PÁGINAS

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O BICHO DO CAJUEIRO GRANDE

 

Conto de W. Batinga de Mendonça[i]

Penedo. Fonte:Arquivo Nacional


Corria o ano de 1906. O Cajueiro Grande não era ainda esse aprazível bairro que hoje constitui a melhor zona de moradia de Penedo. Poucas eram as casas. O mato crescia exuberantemente pelas ruas.

Na hoje Praça Joaquim Távora, nas proximidades da igreja do Senhor dos Pobres, erguia-se uma casinha mal coberta de palha de ouricuri que abundava por traz do cemitério. Nela morava o velho Mané Gomes, caboclo decidido que de nada jamais de arreceiou.

Correu um rumor entre os poucos habitantes da zona de que um “bicho” andava aparecendo pelo Cajueiro Grande, fazendo arruaças com quantos notívagos lá aparecessem.

Houve, mesmo, quem o tivesse visto. O João da Rocinha, que tinha uma filha, moçoila dos seus vinte anos bem sabidos, vira-o uma vez, através de uma fresta da porta, atravessar pela frente de sua casa. Era alto, envolto em comprido roupão preto, com olhos luzidios como brasas, e longas unhas. Assim o vira o João da Rocinha.

O Mané Gomes ouvira o povo falar do “bicho” e ficara a rir, com um riso seu, malicioso. Era ele velho conhecedor da vida. Experimentado...

Os moradores entenderam de pegar o “bicho”. Dias e dias esperaram: ele não aparecia, porém. O Mané Gomes via todo esse trabalho e ficava em sua porta até alta noite, puxando seu pito de barro.

Passaram-se os dias, e o “bicho”, que não aparecia, foi sendo esquecido.

Após as noites de escuro, quando a lua majestosa reinava no céu, uma vez em que estava o velho Gomes a fumar seu cachimbo, viu um vulto ao longe surgir, devagar, devagarinho, e parar no tradicional Cajueiro que deu seu nome ao bairro. Dali, esgueirando-se pelos matos, ele chegou até a parede da igrejinha, e de lá, acocorado, soltou um assobio forte que estrilou no silêncio da noite.

Mané Gomes, que entrara em casa, arrodeou pelo mata-pasto do cemitério com uma corda na mão, e se foi aproximando, lentamente, da igreja.

Novo assobio cortou os ares. Desta vez, na porta da casa de João da Rocinha, uma luzinha apontou e depois desapareceu. Mané Gomes compreendeu. Era a filha do João. Este tinha ido para sua roça à tardinha, e só chegaria no dia seguinte, à tarde. A filha ficara em casa com a velha que estava a dormir profundamente, no momento.

O Gomes deu uma volta, ainda com a corda na mão, e se pôs no oitão da casa do João da Rocinha.

Era tempo. Assim que lá chegou, o “bicho” foi se aproximando, e quando ia a entrar na casa, sentiu uma corda a passar-lhe no pescoço. Com o susto, caiu! Um vulto surgiu, e amarrou-lhe as mãos, os pés, as pernas e, lentamente, à luz da lua, arrancou o pano preto que o “bicho” tinha no rosto. Soltou depois uma gargalhada forte, que estrugiu na noite. A porta onde ia o “bicho” a entrar, já se fechara e Mané Gomes ouviu uma voz que rezava.

Finalmente chegou o dia.

O primeiro passante notou, ao pé do Cajueiro, qualquer coisa amarrada e para lá se dirigiu. Outro chegou, mais outro. E a roda foi crescendo, aumentando. Todos conheceram o “bicho” que assustava os moradores locais.

Um deles, enfim, resolve tirar a limpo o mistério. E arranca-lhe a máscara do rosto. A ansiedade foi geral. Um silêncio envolveu a todos como se se tratasse do ato mais solene que já houvessem presenciado.

Ao cair a máscara, uma exclamação surda rompeu o silêncio. Era um comerciante. Honrado. Probo. E cuja cabeça já estava envolta na auréola branca da velhice.

