J. Calisto[i]
Sertão nordestino. Desenho de Percy Lau.
Aqui vai, para variar, a
descrição de um antro muito meu conhecido, no alto sertão de Pernambuco. Isto
não tem importância nenhuma. De resto, o que desta coluna se escreve nunca tem
importância. Mas enfim pode ser que algum leitor tenha necessidade de viajar
por aquelas regiões meio selvagens; e sempre é bom saber onde vai cair.
É uma casa baixa, de
taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto, chato, acaçapado, quase sem
declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e
sujo; negras as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se,
deixando ver aqui e ali o frágil madeiramento que serve de carcaça ao prédio.
Três portas de frente e
duas janelas. As portas têm altura suficiente para que possa entrar uma pessoa
de mediana estatura sem curvar-se. As janelas, aberturas pequenas, quase
quadradas, estão situadas lá em cima, perto da telha. Para atingi-las, trepa-se
a gente a um caixão. Tem dobradiças de couro e não tem fechaduras – trancam-se
com um pedaço de pau roliço, envernizado pelo uso, que se introduz em uma cava
aberta no portal, presa a um cordel amarrado a um prego. As portas fecham-se
interiormente com taramelas.
Em frente há um alpendre,
o copiar, sustentados por esteios baixos, grossos, resistentes ao caruncho.
Limita-o uma plataforma que se ergue meio metro acima do solo, de terra solta e
pedra. É ali de dormem alguns hóspedes sem importância, na desagradável
companhia dos bodes, que lá vão fazer idílios.
Na sala principal há três
redes armadas em paus recurvos que saem do esqueleto das paredes. A um canto,
um enorme traste de pernas descomunais, que atravessam uma tábua de dez
centímetros de espessura, magnífico para rasgar a roupa de quem nele se senta.
Aqui e ali, em tornos de madeira, à guisa de cabides, penduram-se chapéus de
couro, gibões, perneiras e peitorais. Alguns sacos e surrões de cereais
substituem as cadeiras que faltam. Enormes cordas de laçar, cabrestos de
cabelo, encerados, cangalhas, alpercatas, prodigiosos sapatões de montar, com
grossas esporas de rosetas incríveis, espalham-se desordenadamente.
Sobre uma tosca mesa,
lavrada a enxó, um oratório envolto em uma toalha vermelha, de florões. Há
dentro dele uma litografia de Nossa Senhora, desbotada, em caixilho sem vidro,
um crucifixo, alguns santos de barro e de gesso, enfeites de papel, uma lamparina
e uma vela benta. Na mesa, uma gaveta. Na gaveta, um museu – rolos de cera,
novelos de barbante, agulhas para sacos, pedaços de sola, um tabaqueiro, um
couro de fazer rapé, um martelo, uma torquês, sovelas, chifres de veado,
pontiagudos, pacotes de orações, sementes, bolas de sebo, látegos, chocalhos,
pregos, fivelas, um macete e um Lunário Perpétuo.
À direita de quem entra,
há um cubículo com um monte de algodão.
À esquerda, um salão mal-assombrado,
onde se misturam, numa confusão de mil diabos, montanhas de queijos, cestos,
caçuás, samburás, rolos de fumo, cuias, cabaços, gamelas, selas de campo,
cavaletes, pedras de amolar, arame farpado, facões, espingardas de pederneira,
machados, foices e enxadas.
Da sala principal segue
para os fundos um corredor estreito e sombrio, preto de pucumã e teias de
aranha. Dão para ele dois quartos fronteiros. Um, das meninas, nunca se abre. O
outro, dos donos da casa, deixa ver, através da porta meio aberta, algumas
arcas, onde se aferrolha o tesouro da família, e uma cama baixa, sem colchão,
com o lastro de couro de boi, em cabelo, gasto pelo atrito de algumas gerações
que por ali se fizeram, viveram e morreram.
