Fazenda
de Lagoa das Pedras, Sul de Alagoas, Município de Pão de Açúcar.
Manoel
Lisboa, seu proprietário, tinha confiança ilimitada no vaqueiro.
João
Lino, homem de trinta e quatro anos de idade, em verdade, era tipo sério; não
mentia, nem contra si. Ganhou a confiança do fazendeiro e resolvia qualquer
negócio em sua ausência.
Não se casou.
Havia muito, acompanhava os passos da filha unigênita de Lisboa, e tinha a
cisma de se casar com ela. Conhecia os negócios da fazenda de gado, e melhor
partido não encontraria a moça.
Rosa, que
inveja causaria a todas as rosas dos jardins, muito jovem, muito linda, de
singeleza impressionante, não era namoradeira. Sisuda, gênio reconcentrado,
vivia sempre ao lado da boa mãe, sem ter preocupação ainda com o problema social
do casamento. Achava-se muito criança para resolver tão complicado caso.
Do mesmo
modo não pensava Lino, tanto que uma vez, quando teve oportunidade, lhe falou
jeitosamente acerca de seus desejos.
Assustou-se
a moça com a conversa do vaqueiro, e não lhe deu resposta. Nunca tinha
idealizado o homem que a devia possuir, mas, com certeza, não era aquele.
Molestou-se
Lino com a falta de consideração da moça. O pai o considerava tanto, porque não
haveria ela de imitar o bom exemplo do velho?! Não se conformou, e insistiu
muitas vezes, até que lhe disse Rosa seria melhor mudar ele de assunto, e
procurar outra. Ela, com certeza, não tinha pensado em casamento; mas, ainda
quando pensasse, não entraria o vaqueiro em suas cogitações. Não perdesse
tempo, porquanto era inabalável a sua resolução.
Voltou
Lino, pouco tempo depois, a revolver o passado e, agora, mais impetuoso, tinha
também sua resolução inabalável: casar-se com Rosa ou morrer. Ela, porém,
sucumbiria com o vaqueiro, consoante lhe declarou formalmente.
Sorriu a
moça e deu de ombros.
Nem os
próprios pais sabiam do que se passava entre João Lino e a filha deles.
Uma
tarde, estava ela à beira do “açude grande”, perto de casa, na hora em que
costumava o vaqueiro estar na roça. Grande foi seu espanto quando o viu a dois
metros de distância. Quis correr, mas ele lhe tolheu os passos. A moça jogou-se
n’água irrefletidamente, e nadou. O mesmo fez o apaixonado, e abraçou-a. Submergidos,
rodaram no leito viscoso do açude; e, quando da vida se lembrou o vaqueiro, a
morte estava mais perto!
... ...
...
Durante a
noite, passaram pensamentos fantásticos no cérebro dos infelizes pais da vítima:
quem sabe se alguma onça tivera apanhado Rosa; e Limo fora em seu socorro, e
sucumbira também nas garras da fera...Quem sabe algum marruá...Quem sabe? — Imaginara
a pobre mãe...
Que plano
conceberia o maldito vaqueiro para lhe raptar a filha idolatrada, sem que ninguém
o percebesse, nem até desconfiasse... — conjecturara o cérebro vulcânico de
Manoel Lisboa, a estalar de dor.
E algumas
vezes cavalgaria ele o fogoso alazão, e andara à toa; e, no meio da estrada,
bradara: — “Rosa!”. E o eco respondera: — “Rosa!”. E mais uma vez ressoara: — “Rosa!”.
E mais longe e mais fraco: — “Osa!”. E ainda mais longe e quase imperceptível: —
“Osa!”.
Noite de
verão, noite sem luar, céu sem nuvens, e as boas estrelas, no firmamento, como
se fossem amigas de novidades, pareciam querer descobrir o que de estranho
aconteceu naquele triste recanto torrão alagoano.
Noite de
aflições: lágrimas, gemidos, suspiros cá, dentro do santo lar; orquestras
infernais de batráquios, assobios agudos das serpentes, mugidos rechinantes das
vacas, berros plangentes dos bezerros, lá fora; e a “rasga mortalha”, com seus
piares sinistros, a voar, sempre a voar, de espaço a espaço, cruzando a
cumeeira da casa, a modo gargalhava escandalosamente para aumentar a aflição
dos aflitos!
No dia
seguinte, tranquilos, boiavam dois cadáveres no “açude grande”. Mistério!
***
*** ***
Dizem que
o “açude grande” ficou mal-assombrado.
Quando a
gente passa perto, dele, ouve, às vezes, suspiros prolongados e gemidos
lastimosos, gemidos de dor que comovem o cristão.
É a cauta
serpente com aspecto sorridente, boca semiaberta, olhos pregados na rã inerme,
inabalável no propósito de a comer, e botar de vez em vez a língua fora, como que
prelibando delicioso manjar; enquanto esta, apavorada com a presença e
aproximação daquela, a pular de um lado para outro, a gemer, a contorcer-se,
ali permanece carecida de ação, sem ânimo para se livrar do perigo, até que por
fim a cobra a devora, com serôdio deleitamento. Espetáculo assombroso e
repugnante; mas alguns supersticiosos moradores daquelas redondezas pensam que
ali anda coisa; a alma penada da pobre Rosa perseguida pelo mau espírito do
rude vaqueiro ainda atormentado pela paixão furiosa.
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Transcrito
do Jornal Pequeno, Recife, 30 de novembro de 1931.
Poeta, romancista e ensaísta, HORMINO ALVES LYRA
nasceu em Pão de Açúcar, Alagoas, em 3 de agosto de 1877. Fez seus estudos
secundários no Ginásio São João em Penedo, onde exerceu as funções de censor e
lecionou com substituto de várias cadeiras.
Em princípio, pensou
dedicar-se à vida eclesiástica. Entretanto, não obstante a sua crença
religiosa, percebeu que não tinha vocação para o sacerdócio. Prestou, então,
concurso para a Fazenda e para os Correios e Telégrafos. Aprovado em ambos,
preferiu o segundo, sendo admitido como Telegrafista.
Escreveu para vários
jornais e revista como O Malho e Revista da Semana.
Suas principais
obras são: Dona Ede (romance), em 1913; O 14 (contos), também em 1913; O Barão
do Triunfo, 1941, separada da Imprensa Nacional (memória); Crisol (poesia),
1960. Troveiro, 1960 (poesia).
Foi casado com
Marieta de Mello Carvalho (filha do Coronel Augusto Álvaro de Carvalho e de D.
Maria Luiza de Mello Carvalho), falecida em 5 de janeiro de 1961.
Hormino Lyra faleceu
no rio de janeiro em 13 de setembro de 1970.
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