Élio Lemos França. (Revista Mocidade) |
Élio Lemos França[i]
Águas caindo precipitadamente. É bonito
ver como as coisas do mundo caem precipitadamente. E os homens gostam de ver o
despencar das coisas.
É um cair estourado, o das águas,
cachoeira abaixo. E, lá nas pedras, o despedaçar-se de cada gota em mil
partículas. O vento passando molhado pelo rosto da gente.
Minutos bem compridos, enchendo-me o
olhar de água, de pedras, de espumas inquietas que giram endoidecidas.
Parece-me que a Natureza está bêbada, ou louca. Ou, então, epitética, a
esbater-se em espasmos de fúria, ou de dor.
Distante, o Sol, agora quase frio,
parece uma pincelada de sangue, que algum louco homicida deu no azul do céu. E
o horizonte faz lembrar certas pessoas simbiose da placidez do azul e da
púrpura violeta de um Sol despeitado com o cair da noite.
Minutos bem compridos, que passam por
meus olhos misturados ao rumor e ao torvelinho das águas, por entre cores que
lutam e se confundem, enroscados em pensamentos há muito lembrados,
envelhecidos e gastos em suas idas e vindas, de ontem e hoje, de hoje e
ontem...
Antítese e silogismo mal traçados, quase
sofismas. Crenças insustentáveis.
Ora, como se crê que possa a Vida voltar
os próprios passos?! — Tolices.
Mas estes pensamentos são assim meio
loucos. Cheios de confusão. Parece que eles também giram, endoidecidos, dentro
da espuma nervosa da cachoeira. Insensatos!
E os minutos a enroscar-se em
pensamento, querendo enroscar-me em minha alma. Em meu corpo, também.
Entorpecendo minhas pernas. Matando o brilho dos meus olhos. Molhando-os.
Anoitece. Quase preciso de sair. A Vida
me espera, lá fora, longe destas águas que caem e deste rumor alucinante de
gritos estrondosos — não sei se das águas que se desmoronam, se das pedras que
elas açoitam em seu cair ininterrupto. Anoitece, quase, e eu não posso ir.
Noites felizes, que não voltam... Dias
felizes, que não voltam... Horas felizes, que não voltam...
E quem disse que podem voltar os
momentos felizes? Eles passaram. Será egoísmo querer a Felicidade por muito
tempo; é ela uma só para todas as pessoas. Uma pessoa de cada vez, como nas
filas das bilheterias. Uma de cada vez e por um só minuto. As que vêm atrás
também têm direito a Ela. Também pagaram o tributo de nascer.
Em compensação, há as lembranças. E as
utopias, não são tantas? Por que não viver delas? Somente por serem fugidias?
—A Vida também o é.
A noite quase que caiu inteiramente e
uma estrela abriu o olho azul para o lado de cá. Está tão sozinha e brilha com
tanto interesse! Deve estar, como eu, olhando o despencar das coisas... Deve
estar sonhando com noites já vividas, de um tempo em que ela não tinha de ficar
sozinha no meio do céu.
Anoitece. Surgem outras estrelas e a
estrela bonita já não está sozinha. Não posso continuar aqui. Faz frio até.
Mesmo, a vida me espera lá fora, longe
deste rugir alucinante da Natureza endoidecida.
[i] Extraído da revista Mocidade, Ano X, Fevereiro e Março de 1956, número 29 e 30.
Cedido pelo amigo Álvaro Antônio Melo Machado que, rebuscando o baú do seu avô,
o Prof. Antônio de Freitas Machado, encontrou esta prosa poética de Élio Lemos
França, impressionante premonição de se trágico fim.
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