Quando chegou da roça, o João da Rocinha teve uma longa conversa com o Mané Gomes e no dia seguinte arribou viagem rio abaixo para a Ilha dos Bois.

Nunca mais apareceu bicho no Cajueiro Grande...

 

Transcrito da revista O Macho, Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1935.

Caro leitor,

 

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] WALDYR BATINGA DE MENDONÇA. Professor, funcionário do IAPI – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários. Nasceu em Penedo no dia 24 de agosto de 1909. Filho de Fernando de Mendonça e Cecília Batinga de Mendonça, professora na Escola do Oiteiro e no Grupo Escolar Gabino Besouro, em Penedo-AL. Casado com Maria Lôbo Barreto, conhecida por “Moreninha”. Seus avós paternos eram: José Francisco de Mendonça (natural de Quebrangulo-AL) e Theolinda Olympia de Mendonça. Os maternos: José Vicente de Araújo Batinga e Joana Angélica Machado Batinga. Foi fundador, juntamente com João Evangelista Cajueiro, do Centro Penedense de Letras.  Obra: Jonas Batinga: O Poeta de PenedoRio de Janeiro: Edições Batinga, III, 1988.

 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

O NATAL DE SEU HERMÍDIO

 

Conto de Breno Accioly[i]

 

Breno Accioly. Revista Sombra-1949
Lembro-me numa memória que me conta o meu Natal de nove anos. Era um Natal possuindo todas as
cores do mar bem como todos os desenhos das nuvens, e não lhe faltavam, apesar de toda essa riqueza estratosférica e marítima, as vozes da Nau Catarineta se arrebentando na amplidão de adeuses, sempre comoventes.

O Natal do bairro da Levada da sonolenta Maceió possuía manjedoura, além dos três Reis Magos, e a ele aderiam caixeiros, gigolôs, seminaristas, mulheres de cinco cruzeiros, viúvas, investigadores, Juízes, Cônegos, Desembargadores e doidos que ficavam escavacando as cavernas das ventas com lâminas de unhas emporcalhadas, quando não soltavam palavrões, faziam gestos obscenos com as mãos, os dedos, os punhos, as línguas. Isso acontecia em Maceió, mesmo pobre apesar das riquezas da Nau Catarineta, apesar dos berros dos instrumentos de uma banda de música lembrarem furiosas gargantas de crianças em férias.

Não havia Nau Catarineta nem banda de música no Natal de Santana do Ipanema, tampouco aqueles cestos subindo pessoas na Roda Gigante. Havia, no entanto, o Presépio de “Seu Hermídio”, um artesão que obumbrava o prestígio do Padre Bulhões porque era ele o maior homem do Natal. Padre Bulhões perdia longe para Seu Hermídio, não porque a casa de Seu Hermídio possuísse uma sala que podia ser comparada a uma nave, de tão grande. Mas pelo motivo de Seu Hermídio viver de canivete nas mãos, esburacando palmos e palmos de madeira, talhando, dando formas de imagens a toros, que eram trazidos dos montes nos lombos de jumentos, na cabeça de biscateiros encachaçados e pornográficos. A matutada gostava de Seu Hermídio, outrossim, as crianças que aprendendo a falar logo balbuciavam “Sê Hermidi” – tão vasto como um rio, tão sozinho como um caramujo, tão impenetrável qual o mistério da morte.

Todos desconheciam o motivo por que Seu Hermídio não arredava o pé de casa, jamais alimentara um namoro, outrossim, ninguém sabia ao certo onde ele havia nascido nem pessoa alguma sabia precisar em que ano chegara a Santana do Ipanema aquele homem, alto, magro, à maneira de um cachorro faminto, olhando a todos de viés como se amasse a perspectiva dos ângulos; aquele home que tinha como mundo uma casa de platibanda vermelha, coberta de telhas encardidas, bolorentas.

Quando os habitantes de Santana do Ipanema abriram os olhos, era Seu Hermídio, o mais íntimo de toda a cidade, aquele que recebia das crianças mais afeto, pois as crianças Seu Hermídio parecia viver. Todas as vezes que o procuravam, encontravam-no, ou deslocando os olhos de Santa Luzia, ou pintando as chagas de São Roque, quando não colava um braço de um boneco maneta, destorcia o pescoço de um soldado de molas, aleijado à fúria de mãos inocentes.

Mas, como era suja a casa de Seu Hermídio! Aranhas bordavam redes e lenços de prata que tão leves, não conseguiriam desfazer o equilíbrio da mais delicada e sensível das balanças.

E ainda existiam sapos enormes, alimentando-se de insetos que, por acaso, fossem visitar a cozinha, sapos-cururus, sapos-mijadores capazes de cegar alguém com aqueles esguichos qual jatos de pútridos lança-perfumes. Seu Hermídio também não temia as lacraias, silêncios repelentes, abomináveis ferrões vermelhos, longe ou perto das paredes, imóveis à maneira de crocodilos.

Das redondezas chegava gente a procurar Seu Hermídio, a trazer-lhe imagens desbotadas, crucifixos pubos, uma porção de coisas velhas, do tempo do onça, que pediam a atenção de mãos hábeis. E as mãos de Seu Hermídio davam jeito, descobriam um modo de amenizar aleijões, recompor traços e silhuetas devoradas pela gulodice do tempo.

Somente à véspera da Noite de Natal Seu Hermídio espanava as janelas, enxotava os sapos, espantava caranguejeiras de pernas cabeludas, ao tempo em que arrancava da face aquela tristeza que lhe adormecia os olhos, punha de lado aquela sua paciência, tão comum na vida dos bois. E fazia tudo isso para escancarar as portas, deixar à vista de todos o seu Presépio, onde o Menino-Deus dormia numa manjedoura do tamanho de uma banana-pão.

O presépio de Seu Hermídio era uma gama de molas invisíveis. Se se pusessem quinhentos réis no buraco de uma salva de papelão, colocada à direção do Norte, o Menino-Deus acordava e deixava ver-se-lhe o azul dos olhos sorrindo, enquanto Nossa Senhora balançava a cabeça, agradecendo liturgicamente, São José levava a mão direita até as barbas (não sei por que), enquanto os cavalos dos três Reis Magos faziam menção de galopar pela estrabaria adentro. O Presépio de Seu Hermício estava cheio de molas invisíveis, repito. E sentado ao lado do Presépio, à direção do Sul, Seu Hermídio vigiava os matutos que se acotovelavam, praguejavam ao disputar um lugar bem próximo do sorvedouro da salva de papelão.

Toda aquela engrenagem parecia suportar o peso de todas as esmolas do mundo. E que engrenagem inteligente! Se a esmola fosse de mil réis, o Menino-Deus ficava mais tempo acordado enquanto a Estrela D’Alva se inundava de uma luz perene. Tudo no Presépio era calculado, pois ninguém podia escurecer os dedos tocando naquele Rei Mago de cor preta. Dir-se-ia que o Presépio se assemelhava a um mundo, cujas fronteiras fossem de arame farpado. Um parapeito impedia de ver-se mais de perto as ovelhas enfiarem a boca nos feixes de palhas; somente ao alcance da gente ficava a salva de papelão, engolindo, engolindo moedas, sem cerimônia como um insaciável estômago uivante.

Não posso esquecer-me da pergunta que fizera à minha avó:

- Terá por aqui um Presépio como o de Seu Hermírio?

A resposta me magoou. E por isso mesmo eu detestei o rolar amoroso da Roda Gigante do Natal de Maceió, achei sem sabor o caldo de cana, recusei, obstinado, o convite que recebera de atirar fechas num alvo de fácil alcance, porque meu pensamento me levava para perto do Presépio de Seu Hermídio, para perto de uma véspera de Natal em Santana do Ipanema, precisamente há um ano atrás, onde eu não me cansava de admirar a sabedoria de um homem semi-analfabeto enriquecer ainda mais a riqueza dos sonhos mirabolantes de meus nove anos, com aquela Nossa Senhora balançando a cabeça, agradecendo as esmolas, liturgicamente, e o Menino-Deus sempre acordando para melhor ver a ingenuidade dos sertanejos.

 

Transcrito da revista A CIGARRA, Rio de Janeiro, dezembro de 1954.

 

Caro leitor,

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[i] BRENO ROCHA ACCIOLY. (Santana do Ipanema - AL  22/03/1921 - Rio de Janeiro - RJ  13/03/1966). Escritor, jornalista, médico.  Filho de Manuel Xavier Accioly e de Maria de Lourdes Rocha Accioly.   Aos nove anos foi morar em Maceió onde terminou os preparatórios no Colégio Diocesano. No Recife, em 1938, fez o curso pré-médico no Ginásio Pernambucano.  Matriculou-se na Escola de Medicina do Recife (PE), mas sua inclinação era para a literatura. Participou do Congresso de Poesias, realizado 1941. Colaborou no  jornal da arquidiocese alagoana, O Semeador, a partir de 1937.  Em dezembro de 1942 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso na Faculdade de Ciências Médicas (1946), especializando-se em hanseníase. Foi   médico da Prefeitura da então capital federal.  Colaborou nos Diários Associadosna Revista do Brasil e em Autores e Livrosquando de sua vida acadêmica no Recife, com destaque para  O Jornal de Alagoas da década de 1950, em seu suplemento dirigido pelo jornalista  Arnoldo Jambo. Participou do grupo da Revista Branca. Escreveu crônicas para rádios e jornais. Permaneceu, algum tempo, internado em uma clínica psiquiátrica. Patrono da cadeira nº 19 da ACALA.  Patrono da cadeira nº 05 da ASCLA. Obras: João Urso, Rio de Janeiro: Edições EPASA, 1944, com o qual recebeu o prêmio Coelho Neto, da ABL, bem como o prêmio de contos  Afonso Arinos, da ABL e o prêmio Graça Aranha da Fundação Graça Aranha, prefácio de José Lins do Rego; Cogumelos,  Rio de Janeiro: Edição A Noite, 1949, prefácio de Gilberto Freyre (contos).;  Contos,  Rio de Janeiro: Ed. O  Cruzeiro, 1953;  Maria Pudim,  Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1955, capa de Poty (contos); Dunas,  Rio de Janeiro:Ed. O Cruzeiro, 1955 (romance); Os Cata-Ventos,  Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962 (contos). A Eucaristia e a Verdade, in Primeira Semana Eucharística Parochial, de 24 a 31 de Outubro de 1937, na Igreja Matriz de Jaraguá, Maceió: 1937, p. 198-205. Deixou inédito: Siracusa, Pedras e Izabela, três romances. Foram publicados: Os Melhores Contos de Breno Accioly, seleção de Ricardo Ramos, São Paulo: Global Editora, 1984 e Onze Contos Inéditos, Maceió: Edicultec, 1989, organização de Rommel Acioly, ilustrações de Darel e Bruno Giorgi;  Breno AcciolyObras Reunidas, São Paulo: Escrituras, 1999. João Urso Urso Contos Incríveis de Breno Accioly, Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2015. Breno Accioly Onze Contos Inéditos, Maceió: Edicultec, 1989, organização de Rommel Acioly, ilustrações de Darel e Bruno Giorgi. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

MEU TIO GALARIM

 

Conto de Edgard Braga[i]

Eu devia ter oito anos, se tanto. Meu pai era um modesto professor primário. Minha mãe costurava para

Edgard Braga-Revista A Cigarra-SP, 1931.

fora. Era piedosa e muito estimada.

Morávamos numa casa pequena, com alpendre, onde algumas samambaias desnastravam crinas de um verde-amarelo de sol. Um dia, à hora do almoço, meu pai abriu uma carta e anunciou que breve chegaria o seu único irmão que durante largos anos vivia em Mato Grosso, dono de latifúndio, gado e cavalhadas.

- Seja bem-vindo, respondeu minha mãe; o pior é que a casa era pobre e os proventos minguados...

- Ao que parece ele já não tem mais nada, observou meu pai, guardando a carta.

- Paciência, aonde comem dois, podem comer três...

Terminado o almoço, meu pai me disse: é o tio que aí vem.

Raramente ouvia falar desse tio. Meu pai era um homem taciturno, falava pouco e lia muito, quando em vez, jogava gamão aos sábados, à tardinha, à porta da farmácia com alguns amigos. Minha mãe repartia o seu tempo entre as lidas caseiras que amava corretas e a costura alheia, encontrando vagar para me auxiliar nas lições.

Passou um mês, uma noite, parou à porta uma charrete e dela desceu um homem espadaúdo, encardido, com bigode negro espichado, e um meio sorriso de dentes limados e brancos. Era o tio, o tio que depois eu soube chamar-se Galarim. Entrou como se estivesse acostumado àquela casa há longos anos. Minha mãe o levou ao quarto arrumado há dias. Meu tio apenas confessou que havia perdido quase tudo, e por isso desejava viver e morar com o irmão, de vez que tinha ninguém.

- Assim é a vida, disse-lhe meu pai.

- Não tem importância, vamos adiante, resmungou Galarim, enquanto enrrolava o cigarro de palha. Em seguida, lavou-se, comeu, e no alpendre, pois era quente e noite, contou a meu pai que havia perdido no jogo os seus teres, e que ficara apenas com o que viver.

- Pois a casa é sua, seu mano!

A nossa vida continuou sem nenhuma importância. Tio Galarim foi apresentado a um ou dois amigos de meu pai com quem, às vezes, embora calado, jogava loto ou dominó. Surpreendi-o, muitas vezes, a olhar-me, como se estivesse a reavivar, para dentro das pupilas castanhas, velhas lembranças. De uma feita, tomou-me ao colo:

- O que desejas ser? – Perguntou.

- Palhaço de circo, respondi, enfiado.

Tio Galarim pousou-me no chão, ficou sério, fez um gesto de descrença e murmurou:

- Não tem importância, vamos adiante.

Ao fim de cada mês, entregava a minha mãe uma certa quantia que era a sua parte nos gastos cotidianos. Quase nunca saia de casa, com exceção das noites de luar em que se vestia de culote, camisa azul, botas de montaria. No quintal, de pé, estalava um chicote de cabo de prata, aos gritos, como se tangesse cavalos.

Ganhava a rua em seguida, “eia, eia”, brandindo o relho. Voltava altas horas, e dormia resfolegando como um boi de canga.

Meu pai tentou certa vez saber a razão daquilo, mas tio Galarim fez um gesto que a todos emudeceu:

- Não tem importância, vamos adiante.

Uma feita, seu Neco, da farmácia, advertiu a meu pai:

- Olhe, professor, toda a gente diz por aí que seu mano é fraco das faculdades. Onde já se viu alguém andar noite afora a dar chicotadas nas sombras?!

Meu pai procurava desculpar:

- É o jeito dele; não vê que Galarim é um atleta e precisa de exercícios?

Assim o tempo foi passando. Olhavam o meu tio com um certo respeito, misto de medo e pena. Um dia, à tardinha, minha mãe mandou-me à venda buscar qualquer coisa. No caminho, topei com um grupo de meninos que me cercou aos berros de “seu tio é doido”, “seu tio é doido”. Atirei-me a eles, e distribui pontapés e tapas a torto e direito, até que atingi o olho de um menino. O sangue jorrou, eu corri e fui me abrigar à porta da farmácia, onde sabia que meu tio, àquela hora, jogava dominó. Pouco tempo depois, chegou o menino pela mão do pai, com um lenço empapado no rosto. Seu Neco deixou o jogo, e dizendo que não era nada, levou o garoto para dentro. O pai, colérico, vendo meu tio, entrou de esbravejar, que a coisa não ficava assim... Meu tio largou as pedras, levantou o punho com uma clava e quando parecia que ia abater o outro, apenas disse soturno:

- Não tem importância, vamos adiante!

Chamou-se para perto de si e arrumou o pequeno tabuleiro. Levantou-se, segui-o um tanto orgulhoso daquela força potencial, que impunha respeito. Em casa, minha mãe, que soubera do fato, repreendeu-me.

Desatei em pranto:

- Chamaram o meu tio de doido!

Tio Galarim, que ouvira minha explosão, voltou-se para minha mãe e, puxando-me para perto, afagou-me:

- Não tem importância, vamos adiante.

Nessa noite, era junho, havia um luar de espelho; a lua cheia, no meio do céu, banhava a cidade de uma claridade de paina e neblina.

Todas as coisas como que ressuscitavam do sono do frio, tocadas do afago da lua mansa e dormente. Nuvens iam se acumulando sobre os montes, ao fundo, algumas tomavam formas estranhas e pareciam quererá encobrir a lua, que rolava à sua roda de ouro indiferente à paisagem terrena. Eu não conseguia dormir. As horas iam passando com lentidão de cansaço. De repente, ouvi passos e a voz do tio Galarim: “eia, eia – Ouro Negro!”.

Meu pai, já recolhido, tossiu, como se avisasse que estava também acordado.

Senti que meu tio estalava o chicote e descia do terraço, rumo à rua: “eia, eia, Ouro Negro”!.

Ao dia seguinte, apanhando-o a sós no alpendre, não me contive:

- Que cavalos o senhor estava enxotando?

Tio Galarim sorriu e respondeu: os das nuvens, mas não tem importância, vamos adiante...

Outra noite insone, esperando ouvir de novo o passo do meu tio, o ruído das esporas, o estalido do chicote. Dessa feita, porém, tio Galarim ficou no seu quarto.

Procurando vencer o medo, levantei-me, abri devagarinho a janela que dava para o terraço e olhei para o céu. A lua, como na véspera, brolhava ainda bem alta, posto que já tivesse aquele aspecto de moeda dourada. Nuvens deslizavam diante delas e tomavam formas estranhas, ora de gigantes, ora de palácios, ora de cavalos em corrida.

Não sei quanto tempo fique preso àquele espetáculo que o tio Galarim me havia desvendado, e que jamais soubera que alua possuía palácios e cavalos brancos! Enquanto houve luar, noites seguidas deleitei-me na treva e no silêncio com os fantoches e os carros da noite.

Um dia, meu pai, à mesa perguntou ao irmão, de chofre:

- Nunca desejaste família?

Meu tio esboçou um gesto cortante e respondeu, como de sempre:

- Não tem importância, vamos adiante!

Meu pai desconversou, e quando tio Galarim saiu, minha mãe observou que ele tinha bom coração, e devia ter tido alguma coisa amorosa na vida. Aquilo tudo devia ser saudade... de mulher.

Rumores de que tínhamos um doido varrido na casa encheram a cidade. Meu pai, conceituado, começou a sofrer, embora evitasse o assunto. Tio Galarim continuou a sua fantasia, e já agora, quase todas as noites, houvesse ou não luar no vasto céu profundo.

Repentinamente, porém, tio Galarim deixou de sair com as suas esporas, chapéu de vaqueiro e chicote. Recolhia cedo, deitava-se calado e dormia roncando.

- Até que, afina, disseram a meu pai, o mano está calmo...

Um dia meu tio chegou-se a meu pai e lhe disse:

- Deixo tua casa; vendi os cavalos; vou-me daqui.

Arrumou a mala, chamou minha mãe, deu-lhe as botas e as esporas, o chicote.

- Venda-os, se quiser; ou os dê a quem quiser receber.

Nessa mesma tarde, entregou a meu pai um rolo de papel:

- É para o menino, quando publicar o seu primeiro livro.

Meu pai esboçou um gesto de constrangimento, compreendendo o valor da lembrança e fez menção de acompanha-lo à estação, ao que ele se opôs com a cabeça negativamente.

Senti, nesse momento, enorme opressão e desandei a chorar. Tio Galarim, então, suspendeu-me à altura de suas pupilas pardas, banhadas de suave brilho, como que úmidas. Minha mãe derrubou uma lágrima e tentou falar qualquer, mas, não pode, porque ele ganhou a rua e pulou na charrete do Bepino, que há meia hora esperava na porta.

Partiu a trote, e na curva da esquina, nos acenou de costas:

- Não tem importância, vamos adiante...

O rolo de papel eram títulos ao portador.

E foi essa a última vez que vi meu tio Galarim.

 

Transcrito do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Porto Alegre-RS, 18 de janeiro de 1959.

 

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Caro leitor,

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] EDGARD PIMENTEL BRAGA. Médico e poeta. Filho de Ilídio Ferreira da Silva Braga e Leopoldina Pimentel Goulart Braga, nasceu em Maceió-AL no dia 10 de outubro de 1897. Seus avós paternos eram: João Francisco da Silva Braga e Paulina Maria de Araújo; e, maternos, Manoel Cândido da Rocha Andrade e Leopoldina Pimentel Goulart de Andrade. A 17 de maio de 1926, no Rio de Janeiro, casa-se com Elvina Loureiro Braga (Nena), com quem teria um filho: Edgard Braga Filho. Ela faleceu em São Paulo, a 28/05/1950, aos cinquenta anos de idade  

Iniciou seus estudos com seu pai, que era professor e latinista. Em seguida, conclui o curso de humanidades no Liceu Alagoano. Em 1922, forma-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendendo a tese: Considerações Obstétricas em Torno de um Caso de Ciclo Hidrocefalia. Em 1923, passa a morar definitivamente em São Paulo, onde exerce a medicina na área de sua especialidade. Após viagem a Europa, onde frequenta cursos de Ginecologia e Obstetrícia na Alemanha e na França, entra para a Clínica Obstétrica da Faculdade de Medicina. Atua, ainda, no Departamento de Saúde do Estado, chegando a Diretor do Instituto de Puericultura. Sócio da Associação Paulista de Medicina, da Sociedade Paulista de Higiene e da Sociedade Brasileira de Ginecologia, entre outras instituições.  Membro correspondente da ANM eleito em 3/10/1940 - da AAL e do Clube de Poesia de São Paulo. Obras: A Senha, 1933 (poesia); Lâmpada Sobre o Alqueire, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946 (poesia); Odes, 1951 (poesia); Albergue do Vento, São Paulo: João Bentivegna, 1952 (poesia); Inútil Acordar, Poemas 1949-1950, São Paulo: Liv. Martins Editora 1953, (poesia); Lunário do Café, ilustrações de Di Cavalcanti, São Paulo: Edições Leia, Oficinas Gráficas de João Bentivegna, 1954 (poemas, apresentados em cinco ciclos, alguns com títulos e outros sem; por exemplo, encontra-se o poema  Lundum, na pg. 12 do 3o. Ciclo e  Modinha do Café,  na pg. 19  do 4o. cíclo);  Extralunário, Poemas Incompletos, com estudo crítico de Cassiano Ricardo, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1958   (poesia,); Subúrbio Branco, São Paulo: Clube da Poesia, 1959 (poesia);  A Corrente, São Paulo: ?1961 (poesia); Soma, São Paulo: Edt. Martinez, 1963 (poesia); Algo, Something, Quelque Chose, São Paulo: Edições Invenção, 1971(poesia); Tatuagens: Poemas, São Paulo: Edições Invenções, 1976, (poesia); Desbragada, org. de Regis Bonvicino, São Paulo: Editora Max Limonad, 1984. Escreveu, ainda, obras médicas: Homem Errado; Sexto Sentido da Medicina; Caminhos da Cirurgia e colaborou, com artigos, em publicações especializadas, tais como: Mensário de Higiene, Revista da Cruz Azul, Boletim de Eugênia e Infância.  Com Contemplação e Poema, participou de Notas Sobre a Poesia Moderna em Alagoas. Antologia, de Carlos Moliterno, p. 195-196; A Cultura e o Idealismo do Médico na Sociedade Moderna. Discursos Pronunciados pelos Doutores Edgard Braga e Cláudio Goulart de Andrade, Academia Nacional de Medicina, São Paulo: Elvino Pocai, 1942. Fonte: ABC das Alagoas. Conviveu com participantes da Semana de Arte Moderna, de 1922, da qual não participou, efetivamente, por conta dos seus compromissos com o curso de medicina.