sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A CARAVANA DE ESTUDANTES QUE INVADIU PÃO DE AÇÚCAR

 

Por Etevaldo Amorim

Década de 1930. Naquele tempo, as populações sertanejas viviam sob a ameaça dos ataques de cangaceiros. Pão de Açúcar, que esteve na mira do bando do famigerado Lampião, temia uma invasão que, afinal, nunca houve. O que ocorreu, na verdade, é que foi invadida por um grupo de estudantes procedentes do Rio de Janeiro. Um “ataque” alegre e bem intencionado.

Num belo dia da segunda quinzena do mês de julho de 1935, quinze jovens universitários desembarcam na “terra de Jaciobá”, quebrando a monotonia da cidadezinha do interior do baixo São Francisco.

A viagem dos acadêmicos cariocas era patrocinada pela Associação Universitária da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, e teve início a bordo do navio “Campos Salles, tencionando passar por Vitória, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife e João Pessoa”.[i]

Durante as férias de julho daquele ano, formou-se a Delegação Acadêmica, assim constituída[ii]Antônio Marins Peixoto (22 anos, Presidente), Dario Fortes do Rego (25 anos, Secretário), José Guilherme de Araújo Jorge (21 anos, Orador), Benedicto Calheiros Bomfim (19 anos), Olavo Lima Rangel (21 anos), Clemenceau Luiz de Azevedo Marques (22 anos, Conferencista), Raymundo Arroyo (23 anos), Hélio Lins Walcacer (25 anos), Aryaman Viçoso Jardim, José Eduardo do Couto Filho (20 anos), Geraldo Martins Silveira (19 anos); Homero Diniz Gonçalves (23 anos); Antônio da Costa Marques Filho (24 anos), Rubens de Andrade Filho (20 anos); Renato Neves (21 anos) e João Condé (22 anos).

J. G. de Araújo Jorge. Foto: Revista Fon-Fon, 1934.

Zarpando no dia 30 de junho, logo alcançaram Vitória no dia seguinte, dali partindo no dia 1º de julho com destino a Salvador, onde chegaram no dia 3.  Surgiu ali a ideia de visitar a cachoeira de Paulo Afonso. Para tanto, em vez de prosseguir de navio até o Recife, optaram pelo trem até Aracaju. Foram, então, até o Interventor Juracy Magalhães e com ele conseguiram as passagens para a capital sergipana. Dali o trem os levaria até Propriá.

De fato, chegaram à “Princesinha do São Francisco” no dia 21.[iii] Tomaram, então, uma pequena lancha que os levaria até Piranhas. A disponibilidade dessa embarcação resultou de outra “facada”, desta vez no Interventor de Sergipe, Eronildes de Carvalho. De lá, tomariam o trem da Estrada de Ferro Paulo Afonso até a Estação da Pedra (atual Delmiro Gouveia), de onde seguiriam a cavalo até as cachoeiras.

Um dos componentes da caravana, o jovem estudante José Guilherme de Araújo Jorge[iv], conhecido nos meios acadêmicos e culturais por “J. G. DE ARAÚJO JORGE”, contava apenas 21 anos de idade. Nascera a 20 de maio de 1914, em Tarauacá, então Território do Acre, onde seu pai, o Dr. Salvador Augusto de Araújo Jorge, membro de tradicional família alagoana, era Juiz Municipal.

Além de festejado poeta, foi político atuante, tendo exercido mandatos de Deputado Federal pelo Estado da Guanabara, pelo MDB, nas Legislaturas: 1971-1975; 1975-1979; e, pelo PDT, Estado do Rio de Janeiro: 1979-1983; 1983-1987.

Em artigo publicado na revista Carioca, edição de 11 de dezembro de 1943, ele descreve aquela viagem e, especialmente, sua chegada a Pão de Açúcar.

A lancha utilizada pela caravana no porto de Propriá. Foto.
Revista Carioca, 1943.

