Por
Etevaldo Amorim
Década
de 1930. Naquele tempo, as populações sertanejas viviam sob a ameaça dos ataques
de cangaceiros. Pão de Açúcar, que esteve na mira do bando do famigerado
Lampião, temia uma invasão que, afinal, nunca houve. O que ocorreu, na verdade,
é que foi invadida por um grupo de estudantes procedentes do Rio de Janeiro. Um
“ataque” alegre e bem intencionado.
Num
belo dia da segunda quinzena do mês de julho de 1935, quinze jovens universitários
desembarcam na “terra de Jaciobá”, quebrando a monotonia da cidadezinha do
interior do baixo São Francisco.
A viagem
dos acadêmicos cariocas era patrocinada pela Associação Universitária da
Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, e teve início a bordo
do navio “Campos Salles, tencionando passar por Vitória, Salvador, Aracaju,
Maceió, Recife e João Pessoa”.[i]
Durante
as férias de julho daquele ano, formou-se a Delegação Acadêmica, assim constituída[ii]:
J. G. de Araújo Jorge. Foto: Revista Fon-Fon, 1934. |
Zarpando
no dia 30 de junho, logo alcançaram Vitória no dia seguinte, dali partindo no
dia 1º de julho com destino a Salvador, onde chegaram no dia 3. Surgiu
ali a ideia de visitar a cachoeira de Paulo Afonso. Para tanto, em vez de
prosseguir de navio até o Recife, optaram pelo trem até Aracaju. Foram, então,
até o Interventor Juracy Magalhães e com ele conseguiram as passagens para a
capital sergipana. Dali o trem os levaria até Propriá.
De
fato, chegaram à “Princesinha do São Francisco” no dia 21.[iii] Tomaram,
então, uma pequena lancha que os levaria até Piranhas. A disponibilidade dessa
embarcação resultou de outra “facada”, desta vez no Interventor de Sergipe,
Eronildes de Carvalho. De lá, tomariam o trem da Estrada de Ferro Paulo Afonso
até a Estação da Pedra (atual Delmiro Gouveia), de onde seguiriam a cavalo até
as cachoeiras.
Um dos componentes da caravana, o jovem estudante José Guilherme de Araújo Jorge[iv], conhecido nos meios acadêmicos e culturais por “J. G. DE ARAÚJO JORGE”, contava apenas 21 anos de idade. Nascera a 20 de maio de 1914, em Tarauacá, então Território do Acre, onde seu pai, o Dr. Salvador Augusto de Araújo Jorge, membro de tradicional família alagoana, era Juiz Municipal.
Além de festejado poeta, foi político atuante, tendo exercido mandatos de Deputado Federal pelo Estado da Guanabara, pelo MDB, nas Legislaturas: 1971-1975; 1975-1979; e, pelo PDT, Estado do Rio de Janeiro: 1979-1983; 1983-1987.Em
artigo publicado na revista Carioca, edição de 11 de dezembro de 1943, ele
descreve aquela viagem e, especialmente, sua chegada a Pão de Açúcar.
A lancha utilizada pela caravana no porto de Propriá. Foto. Revista Carioca, 1943. |
“Em Pão de
Açúcar, chegamos às duas da madrugada. Era época em que o rio estava vazio e as
grandes praias do São Francisco ficam à mostra. Pois bem, às duas horas da
madrugada, seu Serafim[v], o
Prefeito, metido numa casaca, com colarinho engomado e pince-nez na ponta do
nariz, aguardava a caravana.
Apesar da hora,
havia muita gente e banda de música. Nem bem pulamos para a terra, e seu
Serafim saudou os estudantes. E lá fomos nós, enterrando os pés na areia, no
meio da música e da gente, abraçados pelo velhinho Serafim, todo amabilidade,
para a pensão da dona Alice.
Seu Serafim
recebera o nosso telegrama e preparara uma vasta ceia. A pensão, à falta de
cama, estava lotada de redes. Nós olhamos a grande mesa posta... sentamo-nos...
e comemos... comemos para não desgostar seu Serafim. A verdade é que não
fizéramos outra coisa senão comer, desde que saímos de Propriá. Depois, nos
espichamos nas redes. Isso sim, porque na lancha não havia camas, nem muito
espaço para esticar as canelas.
A mesma lancha sob outra perspectiva. Propriá, SE. Foto: revista Pelo Mundo, 1922. |
Aí soubemos do
caso doloroso de um caboclo, vítima do cangaço. Seu Serafim levou-nos a
visita-lo dizendo que eram todos estudantes de medicina do Rio e que queríamos
examiná-lo. Alguns médicos de Pão de Açúcar nos acompanhavam, e depois nos
explicaram o caso.
Morava o caboclo
com a mulher na aldeia Horizonte, a não sei quantos quilômetros dali. Um cabra
de Lampião soubera que o pai do caboclo dera informações à polícia da passagem
deles pela Região. A história de sempre. Entre a faca e a parede. Ou morrer nas
mãos da polícia, ou nas do cangaceiro. Voltou com o bando, matou o pai,
aproveitando-se todos da mulher, que estava grávida e a liquidaram também. Tudo
isso na frente do caboclo que fora amarrado a um esteio da casa. Depois, com
uma faca, o inutilizaram, e abandonaram-no a se esvair em sangue. O caboclo conseguira
libertar-se das cordas e percorrera a pé a distância de muitos quilômetros até
Pão de Açúcar, onde chegara quase morto.
Casos assim,
ouvíramos contar muitos durante o percurso. Este, porém, vimos com os nossos
próprios olhos, e nos horrorizamos diante da realidade. Estava ali, reduzido à
inutilidade, um caboclo forte, em plena mocidade, enrijado pelo clima, cujos
olhos parados e mortos prenunciavam o destino passivo dos bois de canga.
E foi com a
visão da sua tragédia que deixamos Pão de Açúcar e continuamos viagem, rumo a
Paulo Afonso”.[vi]
O navio Campos Salles. |
Outro membro da delegação, Benedicto
Calheiros Bomfim, era legítimo alagoano. Nasceu em Maceió no dia 24 de outubro
de 1916. Filho de Pedro Brandão Bomfim e Maria Calheiros Bomfim, tendo como
avós paternos: Antônio Correia da Silva Bomfim e Maria Brandão Bomfim; e avós
maternos: José Joaquim Calheiros e Anna Pontes Delgado Calheiros. Desenvolveu
brilhante carreira, destacando-se na defesa dos direitos humanos e, em
especial, dos trabalhadores. Faleceu no Rio de Janeiro a 7 de maio de 2016,
prestes a completar 100 anos. Era tio do Ex-Deputado Eduardo Bomfim.
Os estudantes na relação de passageiros desembarcados do Campos Salles em Salvador. Fonte: https://www.familysearch.org |
Alguns membros da delegação em visita ao Diário de Pernambuco. Foto: DP, 27/07/1935. |
*** ***
O Cap. Serafim Soares Pinto. |
O Capitão Serafim Soares Pinto foi prefeito de Pão de Açúcar por três
vezes: de 02/09/1892 a 31/07/1894; de 07/01/1911 a 07/01/1913 e de 08/01/1935 a
07/01/1936. Neste último período coube-lhe receber dignamente a Caravana dos
Estudantes de Direito do Rio de Janeiro. Quando J. G. de Araújo Jorge publicou
essas notas, seu Serafim já havia falecido. Não tomou ciência, portanto, da
gratidão daqueles jovens estudantes pela sua amável recepção.
Sobre aquele fato contristador mencionado por Araújo Jorge, invocamos a
informação dada por Aldemar de Mendonça no livro Monografia de Pão de Açúcar:
“BANDIDOS
MATAM UM VELHO E CASTRAM O FILHO”
“No dia 23 de
janeiro de 1935, os cangaceiros Zé Fortaleza, Medalha, Suspeita e Limoeiro,
conduzem, preso, para a fazenda Solidade, o velho Vitório e, no percurso da
fazenda Horizonte, matam o ancião e castram seu filho, conhecido por Beijo”.
Informa, ainda,
o nosso maior historiador:
“No dia 19 de
setembro do mesmo ano, os quatro bandidos foram mortos por Antonio de Amélia,
na fazenda Aroeiras, do município de Mata Grande.”
De
fato, a imprensa da época noticiou fartamente o triste fato[ix],
com uma diferença: o local da execução dos cangaceiros foi a “Fazenda
Aroeirinha”, localizada em território do atual município de Inhapi, à época
pertencente a Mata Grande.
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NOTA:
Caro
leitor,
Este
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, exibe postagens com
informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em
qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é
correto e justo. Segue abaixo, como exemplo, a forma correta de referência:
Sugestão
de registro de referência:
AMORIM, Etevaldo Alves. A CARAVANA DE ESTUDANTES QUE INVADIU PÃO DE AÇÚCAR. Maceió, agosto de 2020. Disponível em: . http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/08/a-caravana-de-estudantes-que-invadiu.htmlAcesso em: dia, mês e ano.
[i]
Jornal do Comércio, RJ 30 de junho de 1925.
[ii]
Fonte: Jornal do Comercio, RJ, 11 de agosto de 1935;
[iii]
A Noite, RJ, 22/07/1935.
[iv]
Nasceu em Tarauacá - Acre, a 20 de maio de 1914. Filho de Salvador Augusto de
Araújo Jorge e Zilda Tinoco de Araújo Jorge. Faleceu no Rio de Janeiro, 27 de
janeiro de 1987.
[v]
Serafim Soares Pinto. Era filho de Serafim Soares Pinto e Josefina Soares
Pinto. Faleceu em Pão de Açúcar, em 28/07/1943, 3:45 h duma quarta-feira, aos
85 anos, sendo sepultado às 16:30 h.
[vi]
ARAÚJO JORGE, J. G. de. CARAVANA À CACHOEIRA DE PAULO AFONSO. Revista CARIOCA,
11 de dezembro de 1943.
[vii] Gazeta
de Notícias (RJ), 30 de julho de 1935.
[viii]
Diário de Notícias, RJ, 11 de agosto de 1935 e Diário da Manhã, Vitória, ES, 2
de julho de1935.
[ix] Diário
de Pernambuco, 18 de outubro de 1935; A Noite, RJ, 15 de novembro de 1935.
Ótimo. Riquíssimo em conteúdo, criatividade e muita eficácia ortográfica. Parabéns. Está obra prima não pode ficar oculta tem que se divular
ResponderExcluirMais uma vez fico maravilhado com sua visão histórica, parabéns Etevaldo por mais essa bela obra.
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