segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

NOTAS DE VIAGEM

Dr. Oswaldo de Meiróz Grillo

 

Difícil é fixar-se no papel todos os aspectos de uma viagem, todas as perspectivas dos diversos panoramas, que se descortina, quando de uma travessia de terra, mar e rio.

Não há muitos dias, observei cuidadosamente as múltiplas passagens do longo trajeto que fiz, do Recife a Pão de Açúcar (Alagoas), em um percurso de 3 ½ dias, sem contar dois dias que passei no porto de Penedo, aguardando a partida do vapor fluvial, o Comendador Peixoto.

O vapor Comendador Peixoto, da Companhia de
Navegação do Baixo São Francisco.


***   ***

Depois de uma noite de insônia, tomei a direção da estação das “Cinco Pontas”[i] a fim de viajar no comboio das 5 e 50 para Maceió. Aos silvos agudos e estridentes da locomotiva, o meu espírito se atordoava com um mundo de pensamentos e de sonhos. Emudecia-me um sentimento acridoce de saudade da bela Recife – da família que mais iria se distanciar de mim, do convívio acadêmico e da grata companhia de jornalistas que me proporcionava uma escola singular de experiência, trabalho, prudência e intrepidez.

De um lado me envaidecia, com humana e natural ufania, a honrosa posição que vinha ocupar na terra das Alagoas, superiormente dirigida pela visão esclarecida e patriótica do Sr. Dr. Costa Rego[ii], cujo governo se faz credor da estima e das simpatias da mocidade.

Por outro lado, pensava no intercâmbio intelectual e artístico que iam realizar os meus colegas de Faculdade, e do qual tanto desejara fazer parte.

Era, por consequência, dúbia a minha situação, juntando-se a isso a fadiga de uma noite de vigília, que eu andara à gandaia, percorrendo os trechos alegres em despedidas da vida noturna da encantadora capital pernambucana. E nesse estado de espírito, tive que adormecer nas preguiçosas poltronas do vagão, pouco tendo a dizer da extensa caminhada de Recife a Maceió.

Lembro-me, no entanto, das estações de Gameleira, Palmares, Glicério, em Pernambuco. Em Alagoas, dentre outras, ficaram-me na memória Barra e Lage do Canhoto, duas lindas cidades à direita da linha férrea.

Em todos os pontos se me deparavam campos verdejantes de sadia paisagem, plantações de cana, mandioca, milho, algodão, etc.

Conquanto faíscas, que se desprendiam do combustível da locomotiva, viessem a incomodar-me e empoeirar, sentia uma temperatura saudável e amena da estação invernosa.

Nesse ambiente de um estafante e estirado dia de viagem, chegamos às velha e formosa capital alagoana. Não foi sem experimentar grande surpresa que, levado por um creoulo que agenciava passageiros para o seu hotel, me achei em um suntuoso e confortável palacete da hospedaria.

Confesso que excedeu à minha expectativa encontrar em uma cidade pequena e, relativamente, de pouco progresso, tão luxuosa estalagem.

Fazer a descrição do “Bela Vista Hotel” é tarefa dos seus representantes, para propalarem o reclame do seu estabelecimento, e da qual eu me escuso, por não pertencer ainda a nenhuma companhia de comércio...

No dia seguinte, enverguei um solene frack, instituição que defendemos, por amor à tradição do magistrado, e me dirigi então ao palácio governamental para cumprimentar
S. Ex.ª, apostilar o título da  minha nomeação e prover-me de códigos e leis necessárias e especiais à judicatura do Estado.

Cinco pontas
A Estação das Cinco Pontas, Recife-PE


Fiquei, portanto, aparelhado a exercer as funções do “juiz de roça”, no longínquo e sertanejo município de Pão de Açúcar.

Saí de Maceió em lancha da navegação lacustre até a cidade de Alagoas[iii], no espaço de tempo de 2 horas e 30.

Quanto a Alagoas, nada posso adiantar, porque a demora lá foi apenas de poucos minutos, somente o preciso para o chauffeur pôr o auto em ponto de marcha para uma disparada de 6 horas até Penedo, ponto terminal desta via de condução e onde devíamos pernoitar e repousar dos solavancos e sopapos da velocidade do carro.

Toda a cidade de Penedo já dormia, em sua pacatez rústica, quando o veículo, insistentemente buzinando, penetra de alfa a ômega uma das principais artérias, perturbando o sono calmo da cidade com esse impertinente “fonfon”...

Despontava o dia da feira do lugar, que assisti pacientemente, abordando os botequins e as toldas com o intuito de conhecer os produtos que me eram estranhos. Grande feira, onde se expunham à venda, com abundância, os diversos gêneros de alimentação, ornatos rurais, artefatos regionais como a esteira de pery-pery, etc...

Devo registrar aqui o quanto fiquei devendo à gentileza de um distinto amigo que fiz em Penedo – o coronel Octaviano Carvalho, administrador da mesa de rendas.

Este cavalheiro, apresentado que me foi por um seu colega da Alfândega de Maceió, cativou-me, em poucos momentos que tive de privar das suas relações, pela carinhosa maneira de tratar e o modo lhano de captar amizade. A sua atenciosidade dispensada a mim foi a tal ponto que me aproximou da intimidade do seu lar, oferecendo-me lauto e opíparo almoço.

***   ***

Tive, enfim, de me submeter à via fluvial, para alcançar a meta da jornada. Era um bem instalado e pitoresco bôttement, que faz semanalmente a comunicação de Penedo com as outras cidades do baixo S. Francisco. Além de pequenas localidades, são elas, entre outras: Propriá e Gararu (do Estado de Sergipe), Traipu, Belo Monte, Pão de Açúcar, Piranhas, etc...

Oque mais me impressionou, e que deve merecer particular registro nesta minha digressão foram os penetrantes e insinuantes olhares de uma linda morena penedense. Coisa singular!

Já o navio dava de marcha, quando vim apercebê-la, risonhamente sentada em uma cadeira do convés e, toda esquiva e indiferente, não quis talvez, de logo, compreender a expressão de meus olhares perspicazes.

Sou, francamente, por tudo que faz esquecer as tristezas da vida e muito sensível às seduções femininas; donde essa criatura, de olhos castanhos e expressivos, de formas plásticas e elegantes, ser, a bordo do Comendador, o objeto de alento do meu coração envolto na intensa saudade desse adorável “santuário de amor”, que é a sagrada instituição da família, a quem me acostumei a amar desde a mais tenra idade.

O vapor aportou no porto de Gararu e, depois do chá, fizemos uma atraente serão de jogo, anedotas, etc...que arrastou, também, o comandante do Peixoto, velhinho vermelho folgazão e bonacheirão.

E a sedutora morena, sempre a me encantar e a me enlear, saltou, no dia seguinte, em Belo Monte.

Terna e meiga, essa alagoana, que tanto me atraiu pela sua singeleza e candura, ao despedir-se de mim, com olhar languido, semblante emocionado e mãos gélidas, disse em voz trêmula desejaria não fosse ali o ponto do seu destino!...

E eu lhe retribuí outras tantas cortesias e galanteios!...

 

*** ***

Às 9 e 55 dava entrada o navio no ancoradouro de Pão de Açúcar, onde desembarquei, e corri logo à agência telegráfica, para a visar aos meus o termo da minha odisseia.

Em seguida, instalei-me no hotel, à rua da frente, assim chamada porque dá a frente às águas do caudaloso S. Francisco.

Outras ruas existem no município, tais como: Duque de Caxias, Augusta, Comércio, Alto da Paciência, etc.

Após ligeiro almoço, procurei o Juiz de Direito, perante o qual prestei a formalidade de posse, assumindo as funções de Juiz Substituto.

*** ***

Cheia de 1926 no rio São Francisco
Pão de Açúcar, 1926. Grande Cheia do Rio São Francisco.


Pão de Açúcar, cidade plana, em uma reta precisamente de 1 quilômetro quadrado, sentiu os efeitos de uma calamidade. Fica à margem esquerda do S. Francisco, cujas enchentes subiram este inverno a um nível muito elevado, invadindo os campos de agricultura, as pastagens da criação e as moradas dos pão-de-açucarenses[iv].

As autoridades locais estão bem representadas: o prefeito é um cidadão probo e operoso que, no curto período de ano e meio de gestão, já tem promovido alguns melhoramentos. Agora mesmo, cogita de fazer instalação elétrica, já havendo feito o contrato com abastado industrial do lugar[v]; o Juiz de Direito, moço digno e competente, convencido da sua alta e nobre missão de distribuir justiça; também não devemos esquecer o secretário da Prefeitura que, apesar da idade avançada, tem grande amor e dedicação ao ofício, com uma longa folha de serviços prestados ao Município, mantendo o fio da tradição de uma ilustre família, de reconhecido prestígio político no Estado.

Assim, nesta atmosfera de idoneidade moral e honradez pessoal, vou fazendo a minha vida de judicatura.

Praza aos céus que bonançosos dias estejam sempre reservados ao Juiz Substituto de Pão de Açúcar.

Pão de Açúcar, Alagoas, 16 de junho de 1926.

Oswaldo de Meiróz Grillo.

 

Transcrito do jornal A PROVÍNCIA, Recife, 7 de julho de 1926.

http://memoria.bn.br/DocReader/128066_02/16338

 

O autor destas notas, Dr. Oswaldo de Meiróz Grillo, nasceu em Goianinha, Estado do Rio Grande do Norte. Filho de Abdon Franklin de Meiróz Grillo e de Alexandrina Leopoldina de Meiróz Grillo. Irmão do Dr. Joaquim de Meiróz Grillo. Foi casado com Letícia Marinho Grillo. Faleceu no Hospital Miguel Couto, no Rio de Janeiro, a 1º de setembro de 1940, com apenas 37 anos de idade. Foi sepultado em Goianinha. Fonte: A Ordem, Natal-RN, 4 de setembro de 1940.

Formado pela Faculdade de Direito do Recife, colou grau em 11 de agosto de 1927, na chamada “Turma do Centenário”, pois se comemorava, naquele ano, cem anos de fundação dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo.

No ano anterior, ainda bacharelando, com apenas 23 anos de idade, foi nomeado Juiz Substituto na Comarca de Pão de Açúcar, pelo Governador Costa Rego, em 19 de abril de 1926.[vi] Precisamente a 26 de maio daquele ano, parte do Recife com destino a Pão de Açúcar.[vii]

 

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NOTA:

Caro leitor,

Deste Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] O Conjunto Ferroviário de Cinco Pontas, no Recife-PE, foi a estação central inicial do primeiro trecho da Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco.

[ii] Pedro da Costa Rego. Foi padrinho de formatura do Dr. Oswaldo, no dia 11 de agosto de 1927, representado na solenidade pelo escritor José Lins do Rego.

[iii] Atual Marechal Deodoro.

[iv] Refere-se à Cheia de 1926, uma das maiores do rio São Francisco.

[v] O prefeito era o Sr. MANOEL FRANCISCO PEREIRA FILHO, conhecido por “Manoelzinho Pereira”, que administrou o município de 7 de janeiro de 1925 a 7  de janeiro de 1928. Em março de 1926  a Prefeitura contrata com  o Sr. José de Freitas Machado - Zuza  o serviço de iluminação elétrica.

[vi] Diário de Pernambuco, 30 de abril de 1926.

[vii] A Província, de 26 de maio de 1926. 

4 comentários:

  1. Meu nobre amigo e confrade Etevaldo, este belo artigo me fez lembrar da minha tenra infância, quando transitava na larga estrada do Velho Chico entre Belo Monte e Pão de Açúcar. Belas lembranças, com uma pincelada familiar ao rodapé, que lembrou meu Bisavô Manoel Francisco Pereira Filho

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  2. Parabéns bela belíssima matéria!

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  3. Parabéns meu caro Etevaldo Amorim , pelo o seu trabalho de buscar belas e interessantes histórias levando ao nosso conhecimento literário histórico

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  4. Prezado amigo e confrade Etevaldo.
    O relato dessa viagem feita pelo dr
    Osvaldo Grillo, me transportou para o tempo da minha infância quando viajei algumas vezes com meus pais fazendo o percurso Pão de Açucar/Penedo, a bordo do navio Comendador Peixoto. Parabéns por propiciar-nos com esses registros, que para nós são históricos e emocionantes.
    Grande abraço e reconhecimento pelo seu trabalho de pesquisa. Netônio
    Machado.

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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia