PÁGINAS

sábado, 30 de julho de 2016

PAIXÃO FURIOSA

Hormino Lyra[i]

Fazenda de Lagoa das Pedras, Sul de Alagoas, Município de Pão de Açúcar.
Manoel Lisboa, seu proprietário, tinha confiança ilimitada no vaqueiro.
João Lino, homem de trinta e quatro anos de idade, em verdade, era tipo sério; não mentia, nem contra si. Ganhou a confiança do fazendeiro e resolvia qualquer negócio em sua ausência.
Não se casou. Havia muito, acompanhava os passos da filha unigênita de Lisboa, e tinha a cisma de se casar com ela. Conhecia os negócios da fazenda de gado, e melhor partido não encontraria a moça.
Rosa, que inveja causaria a todas as rosas dos jardins, muito jovem, muito linda, de singeleza impressionante, não era namoradeira. Sisuda, gênio reconcentrado, vivia sempre ao lado da boa mãe, sem ter preocupação ainda com o problema social do casamento. Achava-se muito criança para resolver tão complicado caso.
Do mesmo modo não pensava Lino, tanto que uma vez, quando teve oportunidade, lhe falou jeitosamente acerca de seus desejos.
Assustou-se a moça com a conversa do vaqueiro, e não lhe deu resposta. Nunca tinha idealizado o homem que a devia possuir, mas, com certeza, não era aquele.
Molestou-se Lino com a falta de consideração da moça. O pai o considerava tanto, porque não haveria ela de imitar o bom exemplo do velho?! Não se conformou, e insistiu muitas vezes, até que lhe disse Rosa seria melhor mudar ele de assunto, e procurar outra. Ela, com certeza, não tinha pensado em casamento; mas, ainda quando pensasse, não entraria o vaqueiro em suas cogitações. Não perdesse tempo, porquanto era inabalável a sua resolução.
Voltou Lino, pouco tempo depois, a revolver o passado e, agora, mais impetuoso, tinha também sua resolução inabalável: casar-se com Rosa ou morrer. Ela, porém, sucumbiria com o vaqueiro, consoante lhe declarou formalmente.
Sorriu a moça e deu de ombros.
Nem os próprios pais sabiam do que se passava entre João Lino e a filha deles.
Uma tarde, estava ela à beira do “açude grande”, perto de casa, na hora em que costumava o vaqueiro estar na roça. Grande foi seu espanto quando o viu a dois metros de distância. Quis correr, mas ele lhe tolheu os passos. A moça jogou-se n’água irrefletidamente, e nadou. O mesmo fez o apaixonado, e abraçou-a. Submergidos, rodaram no leito viscoso do açude; e, quando da vida se lembrou o vaqueiro, a morte estava mais perto!
... ... ...
Durante a noite, passaram pensamentos fantásticos no cérebro dos infelizes pais da vítima: quem sabe se alguma onça tivera apanhado Rosa; e Limo fora em seu socorro, e sucumbira também nas garras da fera...Quem sabe algum marruá...Quem sabe? — Imaginara a pobre mãe...
Que plano conceberia o maldito vaqueiro para lhe raptar a filha idolatrada, sem que ninguém o percebesse, nem até desconfiasse... — conjecturara o cérebro vulcânico de Manoel Lisboa, a estalar de dor.
E algumas vezes cavalgaria ele o fogoso alazão, e andara à toa; e, no meio da estrada, bradara: — “Rosa!”. E o eco respondera: — “Rosa!”. E mais uma vez ressoara: — “Rosa!”. E mais longe e mais fraco: — “Osa!”. E ainda mais longe e quase imperceptível: — “Osa!”.
Noite de verão, noite sem luar, céu sem nuvens, e as boas estrelas, no firmamento, como se fossem amigas de novidades, pareciam querer descobrir o que de estranho aconteceu naquele triste recanto torrão alagoano.
Noite de aflições: lágrimas, gemidos, suspiros cá, dentro do santo lar; orquestras infernais de batráquios, assobios agudos das serpentes, mugidos rechinantes das vacas, berros plangentes dos bezerros, lá fora; e a “rasga mortalha”, com seus piares sinistros, a voar, sempre a voar, de espaço a espaço, cruzando a cumeeira da casa, a modo gargalhava escandalosamente para aumentar a aflição dos aflitos!
No dia seguinte, tranquilos, boiavam dois cadáveres no “açude grande”. Mistério!
*** *** ***
Dizem que o “açude grande” ficou mal-assombrado.
Quando a gente passa perto, dele, ouve, às vezes, suspiros prolongados e gemidos lastimosos, gemidos de dor que comovem o cristão.
É a cauta serpente com aspecto sorridente, boca semiaberta, olhos pregados na rã inerme, inabalável no propósito de a comer, e botar de vez em vez a língua fora, como que prelibando delicioso manjar; enquanto esta, apavorada com a presença e aproximação daquela, a pular de um lado para outro, a gemer, a contorcer-se, ali permanece carecida de ação, sem ânimo para se livrar do perigo, até que por fim a cobra a devora, com serôdio deleitamento. Espetáculo assombroso e repugnante; mas alguns supersticiosos moradores daquelas redondezas pensam que ali anda coisa; a alma penada da pobre Rosa perseguida pelo mau espírito do rude vaqueiro ainda atormentado pela paixão furiosa.
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Transcrito do Jornal Pequeno, Recife, 30 de novembro de 1931.



[i]
Poeta, romancista e ensaísta, HORMINO ALVES LYRA nasceu em Pão de Açúcar, Alagoas, em 3 de agosto de 1877. Fez seus estudos secundários no Ginásio São João em Penedo, onde exerceu as funções de censor e lecionou com substituto de várias cadeiras.
Em princípio, pensou dedicar-se à vida eclesiástica. Entretanto, não obstante a sua crença religiosa, percebeu que não tinha vocação para o sacerdócio. Prestou, então, concurso para a Fazenda e para os Correios e Telégrafos. Aprovado em ambos, preferiu o segundo, sendo admitido como Telegrafista.
Escreveu para vários jornais e revista como O Malho e Revista da Semana.
Suas principais obras são: Dona Ede (romance), em 1913; O 14 (contos), também em 1913; O Barão do Triunfo, 1941, separada da Imprensa Nacional (memória); Crisol (poesia), 1960. Troveiro, 1960 (poesia).
Foi casado com Marieta de Mello Carvalho (filha do Coronel Augusto Álvaro de Carvalho e de D. Maria Luiza de Mello Carvalho), falecida em 5 de janeiro de 1961.
Hormino Lyra faleceu no rio de janeiro em 13 de setembro de 1970.

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