O corredor desemboca na
sala de jantar. Há ali uma pequena mesa, que raramente se forra. É toda
escalavrada, cheia de altos e baixos, pelo hábito de picar-se fumo em cima
dela, a vaca de ponta. Ladeiam-na dois bancos medonhos. Perto, uma velha
máquina de costura em cima de um caixão vazio. À entrada, um pote sobre uma
forquilha em triângulo, plantada no chão. Nas pontas das varas que saem das
paredes, candeeiros de folha, pendurados pela asa, desses de torcidas de
algodão em rama, negras, fumegantes e fedorentas.
Com a sala de jantar
confinam a cozinha de um lado, de outro o quarto das criadas, três pretas que foram
escravas e que ali continuam, porque não sabem o que fazer da liberdade. Uma
delas dá-se ao lucho de dormir em uma cama de varas, a isidora, erguida sobre
quatro estacas pregadas no chão. As outras dormem em esteiras. Têm caixas de
pinho, onde guardam a roupa, em combucos cheios de bugigangas – espelhos,
voltas de conta, alfinetes, frasquinhos de perfume, anéis, brincos, pulseiras e
rosários.
A cozinha é de proporções
exíguas. Uma grossa camada de fuligem dá-lhe um novo teto, sobreposto ao
primeiro. Um jirau, a que frequentemente se bate com a cabeça, substitui a
despensa. Amontoam-se neles mochilas de sal, réstias de cebola, espigas de
milho, botijões de manteiga. Mantas de carne, linguiças, panos de toicinhos
pendurados a uma corda que vai de uma parede a outra. O fogo é feito no chão,
entre grandes pedras dispostas em trempe. A um canto, um montão de cinza e
carvões apagados. Todos os dias, uma preta, de rastos, varre aquilo a
vassourinha. Frigideiras, caldeirões, panelas, marmitas de folha, ralos, canecos,
abanos formam o sistema planetário de um tacho velho, rachado, cheio de nódoas
verdes. Em cima de um pilão deitado um gato ronca. Junto ao lume, há quase
sempre uma velhota acocorada, a acender o cachimbo de canudo de taquari com uma
brasa espetada a um garfo. Encostada a uma das pedras da trempe, uma banda de
casca de coco com um cabo de pau. É a quenga. Na parede, o caritó, pequena cava
em forma de concha, onde se guardam objetos miúdos – pedras de sal, pontas de
cigarro de palha, dentes de alho, cordões, retalhos de pano, agulhas, peles de
fumo que se oferecem a Santa Clara, a troco de pequenos milagres caseiros.
Uma janela baixa, onde se
senta um rapagão indolente, a esquentar-se ao fogo, dá para o quintal, nu, com
um barreiro cheio de água turva, coberto pela sombra escassa de uma árvore
morta.
Junto ao quintal há um
jardim povoado de algodoeiros, verduras, vasos com alecrim e losna, urtigas e
até flores. Cobre-o uma imensa ramagem de uma baraúna secular.
Do lado oposto, três
currais de cercas eternas, mourões gigantescos. Um pouco afastado, o chiqueiro
dos bodes.
Em frente, um grande
pátio branco, limitado por árvores sempre verdes, que roubam um pouco a vista
dos montes distantes, levemente azulados à luz crua do sol.
No terreiro, no pátio, na
calçada, confraternizam galinhas, bacorinhos, cabras, carneiros, alguns cachorros
com extravagantes coleiras feitas de rodelas de sabugo queimado, enfiados em
pedaços de embira.
Aí está a descrição de
uma casa sertaneja, sem tirar nem por. Não aconselho o leitor a que se vá
alojar nela. Mas há gente que mora ali, o que prova que o homem é um ser capaz
de adaptar-se a tudo.
Transcrito do jornal O ÍNDIO,
Palmeira dos Índios, 1º de maio de 1921, coluna TRAÇOS A ESMO. Disponível em : http://memoria.bn.br/DocReader/720925/46
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Caro leitor,
Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E
LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de
pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência
bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu
interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior
proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a
citação das referências. Isso é correto e justo.
[i]
J. Calisto, pseudônimo de Graciliano Ramos. Nasceu a 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo,
Alagoas. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1953. Filho de Sebastião
Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Barros Ramos.
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