Conto
de Edgard Braga[i]
Eu
devia ter oito anos, se tanto. Meu pai era um modesto professor primário. Minha
mãe costurava para
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Edgard Braga-Revista A Cigarra-SP, 1931. |
fora. Era piedosa e muito estimada.
Morávamos
numa casa pequena, com alpendre, onde algumas samambaias desnastravam crinas de
um verde-amarelo de sol. Um dia, à hora do almoço, meu pai abriu uma carta e
anunciou que breve chegaria o seu único irmão que durante largos anos vivia em
Mato Grosso, dono de latifúndio, gado e cavalhadas.
-
Seja bem-vindo, respondeu minha mãe; o pior é que a casa era pobre e os
proventos minguados...
- Ao
que parece ele já não tem mais nada, observou meu pai, guardando a carta.
-
Paciência, aonde comem dois, podem comer três...
Terminado
o almoço, meu pai me disse: é o tio que aí vem.
Raramente
ouvia falar desse tio. Meu pai era um homem taciturno, falava pouco e lia
muito, quando em vez, jogava gamão aos sábados, à tardinha, à porta da farmácia
com alguns amigos. Minha mãe repartia o seu tempo entre as lidas caseiras que
amava corretas e a costura alheia, encontrando vagar para me auxiliar nas
lições.
Passou
um mês, uma noite, parou à porta uma charrete e dela desceu um homem espadaúdo,
encardido, com bigode negro espichado, e um meio sorriso de dentes limados e
brancos. Era o tio, o tio que depois eu soube chamar-se Galarim. Entrou como se
estivesse acostumado àquela casa há longos anos. Minha mãe o levou ao quarto
arrumado há dias. Meu tio apenas confessou que havia perdido quase tudo, e por
isso desejava viver e morar com o irmão, de vez que tinha ninguém.
-
Assim é a vida, disse-lhe meu pai.
-
Não tem importância, vamos adiante, resmungou Galarim, enquanto enrrolava o
cigarro de palha. Em seguida, lavou-se, comeu, e no alpendre, pois era quente e
noite, contou a meu pai que havia perdido no jogo os seus teres, e que ficara
apenas com o que viver.
-
Pois a casa é sua, seu mano!
A
nossa vida continuou sem nenhuma importância. Tio Galarim foi apresentado a um
ou dois amigos de meu pai com quem, às vezes, embora calado, jogava loto ou
dominó. Surpreendi-o, muitas vezes, a olhar-me, como se estivesse a reavivar,
para dentro das pupilas castanhas, velhas lembranças. De uma feita, tomou-me ao
colo:
- O
que desejas ser? – Perguntou.
-
Palhaço de circo, respondi, enfiado.
Tio
Galarim pousou-me no chão, ficou sério, fez um gesto de descrença e murmurou:
-
Não tem importância, vamos adiante.
Ao
fim de cada mês, entregava a minha mãe uma certa quantia que era a sua parte
nos gastos cotidianos. Quase nunca saia de casa, com exceção das noites de luar
em que se vestia de culote, camisa azul, botas de montaria. No quintal, de pé,
estalava um chicote de cabo de prata, aos gritos, como se tangesse cavalos.
Ganhava
a rua em seguida, “eia, eia”, brandindo o relho. Voltava altas horas, e dormia
resfolegando como um boi de canga.
Meu
pai tentou certa vez saber a razão daquilo, mas tio Galarim fez um gesto que a
todos emudeceu:
-
Não tem importância, vamos adiante.
Uma
feita, seu Neco, da farmácia, advertiu a meu pai:
-
Olhe, professor, toda a gente diz por aí que seu mano é fraco das faculdades.
Onde já se viu alguém andar noite afora a dar chicotadas nas sombras?!
Meu
pai procurava desculpar:
- É
o jeito dele; não vê que Galarim é um atleta e precisa de exercícios?
Assim
o tempo foi passando. Olhavam o meu tio com um certo respeito, misto de medo e
pena. Um dia, à tardinha, minha mãe mandou-me à venda buscar qualquer coisa. No
caminho, topei com um grupo de meninos que me cercou aos berros de “seu tio é
doido”, “seu tio é doido”. Atirei-me a eles, e distribui pontapés e tapas a
torto e direito, até que atingi o olho de um menino. O sangue jorrou, eu corri
e fui me abrigar à porta da farmácia, onde sabia que meu tio, àquela hora,
jogava dominó. Pouco tempo depois, chegou o menino pela mão do pai, com um
lenço empapado no rosto. Seu Neco deixou o jogo, e dizendo que não era nada,
levou o garoto para dentro. O pai, colérico, vendo meu tio, entrou de
esbravejar, que a coisa não ficava assim... Meu tio largou as pedras, levantou
o punho com uma clava e quando parecia que ia abater o outro, apenas disse
soturno:
-
Não tem importância, vamos adiante!
