PÁGINAS

terça-feira, 22 de setembro de 2020

NO BAIXO SÃO FRANCISCO

 

Eudes de Carvalho[i]

Em pleno verão, o viajante ao descer de automóvel a serra de Paulo Afonso para Marechal Floriano[ii], tem a impressão que vai aos poucos se aproximando da boca de uma fornalha. O declive quase brusco da estrada, contornando os serrotes, esmaga topograficamente a antiga vila de Piranhas; o ar rarefeito na depressão e a radiação calorífica provocada pela massa parda líquida do São Francisco, serpenteando lá no fundo da garganta, dão um conjunto climático esgotante e verdadeiramente insuportável ao forasteiro que veio tolerando razoavelmente o calor do vale do Ipanema e dos carrascos empedrados da caatinga alagoana.

Piranhas
Marechal Floriano, fronteira Norte do Baixo São Francisco, não revela essa importante posição econômica que desfruta, e não aparenta nas suas velhas ruas ladeirosas a marcha de algum progresso. Assentada abruptamente no sopé montanhoso da margem Norte do rio, parece que só tem se limitado a conservar essa finalidade de chave de ligação entre a costa e o Alto São Francisco.

O vapor da linha de Penedo, as bases e canoas trafegam rio abaixo, fazendo o comércio que os caminhões mantêm no centro nordestino. Ferreiros, viajantes, famílias, abarrotam essas conduções da estrada líquida, com bolsas, jacás, engradados e sacos de cereais.

A bordo do vapor as refeições são estritamente sertanejas: café pela manhã, com pão de Penedo e bolachas; almoço e jantar à carne assada, farofa e arroz.

Passageiros jogam baralho, discutem política ou ficam absorvidos com a paisagem. Crianças de ventre dilatado e pernas finas choramingam pelos bancos. Ouve-se contar a história do furo do cano que conduz água da cachoeira a Delmiro, por um esperto fazendeiro no Caldeirão, dando sangue novo e enriquecendo uma terra seca demais, para estar tão próximo de Paulo Afonso.

E o vapor desce em linhas sinuosas acompanhando os canais abertos pela cheia. Deixando-se distante Marechal Floriano, atravessa-se um verdadeiro paredão de serras, no meio de águas remansosas e profundas, onde cardumes de piranhas vorazes espreitam o boi na bebida, a fim de abocanhar-lhe a cauda ou os beiços.

Entremontes. Foto: CPDOC/FGV

Entremontes, Belém e outras pequenas vilas apertadas entre os serrotes, vão se destacando nas margens do rio, com seu casario branco.

De vida pobre, agricultura resumida e rotineira, nada há de se observar. Algumas canoas pedem parada ao vapor para embarcar famílias, grades de galinhas e ovos.

Nos pequenos recantos de praia, nas reentrâncias das margens, aparecem canais de irrigação e verdes hastes de arroz, cultivados em espaços tão limitados que mais se assemelham a pequenas hortas. Surgem alagados com pujantes capinzais; mangueiras esparsas, batata-doce, jerimum e pequenos roçados.

A água doce, que passa quase na porta de casa, vai para a bilha e o feijão; dá o banho, e leva a canoa fina como uma piroga à pesca farta, ou em viagem aos povoados próximos.

Quando a cheia começa a ceder terreno, vê-se as terras baixas se acobertarem de limo e detritos vegetais de toda a espécie, que desceram no arrojo da inundação. Então as ilhotas parecem recantos ubérrimos e encantadores, na sua apresentação verde-garrafa.

A enxurrada que desagrega a terra, diminuindo seu tamanho rio abaixo, em compensação aumenta-se rio acima, com o acúmulo da areia, barros, ramagens em montões desordenados, dando a impressão muito conhecida de que “as ilhas sobrem o rio”. Nelas, grande número de aves e animais de pequeno porte se abrigam e proliferam, constituindo excelentes regiões de caça.

Pão de Açúcar, 1946. Foto: João Lisboa
Só ao demandar as encostas empedradas de Pão de Açúcar, com o alargamento do rio sente-se um morno, porém constante vento a soprar de Este, sob uma temperatura elevada. Saltando em terra, o viajante nota uma cidade florescente e bonita. Também vem a conhecer a célebre poeira que faz parte da vida de Pão de Açúcar. Seu clima não é dos mais aconselháveis, principalmente para os portadores da peste branca. E, à tarde, o vento levanta das praias do rio um areal fino que invade as suas ruas, às vezes tão espesso que se assemelha a um siroco africano em menor escala. E a poeira com um calor inclemente penetra pelas portas, caixilhos e frestas das janelas, invadindo a seara doméstica.

