J. Calisto[i]
Tiradores de esmolas p/Festa do Divino.
Foto: Luiz Bartolomeu Calcagno.
A mulher que pede esmolas
para santos é, ordinariamente, velha. Roupas fartas, humor atrabiliário, uma
expressão de dignidade imensa, não raro um molho de cabelos e uma verruga na
venta.
Anda pelas ruas, pelas
feiras e pelas estradas, penetra familiarmente no interior das casas, conhece
remédios que, com a ajuda de Deus, não têm rival em substância, sabe histórias,
casos para contar a propósito de tudo, cura de quebranto, dor de cadeiras, espinhela
caída, com benzeduras e rezas. Tem orações para todas as moléstias.
Arroga-se uma grande
importância, emprestada pelas figuras de barro, de madeira, de gesso, de papel,
que lhe povoam o oratório pequeno, pintado de amarelo, com duas sentinelas de
cera à porta, espetadas com gargalos de garrafas.
Por aqui, por ali, anda
às pressas, a explorar a superstição alheia, agarrada a uma caixa de pau ou de
folha, que tem ao fundo uma estatueta grosseira ou uma litografia desbotada,
entre flores de papel e de lata, sujas, poeirentas, torcidas, requeimadas ao
sol.
É de ver a atitude
impagável com que apresenta aquilo aos fiéis que a rodeiam. Respeitosos, de
chapéu na mão, estes se chegam com gestos gravicômicos, chuchurreiam um beijo
aos pés da imagem que ali está e, curvados, piedosos, depositam um níquel na
sacola que se escancara a um lado.
É uma profissão rendosa.
Entre os múltiplos
retratos de personagens celestes que lhe enchem o altar, a mulher que pede
esmolas possui sempre um santo de resistência, espécie de oráculo da
vizinhança, hábil e conhecido fazedor de milagres, com uma grande autoridade
que lhe dá a velhice.
Muitas vezes vem de
outras gerações, pertencem a uma avó ou bisavó da proprietária atual, que
também explorava a indústria santeira, com algum êxito; e já naqueles tempos
remotos se revelava um razoável milagreiro. Com os anos, naturalmente, cresce a
virtude. Contam-se fatos a respeito dele, citam-se exemplos, que são espelhos,
dizem. É aquele que, naquelas redondezas, se recorre em caso de necessidade.
Fazem-lhe oferendas, compram-se os seus favores com laços de fita, toalhas
bordadas, velas de sebo, dinheiro. As promessas cumprem-se, que ele quase nunca
deixa de tomar em consideração a súplica dos crentes. Dor de dentes, engasgos,
reumatismo, abcessos, feridas, torcicolos, mal de empalamados, doenças de
olhos, dentições complicadas, tudo é motivo para importunações ao orago e
consequente paga à criatura que dele vive.
O santo recebe ex-votos
dos fiéis curados – muletas abandonadas, cabeças de barro, pernas, braços,
seios, outros órgãos. Isto, porém, oferece-se de preferência, por não ter valor
nenhum, à Santa Cruz de beira de estrada, também milagrenta, sempre enfeitada
de ramos e de flores, erguida num chão muito limpo, varrido a vassourinha.
A mulher que pede esmolas
faz festas com uma parte do dinheiro arrecadado. São novenas em que se cantam
coisas terríveis, numa língua atrapalhada e esquisita, benditos medonhos. No
terreiro da casa, botequins de folhagem, onde se vendem doces e cachaça. A
zabumba a atroar, acompanhando a irritante música dos pífaros. O foguetório
estalando no ar. E o povaréu agrupado em torno da mesa do leilão, onde se
erguem montanhas de frutos, pencas de ovo pintados, bolos, guloseimas, trabalho
de paciência, como a clássica e ingênua caixinha de segredo, enfeitada de papel
de cor, e cheia de castanhas assadas. Em baixo, o guinchar de bacorinhos
amarrados, de mistura com galinhas, patos e outros bichos.
É ali que a mulher que
pede esmolas para santos encontra uma de suas principais fontes de receita.
Aquilo deixa muito. Ora, se deixa! E reproduz-se com frequência porque, além
dos trabalhos do mês mariano, que rendem bastante, ela festeja o São Sebastiao
em janeiro, São José, em março; o Divino Espírito Santo em maio; Santo Antônio,
São Pedro e São João em junho; São Francisco em outubro; Nossa Senhora da
Conceição e Santa Luzia em dezembro, além de outros menores.
É uma profissão
recomendável, nestes tempos de crise, quando tudo está em apuros, o comércio
meio escangalhado, a lavoura quase morta.
Muito rendoso meio de
vida.
É só arranjar uma caixa,
um oratório, meia dúzia de estampas e uma verruga no nariz, coisa que dá certo
respeito e importância a uma pessoa que deseje dedicar-se à prática da
exploração do carolismo.
Transcrito do jornal O ÍNDIO,
Palmeira dos Índios, 13 de março de 1921, coluna TRAÇOS A ESMO. Disponível em :
http://memoria.bn.br/DocReader/720925/18
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[i]
J. Calisto, pseudônimo de Graciliano Ramos. Nasceu a 27 de outubro de 1892 em
Quebrangulo, Alagoas. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1953. Filho de
Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Barros Ramos.