Dr.
Oswaldo de Meiróz Grillo
Difícil
é fixar-se no papel todos os aspectos de uma viagem, todas as perspectivas dos
diversos panoramas, que se descortina, quando de uma travessia de terra, mar e
rio.
Não
há muitos dias, observei cuidadosamente as múltiplas passagens do longo trajeto
que fiz, do Recife a Pão de Açúcar (Alagoas), em um percurso de 3 ½ dias, sem
contar dois dias que passei no porto de Penedo, aguardando a partida do vapor
fluvial, o Comendador Peixoto.
O vapor Comendador Peixoto, da Companhia de Navegação do Baixo São Francisco. |
*** ***
Depois
de uma noite de insônia, tomei a direção da estação das “Cinco Pontas”[i] a
fim de viajar no comboio das 5 e 50 para Maceió. Aos silvos agudos e
estridentes da locomotiva, o meu espírito se atordoava com um mundo de
pensamentos e de sonhos. Emudecia-me um sentimento acridoce de saudade da bela
Recife – da família que mais iria se distanciar de mim, do convívio acadêmico e
da grata companhia de jornalistas que me proporcionava uma escola singular de
experiência, trabalho, prudência e intrepidez.
De
um lado me envaidecia, com humana e natural ufania, a honrosa posição que vinha
ocupar na terra das Alagoas, superiormente dirigida pela visão esclarecida e
patriótica do Sr. Dr. Costa Rego[ii],
cujo governo se faz credor da estima e das simpatias da mocidade.
Por
outro lado, pensava no intercâmbio intelectual e artístico que iam realizar os
meus colegas de Faculdade, e do qual tanto desejara fazer parte.
Era,
por consequência, dúbia a minha situação, juntando-se a isso a fadiga de uma
noite de vigília, que eu andara à gandaia, percorrendo os trechos alegres em
despedidas da vida noturna da encantadora capital pernambucana. E nesse estado
de espírito, tive que adormecer nas preguiçosas poltronas do vagão, pouco tendo
a dizer da extensa caminhada de Recife a Maceió.
Lembro-me,
no entanto, das estações de Gameleira, Palmares, Glicério, em Pernambuco. Em
Alagoas, dentre outras, ficaram-me na memória Barra e Lage do Canhoto, duas
lindas cidades à direita da linha férrea.
Em
todos os pontos se me deparavam campos verdejantes de sadia paisagem,
plantações de cana, mandioca, milho, algodão, etc.
Conquanto
faíscas, que se desprendiam do combustível da locomotiva, viessem a incomodar-me
e empoeirar, sentia uma temperatura saudável e amena da estação invernosa.
Nesse
ambiente de um estafante e estirado dia de viagem, chegamos às velha e formosa
capital alagoana. Não foi sem experimentar grande surpresa que, levado por um
creoulo que agenciava passageiros para o seu hotel, me achei em um suntuoso e confortável
palacete da hospedaria.
Confesso
que excedeu à minha expectativa encontrar em uma cidade pequena e,
relativamente, de pouco progresso, tão luxuosa estalagem.
Fazer
a descrição do “Bela Vista Hotel” é tarefa dos seus representantes, para
propalarem o reclame do seu estabelecimento, e da qual eu me escuso, por não
pertencer ainda a nenhuma companhia de comércio...
No
dia seguinte, enverguei um solene frack, instituição que defendemos, por amor à
tradição do magistrado, e me dirigi então ao palácio governamental para
cumprimentar
S. Ex.ª, apostilar o título da minha
nomeação e prover-me de códigos e leis necessárias e especiais à judicatura do
Estado.
A Estação das Cinco Pontas, Recife-PE |
Fiquei,
portanto, aparelhado a exercer as funções do “juiz de roça”, no longínquo e sertanejo município de Pão de Açúcar.
Saí
de Maceió em lancha da navegação lacustre até a cidade de Alagoas[iii],
no espaço de tempo de 2 horas e 30.
Quanto
a Alagoas, nada posso adiantar, porque a demora lá foi apenas de poucos
minutos, somente o preciso para o chauffeur pôr o auto em ponto de marcha para
uma disparada de 6 horas até Penedo, ponto terminal desta via de condução e
onde devíamos pernoitar e repousar dos solavancos e sopapos da velocidade do
carro.
Toda
a cidade de Penedo já dormia, em sua pacatez rústica, quando o veículo,
insistentemente buzinando, penetra de alfa a ômega uma das principais artérias,
perturbando o sono calmo da cidade com esse impertinente “fonfon”...
Despontava
o dia da feira do lugar, que assisti pacientemente, abordando os botequins e as
toldas com o intuito de conhecer os produtos que me eram estranhos. Grande
feira, onde se expunham à venda, com abundância, os diversos gêneros de
alimentação, ornatos rurais, artefatos regionais como a esteira de pery-pery,
etc...
Devo
registrar aqui o quanto fiquei devendo à gentileza de um distinto amigo que fiz
em Penedo – o coronel Octaviano Carvalho, administrador da mesa de rendas.
Este
cavalheiro, apresentado que me foi por um seu colega da Alfândega de Maceió,
cativou-me, em poucos momentos que tive de privar das suas relações, pela
carinhosa maneira de tratar e o modo lhano de captar amizade. A sua
atenciosidade dispensada a mim foi a tal ponto que me aproximou da intimidade
do seu lar, oferecendo-me lauto e opíparo almoço.
*** ***
Tive,
enfim, de me submeter à via fluvial, para alcançar a meta da jornada. Era um
bem instalado e pitoresco bôttement, que faz semanalmente a comunicação de
Penedo com as outras cidades do baixo S. Francisco. Além de pequenas
localidades, são elas, entre outras: Propriá e Gararu (do Estado de Sergipe),
Traipu, Belo Monte, Pão de Açúcar, Piranhas, etc...
Oque
mais me impressionou, e que deve merecer particular registro nesta minha
digressão foram os penetrantes e insinuantes olhares de uma linda morena
penedense. Coisa singular!
Já
o navio dava de marcha, quando vim apercebê-la, risonhamente sentada em uma
cadeira do convés e, toda esquiva e indiferente, não quis talvez, de logo,
compreender a expressão de meus olhares perspicazes.
Sou,
francamente, por tudo que faz esquecer as tristezas da vida e muito sensível às
seduções femininas; donde essa criatura, de olhos castanhos e expressivos, de
formas plásticas e elegantes, ser, a bordo do Comendador, o objeto de alento do
meu coração envolto na intensa saudade desse adorável “santuário de amor”, que é a sagrada instituição da família, a quem
me acostumei a amar desde a mais tenra idade.
O
vapor aportou no porto de Gararu e, depois do chá, fizemos uma atraente serão
de jogo, anedotas, etc...que arrastou, também, o comandante do Peixoto,
velhinho vermelho folgazão e bonacheirão.
E
a sedutora morena, sempre a me encantar e a me enlear, saltou, no dia seguinte,
em Belo Monte.
Terna
e meiga, essa alagoana, que tanto me atraiu pela sua singeleza e candura, ao
despedir-se de mim, com olhar languido, semblante emocionado e mãos gélidas,
disse em voz trêmula desejaria não fosse ali o ponto do seu destino!...
E
eu lhe retribuí outras tantas cortesias e galanteios!...
***
***
Às
9 e 55 dava entrada o navio no ancoradouro de Pão de Açúcar, onde desembarquei,
e corri logo à agência telegráfica, para a visar aos meus o termo da minha odisseia.
Em
seguida, instalei-me no hotel, à rua da frente, assim chamada porque dá a
frente às águas do caudaloso S. Francisco.
Outras
ruas existem no município, tais como: Duque de Caxias, Augusta, Comércio, Alto
da Paciência, etc.
Após
ligeiro almoço, procurei o Juiz de Direito, perante o qual prestei a
formalidade de posse, assumindo as funções de Juiz Substituto.
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Pão de Açúcar, 1926. Grande Cheia do Rio São Francisco. |
Pão
de Açúcar, cidade plana, em uma reta precisamente de 1 quilômetro quadrado,
sentiu os efeitos de uma calamidade. Fica à margem esquerda do S. Francisco, cujas
enchentes subiram este inverno a um nível muito elevado, invadindo os campos de
agricultura, as pastagens da criação e as moradas dos pão-de-açucarenses[iv].
As
autoridades locais estão bem representadas: o prefeito é um cidadão probo e
operoso que, no curto período de ano e meio de gestão, já tem promovido alguns
melhoramentos. Agora mesmo, cogita de fazer instalação elétrica, já havendo
feito o contrato com abastado industrial do lugar[v]; o
Juiz de Direito, moço digno e competente, convencido da sua alta e nobre missão
de distribuir justiça; também não devemos esquecer o secretário da Prefeitura
que, apesar da idade avançada, tem grande amor e dedicação ao ofício, com uma
longa folha de serviços prestados ao Município, mantendo o fio da tradição de
uma ilustre família, de reconhecido prestígio político no Estado.
Assim,
nesta atmosfera de idoneidade moral e honradez pessoal, vou fazendo a minha vida
de judicatura.
Praza
aos céus que bonançosos dias estejam sempre reservados ao Juiz Substituto de
Pão de Açúcar.
Pão
de Açúcar, Alagoas, 16 de junho de 1926.
Oswaldo
de Meiróz Grillo.
Transcrito
do jornal A PROVÍNCIA, Recife, 7 de julho de 1926.
http://memoria.bn.br/DocReader/128066_02/16338
O autor
destas notas, Dr. Oswaldo de Meiróz Grillo, nasceu em Goianinha, Estado do Rio
Grande do Norte. Filho de Abdon Franklin de Meiróz Grillo e de Alexandrina
Leopoldina de Meiróz Grillo. Irmão do Dr. Joaquim de Meiróz Grillo. Foi casado
com Letícia Marinho Grillo. Faleceu no Hospital Miguel Couto, no Rio de
Janeiro, a 1º de setembro de 1940, com apenas 37 anos de idade. Foi sepultado
em Goianinha. Fonte: A Ordem, Natal-RN, 4 de setembro de 1940.
Formado
pela Faculdade de Direito do Recife, colou grau em 11 de agosto de 1927, na
chamada “Turma do Centenário”, pois se comemorava, naquele ano, cem anos de
fundação dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo.
No
ano anterior, ainda bacharelando, com apenas 23 anos de idade, foi nomeado Juiz
Substituto na Comarca de Pão de Açúcar, pelo Governador Costa Rego, em 19 de
abril de 1926.[vi]
Precisamente a 26 de maio daquele ano, parte do Recife com destino a Pão de
Açúcar.[vii]
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NOTA:
Caro
leitor,
Deste
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de
informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita
pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência
bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse
para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior
proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a
citação das referências. Isso é correto e justo.
[i]
O Conjunto Ferroviário de Cinco Pontas, no Recife-PE, foi a estação central
inicial do primeiro trecho da Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco.
[ii]
Pedro da Costa Rego. Foi padrinho de formatura do Dr. Oswaldo, no dia 11 de
agosto de 1927, representado na solenidade pelo escritor José Lins do Rego.
[iii]
Atual Marechal Deodoro.
[iv]
Refere-se à Cheia de 1926, uma das maiores do rio São Francisco.
[v]
O prefeito era o Sr. MANOEL FRANCISCO PEREIRA FILHO, conhecido por “Manoelzinho
Pereira”, que administrou o município de 7 de janeiro de 1925 a 7 de janeiro de 1928. Em março de 1926 a Prefeitura contrata com o Sr. José de Freitas Machado - Zuza o serviço de iluminação elétrica.
[vi]
Diário de Pernambuco, 30 de abril de 1926.
[vii] A Província, de 26 de maio de 1926.
Meu nobre amigo e confrade Etevaldo, este belo artigo me fez lembrar da minha tenra infância, quando transitava na larga estrada do Velho Chico entre Belo Monte e Pão de Açúcar. Belas lembranças, com uma pincelada familiar ao rodapé, que lembrou meu Bisavô Manoel Francisco Pereira Filho
ResponderExcluirParabéns bela belíssima matéria!
ResponderExcluirParabéns meu caro Etevaldo Amorim , pelo o seu trabalho de buscar belas e interessantes histórias levando ao nosso conhecimento literário histórico
ResponderExcluirPrezado amigo e confrade Etevaldo.
ResponderExcluirO relato dessa viagem feita pelo dr
Osvaldo Grillo, me transportou para o tempo da minha infância quando viajei algumas vezes com meus pais fazendo o percurso Pão de Açucar/Penedo, a bordo do navio Comendador Peixoto. Parabéns por propiciar-nos com esses registros, que para nós são históricos e emocionantes.
Grande abraço e reconhecimento pelo seu trabalho de pesquisa. Netônio
Machado.