noutros tempos soldado destemido, era no
conchego do lar manso cordeiro. Transformava-se a tal ponto que alguém, ao
vê-lo humildo ao pé da esposa idolatrada e dos bem queridos filhos, lhe
estranharia até a voz.
Duarte
já era reformado, portanto maduro, quando resolveu casar.
No
primeiro domingo, após aquele dia fatal, Dona Emília estava só em casa.
As
amigas de sempre, passadas as primeiras horas da desventura, desapareceram
quando mais precisava de que a viessem cercar de carinho e de cuidados,
porquanto aquelas horas não ambicionava senão estar só, resistindo à dor
imensa, sem uma voz a perturbar-lhe os intentos de vaga conciliação com a
vontade divina.
Lili
aproximou-se dela:
—
Mamãe, ele nunca mais vem?
Fixou
a filha com ternura e, a suspirar, beijou-a docemente na testa sem proferir
palavra.
—
Aonde está paizinho?
Volveu
a triste mãe os olhos lacrimosos para cima.
—
Não pergunto pelo papai do Céu...
—
Deixe a pobre da mamãe sossegada.
E
Carlos conduziu a irmã até a porta da rua.
—
Lili — disse ele indicando o Cavalete — aquele morro fica bem pertinho do céu;
e com certeza foi por ali que levaram daqui o paizinho querido.
—
Se a gente pudesse ir lá...
—
Bem que se pode, mas tenho medo.
—
Pois eu não tenho, afirmou com singular convicção — A vovó diz sempre que São
Pedro é o porteiro do Céu. E ele parece ser um velho muito bom. E, com certeza,
lá em cima, a gente toca com a mão na porta...
—
Porém, o Céu é grande... Se a porta não é ali por perto...
—
Sim, mas a vovó diz também que Deus está em toda parte. Deus é amigo de tudo
que é menino; e ele vai chamar São Pedro para abrir a porta.
Ficaram
quietos, olhando um para o outro, como que a meditar. Súbito, Carlos pegou na
mão da irmã e, em passos vacilantes, saíram de casa os dois pequerruchos.
O
criado, antigo ordenança, que nunca deixou de acompanhar o Major Duarte, meia
hora depois percorria a modesta cidade a indagar se sabia alguém o paradeiro
das crianças. Disseram-lhe algumas pessoas ter visto os dois meninos caminharem
em direção ao Morro do Cavalete.
Ao
pé deste chegou o homem a procurar os pequerruchos. Conjecturara ser impossível
andarem por ali. Que iriam fazer? Contudo, por descarrego de consciência, ia
além. E lá se foi montanha acima.
Havia
caminhado muito. Fá-lo-ia mais um pouco e tornaria à cidade, pois perdera toda
a esperança.
Enquanto
descoroçoava o criado, caminhando nas quebradas, em casa estava Dona Emília
aflita com a ausência dos filhos; mas, e sem saber por que, tinha firme
esperança em não lhe acontecer agora algum outro dissabor.
Caminhando
à toa pelo morro andava o servo, já desanimado e triste por não conseguir
encontrar os pequenos. Com bastante agrado, porém, ouviu inesperadamente voz
débil, como de quem queria chorar:
“Venha
por aqui, que ai tem muito espinho”.
Oh!
Carlos e Lili...
Procuravam
a porá do Céu!
Em
seguida, vieram acompanhados do serviçal. E Dona Emília recebeu os filhos com
alegria. E contaram eles a estranha aventura. E beijava-os docemente a pobre
mãe e abraçava-os ao mesmo tempo a aconchegava as duas cabecinhas ao colo seu,
embora lhes prometendo uns bolinhos quentes ou umas palmadas, se saíssem outra
vez de casa como aves fugidas.
Ia
caindo a tarde. O copado tamarindo, ao fundo do quintal, parecia atendo à
empolgante serenidade que vinha deixando os espíritos abstraídos em profunda meditação.
Tristeza
indefinida. O sino da Matriz anunciava a hora da Ave Maria. Fazendo o sinal da
cruz, Dona Emília dizia mentalmente a saudação angélica, com os lábios a
tremer. E ela a rezar, e as duas
crianças olhando a mamãe com doçura, e o servo parado ali perto, todos
guardavam silêncio.
Súbito,
com meiguice encantadora, rompera-o a mimosa Lili:
—
Um caro custo para a gente ver paizinho!
Publicado na Revista da Semana, RJ, 1º de agosto de 1942.
Publicado na Revista da Semana, RJ, 1º de agosto de 1942.
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Poeta, romancista e ensaísta, HORMINO ALVES LYRA nasceu em
Pão de Açúcar, Alagoas, em 3 de agosto de 1877. Fez seus estudos secundários no
Ginásio São João em Penedo, onde exerceu as funções de censor e lecionou com
substituto de várias cadeiras.
Em princípio, pensou dedicar-se à vida eclesiástica.
Entretanto, não obstante a sua crença religiosa, percebeu que não tinha vocação
para o sacerdócio. Prestou, então, concurso para a Fazenda e para os Correios e
Telégrafos. Aprovado em ambos, preferiu o segundo, sendo admitido como
Telegrafista.
Escreveu para vários jornais e revista como O Malho e
Revista da Semana.
Suas principais obras são: Dona Ede(romance), em 1913; O 14
(contos), também em 1913; O Barão do Triunfo, 1941, separada da Imprensa
Nacional (memória); Crisol (poesia), 1960. Troveiro, 1960 (poesia).
Foi casado com Marieta de Mello Carvalho (filha do Coronel
Augusto Álvaro de Carvalho e de D. Maria Luiza de Mello Carvalho), falecida em
5 de janeiro de 1961.
Hormino Lyra era irmão de Manoel Alves Lira (que foi prefeito de Pão de Açúcar no período de 08/06/1947 a 22/01/1947) e do Monsenhor Lyra (Fernando Alves Lyra), que dá nome a uma escola no povoado Lagoa de Pedra, onde nasceu (segundo Aldemar de Mendonça).
Hormino Lyra era irmão de Manoel Alves Lira (que foi prefeito de Pão de Açúcar no período de 08/06/1947 a 22/01/1947) e do Monsenhor Lyra (Fernando Alves Lyra), que dá nome a uma escola no povoado Lagoa de Pedra, onde nasceu (segundo Aldemar de Mendonça).
Hormino Lyra faleceu no rio de Janeiro em 13 de setembro de
1970.
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