Contam que um forasteiro chegou à terra colocou seu cronometro no fundo de uma mala, cheia de roupas, enrolando-o cuidadosamente em um lenço. No dia seguinte retirou-o, encontrando-o parado. Levando ao relojoeiro, foi-lhe informado que a maquinaria estava obstruída pela poeira, fato absolutamente trivial na cidade....

Naturalmente este episódio está fortemente dosado; porém, de algum modo, dá ideia do que seja a poeira de Pão de Açúcar.

Propriá, Sergipe, a próspera cidade sergipana.

A partir daí sopra forte ou mais amena; os horizontes tornam-se mais amplos, e as praias, com o desaparecimento dos acidentes físicos sucessivos como até então, se estendem para dentro, como grandes savanas. Observa-se que o lado sergipano apresenta-se mais fértil, com culturas mais vigorosas e extensas, dado a sua posição Sul, a salvo dos ataques diretos do vento a impelir a areia, como na margem oposta, além de receber uma percentagem mais favorável de precipitações.

Barcas passam acima e abaixo de panos enfunados. Despontam ilhas isoladas no rio cheio, além de Traipu. Entre Porto Real do Colégio e Propriá, o tráfego é intenso e sobre as águas ao longe, como pequenas manchas brancas, apontam várias embarcações a vela.

Barca no porto de Penedo-AL. Foto: CPDOC;FGV
De Propriá, descem bacuraus (barcas noturnas) que vão a Penedo e além. Em número de vinte e cinco, aproximadamente, assistimos a carregar açúcar. Dispõem de um pequeno camarote central com três camas laterais, para conduzir passageiros a Penedo, largando às 9 horas da noite e chegando às 4 da madrugada.

Penedo, velha capital do Baixo São Francisco e antigo empório do interior alagoano, está cedendo muito terreno a Propriá, sendo fato sintomático que o mercado varejista penedense muito se abastece hoje na próspera cidade sergipana, dotada de inúmeros estabelecimentos comerciais, públicos e bancários, além de belos conjuntos residenciais.

Aproximando-se o rio da foz, as ilhas aumentam de tamanho e número, e a areia invade a grosso, os canais de navegação.

Em Piaçabuçu ele sobre uma ligeira contração na sua já enorme largura, e aí termina o curso fluvial das barcas de cabotagem.

Aspecto típico de uma feira de cerâmica na Zona do São Francisco (Penedo)

Deixa então, o São Francisco, de ser um meio de gravitação da Região. Avançam, entretanto, pelo Pontal da Barra, para Maceió ou Recife, Aracaju ou Salvador os pesados barcos de grandes velas, abarrotados de carga, produtos vários da economia local: tecidos, cerâmica, cestas, peixes secos, etc., prolongando mar afora a rota comercial iniciada na velha e ladeirosa Marechal Floriano.

 

Um porto de canoa usado no transporte de carga no Baixo São Francisco.


***

Transcrito da revista Lavoura e Criação, Recife, PE, Ano I, Nºs 3 e 4, Vol II, Setembro/Outubro de 1946. Trata-se de relado de viagem realizada pelo meteorologista Eudes de Carvalho, do Serviço de Meteorologia do Recife, em março de 1946 em objeto de serviço.[iii]



[i]


Eudes Patrício de Carvalho, Engenheiro Agrônomo e Meteorologista. Foi Chefe do Observatório Meteorológico de Olinda. Foi Diretor Técnico da Federação das Associações Rurais do Estado da Paraíba. Nasceu em Areia-PB, a 27 de dezembro de 1914. Filho do Major José Patrício de Carvalho (farmacêutico) e de Maria de Almeida Carvalho. Avós paternos Flávio Pinto de Carvalho e Domitila Patrício de Carvalho. Avós maternos: Francisco Galdino de Almeida e Rosa Amélia de Almeida. Casou-se, em 1940, com Creusa Moreira da Costa (Creusa Moreira de Carvalho, após o casamento).

[ii] Em 17 de outubro de 1939, o município de Piranhas passou a se chamar Marechal Floriano, pelo decreto-lei federal nº 1686, voltando à antiga denominação (Piranhas) em 17 de setembro de 1949, pela lei nº 1473.

[iii] DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 21 de março de 1946, p. 5.

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