Chamou-se
para perto de si e arrumou o pequeno tabuleiro. Levantou-se, segui-o um tanto
orgulhoso daquela força potencial, que impunha respeito. Em casa, minha mãe,
que soubera do fato, repreendeu-me.
Desatei
em pranto:
-
Chamaram o meu tio de doido!
Tio
Galarim, que ouvira minha explosão, voltou-se para minha mãe e, puxando-me para
perto, afagou-me:
-
Não tem importância, vamos adiante.
Nessa
noite, era junho, havia um luar de espelho; a lua cheia, no meio do céu,
banhava a cidade de uma claridade de paina e neblina.
Todas
as coisas como que ressuscitavam do sono do frio, tocadas do afago da lua mansa
e dormente. Nuvens iam se acumulando sobre os montes, ao fundo, algumas tomavam
formas estranhas e pareciam quererá encobrir a lua, que rolava à sua roda de
ouro indiferente à paisagem terrena. Eu não conseguia dormir. As horas iam
passando com lentidão de cansaço. De repente, ouvi passos e a voz do tio
Galarim: “eia, eia – Ouro Negro!”.
Meu
pai, já recolhido, tossiu, como se avisasse que estava também acordado.
Senti
que meu tio estalava o chicote e descia do terraço, rumo à rua: “eia, eia, Ouro
Negro”!.
Ao
dia seguinte, apanhando-o a sós no alpendre, não me contive:
-
Que cavalos o senhor estava enxotando?
Tio
Galarim sorriu e respondeu: os das nuvens, mas não tem importância, vamos
adiante...
Outra
noite insone, esperando ouvir de novo o passo do meu tio, o ruído das esporas,
o estalido do chicote. Dessa feita, porém, tio Galarim ficou no seu quarto.
Procurando
vencer o medo, levantei-me, abri devagarinho a janela que dava para o terraço e
olhei para o céu. A lua, como na véspera, brolhava ainda bem alta, posto que já
tivesse aquele aspecto de moeda dourada. Nuvens deslizavam diante delas e
tomavam formas estranhas, ora de gigantes, ora de palácios, ora de cavalos em
corrida.
Não
sei quanto tempo fique preso àquele espetáculo que o tio Galarim me havia
desvendado, e que jamais soubera que alua possuía palácios e cavalos brancos!
Enquanto houve luar, noites seguidas deleitei-me na treva e no silêncio com os
fantoches e os carros da noite.
Um
dia, meu pai, à mesa perguntou ao irmão, de chofre:
-
Nunca desejaste família?
Meu
tio esboçou um gesto cortante e respondeu, como de sempre:
-
Não tem importância, vamos adiante!
Meu
pai desconversou, e quando tio Galarim saiu, minha mãe observou que ele tinha
bom coração, e devia ter tido alguma coisa amorosa na vida. Aquilo tudo devia
ser saudade... de mulher.
Rumores
de que tínhamos um doido varrido na casa encheram a cidade. Meu pai,
conceituado, começou a sofrer, embora evitasse o assunto. Tio Galarim continuou
a sua fantasia, e já agora, quase todas as noites, houvesse ou não luar no
vasto céu profundo.
Repentinamente,
porém, tio Galarim deixou de sair com as suas esporas, chapéu de vaqueiro e
chicote. Recolhia cedo, deitava-se calado e dormia roncando.
-
Até que, afina, disseram a meu pai, o mano está calmo...
Um
dia meu tio chegou-se a meu pai e lhe disse:
-
Deixo tua casa; vendi os cavalos; vou-me daqui.
Arrumou
a mala, chamou minha mãe, deu-lhe as botas e as esporas, o chicote.
-
Venda-os, se quiser; ou os dê a quem quiser receber.
Nessa
mesma tarde, entregou a meu pai um rolo de papel:
- É
para o menino, quando publicar o seu primeiro livro.
Meu
pai esboçou um gesto de constrangimento, compreendendo o valor da lembrança e
fez menção de acompanha-lo à estação, ao que ele se opôs com a cabeça
negativamente.