“Em Pão de Açúcar, chegamos às duas da madrugada. Era época em que o rio estava vazio e as grandes praias do São Francisco ficam à mostra. Pois bem, às duas horas da madrugada, seu Serafim[v], o Prefeito, metido numa casaca, com colarinho engomado e pince-nez na ponta do nariz, aguardava a caravana.

Apesar da hora, havia muita gente e banda de música. Nem bem pulamos para a terra, e seu Serafim saudou os estudantes. E lá fomos nós, enterrando os pés na areia, no meio da música e da gente, abraçados pelo velhinho Serafim, todo amabilidade, para a pensão da dona Alice.

Seu Serafim recebera o nosso telegrama e preparara uma vasta ceia. A pensão, à falta de cama, estava lotada de redes. Nós olhamos a grande mesa posta... sentamo-nos... e comemos... comemos para não desgostar seu Serafim. A verdade é que não fizéramos outra coisa senão comer, desde que saímos de Propriá. Depois, nos espichamos nas redes. Isso sim, porque na lancha não havia camas, nem muito espaço para esticar as canelas.

A mesma lancha sob outra perspectiva. Propriá, SE. Foto: revista Pelo Mundo, 1922.


Passamos um dia inteiro em Pão de Açúcar e guardamos a lembrança inesquecível de seu Serafim que, à falta de um elogio maior, era mesmo “um serafim” de bondade.

Aí soubemos do caso doloroso de um caboclo, vítima do cangaço. Seu Serafim levou-nos a visita-lo dizendo que eram todos estudantes de medicina do Rio e que queríamos examiná-lo. Alguns médicos de Pão de Açúcar nos acompanhavam, e depois nos explicaram o caso.

Morava o caboclo com a mulher na aldeia Horizonte, a não sei quantos quilômetros dali. Um cabra de Lampião soubera que o pai do caboclo dera informações à polícia da passagem deles pela Região. A história de sempre. Entre a faca e a parede. Ou morrer nas mãos da polícia, ou nas do cangaceiro. Voltou com o bando, matou o pai, aproveitando-se todos da mulher, que estava grávida e a liquidaram também. Tudo isso na frente do caboclo que fora amarrado a um esteio da casa. Depois, com uma faca, o inutilizaram, e abandonaram-no a se esvair em sangue. O caboclo conseguira libertar-se das cordas e percorrera a pé a distância de muitos quilômetros até Pão de Açúcar, onde chegara quase morto.

Casos assim, ouvíramos contar muitos durante o percurso. Este, porém, vimos com os nossos próprios olhos, e nos horrorizamos diante da realidade. Estava ali, reduzido à inutilidade, um caboclo forte, em plena mocidade, enrijado pelo clima, cujos olhos parados e mortos prenunciavam o destino passivo dos bois de canga.

E foi com a visão da sua tragédia que deixamos Pão de Açúcar e continuamos viagem, rumo a Paulo Afonso”.[vi]

O navio Campos Salles.

Outro membro da delegação, Benedicto Calheiros Bomfim, era legítimo alagoano. Nasceu em Maceió no dia 24 de outubro de 1916. Filho de Pedro Brandão Bomfim e Maria Calheiros Bomfim, tendo como avós paternos: Antônio Correia da Silva Bomfim e Maria Brandão Bomfim; e avós maternos: José Joaquim Calheiros e Anna Pontes Delgado Calheiros. Desenvolveu brilhante carreira, destacando-se na defesa dos direitos humanos e, em especial, dos trabalhadores. Faleceu no Rio de Janeiro a 7 de maio de 2016, prestes a completar 100 anos. Era tio do Ex-Deputado Eduardo Bomfim.

A excursão continuou. No dia 26 de julho chegaram no Recife.[vii] No dia 10 de agosto de 1935, chegou ao Rio a caravana após 41 dias de excursão.[viii]

Os estudantes na relação de passageiros desembarcados do Campos Salles em Salvador.
Fonte: 
https://www.familysearch.org

A Delegação diante da Faculdade de Direito do Recife. Foto: Fon-Fon, 1935. Ao centro, de terno branco e lenço escuro no bolso, o Diretor da Faculdade, Prof. Edgar Altino. À esquerda dele, de terno escuro, o acadêmico Antônio Marins Peixoto.

Alguns membros da delegação em visita ao Diário de Pernambuco. Foto: DP, 27/07/1935.


***   ***

O Cap. Serafim Soares Pinto.

O Capitão Serafim Soares Pinto foi prefeito de Pão de Açúcar por três vezes: de 02/09/1892 a 31/07/1894; de 07/01/1911 a 07/01/1913 e de 08/01/1935 a 07/01/1936. Neste último período coube-lhe receber dignamente a Caravana dos Estudantes de Direito do Rio de Janeiro. Quando J. G. de Araújo Jorge publicou essas notas, seu Serafim já havia falecido. Não tomou ciência, portanto, da gratidão daqueles jovens estudantes pela sua amável recepção.

Sobre aquele fato contristador mencionado por Araújo Jorge, invocamos a informação dada por Aldemar de Mendonça no livro Monografia de Pão de Açúcar:

 

“BANDIDOS MATAM UM VELHO E CASTRAM O FILHO”

 

“No dia 23 de janeiro de 1935, os cangaceiros Zé Fortaleza, Medalha, Suspeita e Limoeiro, conduzem, preso, para a fazenda Solidade, o velho Vitório e, no percurso da fazenda Horizonte, matam o ancião e castram seu filho, conhecido por Beijo”.

Informa, ainda, o nosso maior historiador:

“No dia 19 de setembro do mesmo ano, os quatro bandidos foram mortos por Antonio de Amélia, na fazenda Aroeiras, do município de Mata Grande.”

De fato, a imprensa da época noticiou fartamente o triste fato[ix], com uma diferença: o local da execução dos cangaceiros foi a “Fazenda Aroeirinha”, localizada em território do atual município de Inhapi, à época pertencente a Mata Grande.

****   ****

NOTA:

 

Caro leitor,

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, exibe postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo. Segue abaixo, como exemplo, a forma correta de referência:

Sugestão de registro de referência:

AMORIM, Etevaldo Alves. A CARAVANA DE ESTUDANTES QUE INVADIU PÃO DE AÇÚCAR. Maceió, agosto de 2020. Disponível em: . http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/08/a-caravana-de-estudantes-que-invadiu.htmlAcesso em: dia, mês e ano.



[i] Jornal do Comércio, RJ 30 de junho de 1925.

[ii] Fonte: Jornal do Comercio, RJ, 11 de agosto de 1935;

[iii] A Noite, RJ, 22/07/1935.

[iv] Nasceu em Tarauacá - Acre, a 20 de maio de 1914. Filho de Salvador Augusto de Araújo Jorge e Zilda Tinoco de Araújo Jorge. Faleceu no Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1987.

[v] Serafim Soares Pinto. Era filho de Serafim Soares Pinto e Josefina Soares Pinto. Faleceu em Pão de Açúcar, em 28/07/1943, 3:45 h duma quarta-feira, aos 85 anos, sendo sepultado às 16:30 h.

[vi] ARAÚJO JORGE, J. G. de. CARAVANA À CACHOEIRA DE PAULO AFONSO. Revista CARIOCA, 11 de dezembro de 1943.

[vii] Gazeta de Notícias (RJ), 30 de julho de 1935.

[viii] Diário de Notícias, RJ, 11 de agosto de 1935 e Diário da Manhã, Vitória, ES, 2 de julho de1935.

[ix] Diário de Pernambuco, 18 de outubro de 1935; A Noite, RJ, 15 de novembro de 1935.




2 comentários:

  1. Ótimo. Riquíssimo em conteúdo, criatividade e muita eficácia ortográfica. Parabéns. Está obra prima não pode ficar oculta tem que se divular

    ResponderExcluir
  2. Mais uma vez fico maravilhado com sua visão histórica, parabéns Etevaldo por mais essa bela obra.

    ResponderExcluir

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

PUBLICAÇÕES
Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia