Por
Etevaldo Amorim
Durante o curto período
em que exerci a função de Extensionista, na antiga EMATER, tive oportunidade de
ministrar um curso de formação num pequeno vilarejo do município de Mata
Grande: Santa Cruz do Deserto. Ali, na pequena capela, diante de um grupo de agricultores
prejudicados pela seca, tentava incutir em suas mentes algo de técnico, como
era do meu ofício. Lembro-me de, ao final, uma mocinha vir me entregar um
papel, uma folha de caderno. Ali ela escrevera, em nome de seu pai, pobre
agricultor, um relato dramático da sua situação, que era, na verdade, comum a
todos.
Nas reuniões, no
Escritório Regional em Santana do Ipanema, os colegas faziam chacota, achando
engraçado aquele nome. Santa Cruz do Deserto... Pleno sertão, no caminho entre
Mata Grande e Água Branca, antes de subir a serra. Muitas vezes passei por lá a
caminho de Delmiro Gouveia, onde respondi, por menos tempo ainda, pelo
Escritório Local.
Hoje, vendo um exemplar
do Jornal do Penedo, edição de 25 de janeiro de 1879, encontro uma nota de alguém
que se assina com o pseudônimo de “S.”, revelando como se fundou a capela
daquele lugar. Como sei que muitos, talvez, não terão a oportunidade de ler,
transcrevo a seguir:
“Lá,
em um sítio solitário, quatro léguas acima da Mata Grande, Santa Cruz do
Deserto é a primeira terra que se oferece aos olhos do que sobe de Terra Nova.
Quem
sobe deste lugarejo, virando as costas para o sol, no fim de três léguas, a
Norte de Pariconha, as eminências abaixando-se, retraindo-se, avista uma fita
de terreno fértil e vicejante, assombrado de frescos arvoredos, qual é a
planície abençoada da Santa Cruz do Deserto.
Em
meio duma catinga esfarelada e rasa, entre serras que se arredondam,
cingindo-a, o viajante pasma diante do espetáculo daquele sítio aonde se comove
e exalta a cada passo.
É
justamente o ponto mais vistoso deste sítio ameno e risonho que a piedade dos
fiéis, muitos anos há, venerou, construindo uma capela, ou santuário, ornada de
um só altar dedicado à Santa Cruz.
É
célebre a história deste santuário, tão visitado pela devoção dos peregrinos,
tão falado pelos seus grandes milagres.
Uma
pia e velha tradição sustenta que, durante o ano de 1793, o famigerado Frei
Vidal¹, que percorria a Província pregando e fazendo boas obras, descansou
naquele ermo, então viçoso de ricos cedros e vistosos pereiros, cuja flor
balsâmica recendia com fragrância a largo espaço.
Antes
de prosseguir sua marcha, em memória da sua passagem por ali, mandou juntar
duas achas de tosco e tortuoso cedro em forma de CRUZ e, benzendo-a, fincou-a
no chão, ao lado esquerdo do atalho que dá para a Mata Grande.
Não
muito depois do ano indicado, enfermo e desconfiado dos remédios da medicina,
um rústico lembrou-se de invocar e abraçar-se com a valiosa proteção da SANTA
CRUZ DO DESERTO. Sucedeu como a esperança lho prometia; porque, no mesmo
instante, desapareceu o mal e voltou-lhe a saúde. Para logo o camponês fez
cobrir a Santa Cruz, até então posta ao desabrigo, com uma pequena casa de
oração.
Mais
tarde, a primeira Família da Mata Grande, no seu tributo religioso, mandou
construir ali uma Capela, que é a que ainda hoje existe.
Tal
é o resumo da história do santuário, em que a reverência dos peregrinos, no
ardor do seu entranhado reconhecimento, sagrou a sua memória dos grandes
prodígios da SANTA CRUZ DO DESERTO, estampados nas paredes laterais e atulhados
à direita e à esquerda da porta principal.
Contemplar
aqueles testemunhos, tão eloquentes na sua mudez, é decerto exultar de alegria
e ao mesmo tempo bendizer o símbolo sagrado da Redenção.
Ainda
hoje, que tantas ruínas atestam a assolação carregada das iras celestes, que
passou por cima das povoações vizinhas, ainda hoje SANTA CRUZ DO DESERTO como
que só existe para nos apontar o que era e o que é: um padrão de glória.
Ontem,
como hoje, no século que já lá foi, como no em que estamos, a Santa-Cruz do
Deserto não foi invocada inutilmente. Esta é a razão por que, a cada passo,
está sendo visitada por todas as classes e estados.
Ali
o Cristo sincero exclama comovido:
—
Senhor, Rei da Cruz, tenho fé; ajudai a minha fraqueza!
Ali
os crentes simples de coração se consolam na doce esperança de que a suma
retidão pagará as tristezas e trabalhos da vida presente com as venturas
perenes, afiançadas aos justos e fiéis.
Ali
os corações devotos se abrasam no incêndio do amor para com AQUELE que se
sacrificou por nós nos braços dolorosos da CRUZ.
—
SALVE, ó CRUZ, esperança única!
—
SALVE, verdadeira árvore da liberdade!
—
SALVE, manancial de salvação e de GRAÇA!
Baixa
do Meio, 10 de dezembro de 1878.
S.”
¹ O nome desse frade é Vitale de Frescarolo. Andou pelos sertões do Ceará, Pernambuco e outros Estados entre 1781 e 1820, onde ficou conhecido pelo nome de Frei Vidal da Penha (alusão ao convento da Penha, no Recife).
¹ O nome desse frade é Vitale de Frescarolo. Andou pelos sertões do Ceará, Pernambuco e outros Estados entre 1781 e 1820, onde ficou conhecido pelo nome de Frei Vidal da Penha (alusão ao convento da Penha, no Recife).
Igreja de Santa Cruz do Deserto. Fonte: Google Maps.