Senti,
nesse momento, enorme opressão e desandei a chorar. Tio Galarim, então,
suspendeu-me à altura de suas pupilas pardas, banhadas de suave brilho, como
que úmidas. Minha mãe derrubou uma lágrima e tentou falar qualquer, mas, não
pode, porque ele ganhou a rua e pulou na charrete do Bepino, que há meia hora
esperava na porta.
Partiu
a trote, e na curva da esquina, nos acenou de costas:
-
Não tem importância, vamos adiante...
O
rolo de papel eram títulos ao portador.
E
foi essa a última vez que vi meu tio Galarim.
Transcrito
do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Porto Alegre-RS, 18 de janeiro de 1959.
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Caro
leitor,
Este
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com
informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em
qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é
correto e justo.
[i]
EDGARD PIMENTEL BRAGA. Médico e poeta. Filho de Ilídio Ferreira da Silva Braga
e Leopoldina Pimentel Goulart Braga, nasceu em Maceió-AL no dia 10 de outubro
de 1897. Seus avós paternos eram:
João Francisco da Silva Braga e Paulina Maria de Araújo; e, maternos, Manoel
Cândido da Rocha Andrade e Leopoldina Pimentel Goulart de Andrade. A
17 de maio de 1926, no Rio de Janeiro, casa-se com Elvina Loureiro Braga
(Nena), com quem teria um filho: Edgard Braga Filho. Ela faleceu em São Paulo,
a 28/05/1950, aos cinquenta anos de idade
Iniciou seus estudos com seu pai, que era professor e latinista. Em
seguida, conclui o curso de humanidades no Liceu Alagoano. Em 1922, forma-se
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendendo a tese: Considerações
Obstétricas em Torno de um Caso de Ciclo Hidrocefalia. Em 1923, passa a morar
definitivamente em São Paulo, onde exerce a medicina na área de sua
especialidade. Após viagem a Europa, onde frequenta cursos de Ginecologia e
Obstetrícia na Alemanha e na França, entra para a Clínica Obstétrica da
Faculdade de Medicina. Atua, ainda, no Departamento de Saúde do Estado,
chegando a Diretor do Instituto de Puericultura. Sócio da Associação Paulista
de Medicina, da Sociedade Paulista de Higiene e da Sociedade Brasileira de
Ginecologia, entre outras instituições.
Membro correspondente da ANM eleito em 3/10/1940 - da AAL e do Clube de
Poesia de São Paulo. Obras: A Senha, 1933 (poesia); Lâmpada Sobre o Alqueire,
São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946 (poesia); Odes, 1951 (poesia);
Albergue do Vento, São Paulo: João Bentivegna, 1952 (poesia); Inútil Acordar,
Poemas 1949-1950, São Paulo: Liv. Martins Editora 1953, (poesia); Lunário do
Café, ilustrações de Di Cavalcanti, São Paulo: Edições Leia, Oficinas Gráficas
de João Bentivegna, 1954 (poemas, apresentados em cinco ciclos, alguns com
títulos e outros sem; por exemplo, encontra-se o poema Lundum, na pg. 12 do 3o. Ciclo e Modinha do Café, na pg. 19
do 4o. cíclo); Extralunário, Poemas
Incompletos, com estudo crítico de Cassiano Ricardo, São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1958 (poesia,);
Subúrbio Branco, São Paulo: Clube da Poesia, 1959 (poesia); A Corrente, São Paulo: ?1961 (poesia); Soma,
São Paulo: Edt. Martinez, 1963 (poesia); Algo, Something, Quelque Chose, São
Paulo: Edições Invenção, 1971(poesia); Tatuagens: Poemas, São Paulo: Edições
Invenções, 1976, (poesia); Desbragada, org. de Regis Bonvicino, São Paulo:
Editora Max Limonad, 1984. Escreveu, ainda, obras médicas: Homem Errado; Sexto
Sentido da Medicina; Caminhos da Cirurgia e colaborou, com artigos, em
publicações especializadas, tais como: Mensário de Higiene, Revista da Cruz
Azul, Boletim de Eugênia e Infância. Com
Contemplação e Poema, participou de Notas Sobre a Poesia Moderna em Alagoas.
Antologia, de Carlos Moliterno, p. 195-196; A Cultura e o Idealismo do Médico
na Sociedade Moderna. Discursos Pronunciados pelos Doutores Edgard Braga e
Cláudio Goulart de Andrade, Academia Nacional de Medicina, São Paulo: Elvino Pocai,
1942. Fonte: ABC das Alagoas. Conviveu com participantes da Semana de Arte Moderna, de 1922, da qual não participou, efetivamente, por conta dos seus compromissos com o curso de medicina.