Por
Etevaldo Amorim
Pão de Açúcar em 1869. Foto: Abílio Coutinho. |
A Semana Ilustrada, que se publicava no Rio de Janeiro, em sua edição do dia 21
de março de 1869, exibe uma nota assinada por alguém que se assinava como Dr.
Semana. Sob o título PONTOS E VÍRGULAS, a notícia trata de uma carta,
supostamente escrita por Jesus Cristo, numa certa cidade ribeirinha do São Francisco,
no sertão alagoano. Diz a revista:
“Preparem
os ouvidos; limpem os óculos; disponham-se todos para ouvir e ler a coisa mais
espantosa, mais inesperada, mais singular de todo este século.
Ninguém
espera pelo acontecimento que vou relatar. Aposto a província do Piauí contra
cinco mil réis em como o leitor está tão longe do que lhe vou dizer como Frei
Brandão está longe do Monte Hymetto, e o Banco do Brasil longe da conversão em
ouro.
Aproveito
o domingo de Palmas para referir o acontecimento; é bom que a santidade do cia
me ponha a coberto das injúrias que porventura se lembrariam de tapar-me a
boca.
Aqui vai o acontecimento:
Esteve
no Brasil, no mês de dezembro do ano passado... quem? Dou um doce a quem
adivinhar qual foi o hóspede ilustre que pisou terra brasileira no ano de 1868.
- Foi Garibaldi? Diz um leitor.
Qual!
- Foi Victor Hugo? Acode outro.
Não, senhor.
- Napoleão III? Interroga um terceiro.
Não foi esse.
Cada
leitor coça a cabeça, arregala os olhos, põe a fronte entre as mãos, na posição
em que os pintores representam os homens meditativos, e depois de um longo
investigar, a ver se obtém das minhas mãos o doce prometido, confessam todos os
leitores que não sabem quem seja.
Compadecido
da ansiedade pública e particular, ansioso por comunicar a todo o Império um
acontecimento que só a província das Alagoas teve a glória de ver, declaro que
a pessoa que visitou terra brasileira no mês de dezembro d e1869, foi:
JESÚS
CRISTO.
-
Impossível! Gritam os leitores; isto é caçoada do Dr. Semana. Não estamos no
primeiro Abril; além disso, a semana santa merece algum respeito...
Perdão,
leitores; eu não vi o divino hóspede do Brasil, pois que ele apenas esteve nas
Alagoas, mas tenho a prova de que lá esteve, e prova irrefutável. A prova é uma
carta escrita por ele mesmo e datada da Vila do Pão de Assúcar, daquela província,
em 2 de dezembro d e1868, carta que o Diário das Alagoas publicou e que tem
sido copiada pela população do Pão d’Assúcar e posta em bentinhos ao pescoço.
Isto
é, Jesus Cristo fez nem mais nem menos o que faria Victor Hugo ou Garibaldi se
viessem agora às nossas plagas. Não é crível que esses dois políticos imensos
deixassem de escrever duas epístolas lardeadas com toucinho republicano,
prometendo ao país a fraternidade e a liberdade dos povos.
A
diferença é que, não tendo Jesus Cristo aspirações políticas, a carta
limitou-se a advogar os interesses espirituais, não sem tocar algumas vezes em
coisas terrenas, como os leitores verá adiante.
Os
Evangelhos são omissos neste ponto. Não consta, por eles, que o fundador da
Igreja fosse dado ao gênero epistolar. Descobriu-se isto no Século XIX, na
Província das Alagoas, na Vila do Pão d’Assúcar. É uma lacuna que deve ser
preenchida pelos sabedores da história sagrada.
Mas
o prazer que nos causa a existência de uma carta escrita por Jesus Cristo fica
um pouco aguado com a descoberta de que Jesus Cristo não sabia ortografia nem
sintaxe.
A
ortografia da carta é digna de uma lavadeira; a sintaxe está pedindo um ofício
do sub-delegado da roça.
Verdade
é que a carta é escrita em Português, e não existindo ainda a língua de Camões
no tempo de Pôncio Pilatos, não é estranho que os contemporâneos do pro cônsul ignorassem
os rudimentos de uma língua que só depois veio ao mundo.
O
caso é que, se a carta aparece alguns meses antes, Jesus Cristo não escapava da
eleição de Deputados. A independência gramatical é uma virtude política muito
de apreciar nestas terras. ”
E transcreve a carta, ipsis verbis et virgulis, a exemplo do
que fez o Jornal do Recife, de 28 de dezembro de 1868, reproduzindo notícia
dada pelo Diário das Alagoas, com o seguinte comentário:
“Ao
Diário das Alagoas, escreveram o seguinte do Pão de Assucar:
“Apareceu
aqui nesta Vila uma carta que dizem ter sido feita por Jesus Cristo ao povo; e
tem isto de tal sorte entrado na cachola de uma meia dúzia de devotos e devotas
– verdadeiras hipócritas – deste lugar, que já têm extraído diversas cópias
para trazerem penduradas no pescoço como relíquia ou bentinho. Ei-la:[i]
‘Filhos meus rimidos
com o meu precioso sangue derramado na Cruz criados com o meu precioso sangue e
Santo do meo reino principalmente minha mãi Maria Santíssima Nossa advogada e
protetora por tanto se vós não emendardes vosso mao costume heide castigar.
Guardai nos Domingos e dias santos em que a Igreja vos manda ouvir missa
inteira com vossa família e si assim não obdecer hei de castigar com fome e sede e não gozarão de fructos gerais na terra, vos
andarei a peste e tu não sabereis curar no primeiro dia que tiver este
avezo fazei penitencia dai esmolas aos
pobres pelo meu amor e pelas almas do Porgatório não jurareis falço e os que
procurar esta carta por ahi elles gozarão da minha bênção enviarei para o ceo
celestial se não fosse o rougo do meu Pai Francisco e Santa Thereza vos tinha
castigado com as penas do inferno que vos tem merecido. Quem duvidar desta
minha carta e jugar feita por mão pecadora eu disterrarei como foi Salomão e
toda sua geração quem tiver conseguido esta minha carta e espalhar por todas
criaturas cristandades e lhe perdoarei todos os seus pecados. Quem não souber
escrever dará um vintém a quem lhe cupiar esta minha carta e lhe porei a minha
mão benigna e lhe discubrirei o meu rosto. Os que tiver esta minha carta
ficarão livre do trabalho e moléstia. Por signal, no primeiro de agosto do
vindouro anno o sol ficará de tal maneira que ninguém conhecerá uns aos outros
– o pai não conhecerá o filho, nem ao filho ao pai, por tanto aviso-vos e
mostrarei a minha bondade e graça de minha mãi Maria Santíssima Nossa Senhora e
o Anjo da Guarda por estar de contínuo a rogar por vos.
Pão
d’Assucar, 2 de dezembro de 1868.
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