Bráulio Cavalcante
Bráulio Cavalcante |
Adorável região dos meus tempos infantis, das minhas crenças que fugiram; das minhas esperanças que se foram! Aqui pompeou a luz radiosa de mil sóis fecundos; aqui pairou a candidez de mil luares; aqui sorriu a Primavera e desceu o santo orvalho às catedrais das florestas onde brincava a sereníssima brisa; aqui a vida se engrandeceu, prosperou.
O agricultor
rasgando o seio da terra, o homem da indústria sonhando novos horizontes, o
comerciante movimentando novos produtos, bem poderiam transformar este torrão
no mundo do Progresso, se a Natureza não viesse agora torná-lo em mundo dos canteiros.
Aqui
reina o Mal. Gane, goelas abertas, a Fome.
As
calamidades da Natureza inspiram uma grande piedade!... Setenta e Sete[i] no
Ceará teve um eco nos arraiais da Corte, que transpôs mesmo às terras de Camões;
– é justo que o mesmo eco irrompa desta dor igual, a fim de que lhe advenha um
remédio!
Sublime
caridade a do povo do Recife, socorrendo daquele clamor, aos irmãos do Norte,
em primeiro auxílio na inspiração da mocidade acadêmica!
......
Aqui
nos sentimos descer um sudário de morte!...
Não
devemos isolar o drama do cenário, na frase de Lamartine, esboçamos em ligeiros
traços, aos que não conhecem este amado torrão, o quadro aonde a Miséria Humana
veio cair.
A cidade
de Pão de Açúcar, demorando nas margens do caudaloso S. Francisco, é uma cidade
mantida pela indústria agrícola e pastoril, sendo que esta tem sido sempre
entregue a um sistema semisselvagem. Paralisadas que foram elas pela absoluta falta
de chuvas, como se desenvolver o progresso fabril, embora pequeno?
......
Agora
abre o sol incendiado pálio soberano, o grande sol em cáusticos aberto,
implacável na sua tirania!
No
centro da cidade, à Rua do Comércio, redemoinha o povo em feira, no struggle for life, algazarreando, em
pensamentos diversos, kaleidospicamente andando em várias direções.
O calor
sufoca. A ardentia mórbida fere a epiderme, em nervosismo. Prometheo talvez esteja
do alto do sol, radiante no orgulho de tanto fogo!
É a
luz implacável que arruinou campos e campos, que incendiou os troncos, os
caules, os colmos, os estipes. No movimento da feira, no tumultuar incessante,
a Miséria rasteja.
Ela
desceu dos montes com o abandono das plácidas choupanas e se chamou –
Emigração; desolou os vales, arruinou os lugarejos, acompanhou passo a passo o
retirante, se multiplicou, se dividiu em perseguição de cada emigrante que
fugia, de cada sertanejo que arribava!
Os
fenômenos meteorológicos armaram aqui a Natureza para uma luta inglória contra
o sertanejo! Luta implacável!
A Natureza
suplantando o homem pela tempestade, pelo raio, pela inundação, em uma palavra,
pela potência assombrosa de todos os seus elementos, tornou-se agora o
legendário Egis na desolação dos campos e das cidades.
....
Mas
cheguemos à cena que tanto nos inspirou. Ela terá traços ligeiros, mas
inspirará demoradas impressões.
No
dia 9 de março corrente, na feira desta cidade, passava a procissão dolorosa
dos mendigos no anseio do vintém... Eram cenas possuindo algo de dantesco...
Oh!
Sertão adorável de tanto sorriso e felicidade extinta, eu vos lamento!
Na
retina de cada mendigo, brilha a saudade perene de uma casinha abandonada que
se ficou em pleno cascalho combusto, paira a dolorosa imagem de uma ventura que
se foi.
Nos
fenômenos sociais distinguem-se três lástimas: o jogo, o roubo, o assassinato.
Agora
tudo isso é uma consequência da Miséria.
Já
não é somente a miséria do espírito, mas a torpe miséria material. Falo desse
organismo que suportara as intempéries do tempo e as inclemências do trabalho caído
agora em plena feira de uma cidade onde já existe civilização. E o homem que
suportara as iniquidades das forças superiores da Natureza, morre à mingua de
um pedaço de pão ou de carne!
Contam-se
cenas horrorosas da Fome.
Fulgura
o talento de Rodolpho Teóphilo quando se expande sobre as calamidades das
terras cearenses: o gênio de Guerra Junqueiro, canta se referindo à dita
Miséria!
Camões
é um grande símbolo que não morrerá nunca mais!...
A mulher
sertaneja tem, é certo, compreendido que a santa Caridade é um dever, é uma
justiça, - mas é preciso socorro maior!
....
Abre
o candente sol na safira dos céus. Campos e serras tudo, tudo está desolado...
Foi
a cena tremenda, implacável, que por aqui passou.
Ela
tudo crestou, tudo incendiou.
Nos
montes nus, caído pela inanição, o gado sofre as consequências da peste e os
cadáveres que deveriam ser queimados para que se evitasse a nociva infecção
atmosférica - serve muitas vezes para
alimento do sertanejo faminto!
Debanda
em todos os caminhos, assombrada, esquelética, sedenta, faminta, juma legião de
mártires.
É talvez
o doloroso trabalho do aperfeiçoamento, a dolorosa lecção...
*** ***
Recebei
Excelência, a crônica negra que a minha pena acostumada às puerilidades de um
lirismo inglório, traça perante a mágoa que empolga o povo de minha terra.
Pão
de Açúcar, 11 de março de 1908.
Bráulio Cavalcante.
Pão de Açúcar, 1910. |
Carta de Bráulio
Cavalcante endereçada ao Governador Euclides Malta, contra cujo governo se
debateria quatro anos depois, pagando com o preço da própria vida. Transcrito
do jornal Gutenberg, Maceió, 24 de março de 1908, p. 3
http://memoria.bn.br/DocReader/809250/8477
Bráulio Guatimozim Cavalcante. Filho do Capitão José Venustiniano Cavalcante e de D. Maria Olympia. Nasceu em Pão de Açúcar-AL, no dia 14 de março de 1887, na casa nº 23 da rua da Matriz (hoje Avenida Bráulio Cavalcante, nº 209). Faleceu em 10 de março de 1912, na Praça dos Martírios, em Maceió, de um ferimento penetrante na linha axilar posterior direita, no quarto intercostal, recebido quando realizava um comício em prol das candidaturas do Cel. Clodoaldo da Fonseca e do Dr. Fernandes Lima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário