domingo, 7 de maio de 2023

HORAS DE LEMBRAR – GUIMARÃES PASSOS

 

Coelho Cavalcante[i]


Lembro-me de que, quando o vi pela primeira vez, apregoava ele um leilão de festa religiosa, em São Luiz do Quitunde, aldeia alagoana, onde nasci.

Levara-o de Maceió para ali Manoel César de Farias Mattos[ii], tão poeta e tão boêmio quanto ele.

Do ponto de partida ao de chegada, andaram de a pé dúzia e meia de léguas, à sombra de extenso capoeiral em fruto, pousando aqui e acolá, e a vender aos pescadores daquelas praias imagens pequeninas de Nossa Senhora dos Navegantes, propositadamente esculpidas em cajá por um Affonso Bina, perito fabricante de carimbos do mesmo pau e morador à rua do Sol, na capital do sururu de capote.

Pintavam ambos a manta[iii], com a bondosa aquiescência unânime da escassa população quitundense, quando, de súbito, aparece o escrivão Tito Passos[iv], que ali fora ao encalço do amado filho ausente.

Manoel César morreu em 1886, quase anônimo, depois de haver cantado, num lirismo mais doce que mel de uruçú, as moças e as perspectivas da natureza daquela sagrada nesga de continente, que lhe dera naturalidade.

Até ao dia em que partiu ele para o Rio, a vida de Guimarães Passos[v] não teve, como diz a chapa hodierna, solução de continuidade.

Passou por todos os liceus e por todos os colégios de Maceió como um dos mais talentosos e também o mais vadio dos alunos, fazendo rir a mestres e condiscípulos com suas insocegáveis diabruras.

Ensinaram-lhe isso Luiz Mesquita[vi], mimoso poeta lírico, do qual o talento se sepultou esquecidamente naquele meio estagnado, e Guido Duarte[vii], homem de insigne saber literário, autor de um soneto intitulado O Leque, transcrito e decorado, àquela época, em todo o Brasil.

Na “Gazeta de Notícias”, sob a edição de José Hygino de Carvalho[viii], foi onde o futuro artista dos Versos de Um Simples pôs em letra de molde a excelência originalíssima de sua musa.

Hygino não era homem de alcance necessário às consequências das galhofas e sátiras impressas de Guimarães e outros colaboradores, assacadas à burguesia apatacada e vingativa de Maceió, e por isso teve, bastas vezes, de rebater, improficuamente, imprevistas bordoadas que lhe vibraram caceteiros em almoeda.

Fausto de Barros[ix], orador abolicionista; Carlos Valente, jornalista de uma fertilidade assombrosa, cheio de bombas e gongorismo, por vezes acusado de plagiário, no acesso das controvérsias; Oliveira e Silva[x], que tanto se distinguiu, depois, na imprensa dos jornais cariocas, e tantos outros rapazes estirados, hoje, na impassibilidade eterna do esqueleto, foram os companheiros incomparáveis da mocidade radiosa do Guimarães.

Era a “Gazeta” o ponto de reunião de todos eles, os quais trazia o José Hygino na palma das mãos, em paga reconhecida de lhe encherem de brilho, de graça e de ledores o jornal. Ali se combinava a fatura do lido órgão provinciano e mais o programa da pandega noturna, o pão nosso de cada noite, como dizia o Fausto.

Tinha esta originalidade efeito no hotel, ou melhormente, como se hoje diz, no frege do Justo Mesquita, mulato laborioso e pachola, republicano, e consumado artista culinário, então estabelecido à rua da Cambona[xi], terceira casa à esquerda de quem ia para Bebedouro,

Um tal Machado, infalível comensal, rico de matéria e de haveres herdados, era o responsável, perante o hoteleiro, quando na algibeira de todos havia míngua de pecuniário suficiente aos gastos da ceia.

Guimarães nunca tinha vintém, quebrado sempre, quebradíssimo, como os sonetos do Doutor Aprígio.

Carlos Valente, amarelo, cadavernoso, com um olhar oblíquo e sombrio, dentes grandes e podres, sempre de mãos frias como as de um defunto, a língua dele era um trinchador a esquartejar aquela pobre sociedade.

A política dominante, à qual era sistematicamente adverso o diário de José Hygino, era o prato da sobremesa: na boca do Barão de Traipu, Vice-Presidente, sempre em exercício, da então Província, punham-se os maiores disparates deste mundo, e sobre o lombo polpudo dos deputados provinciais, matutos cheios de ignorância e vazios de desonra, cravavam-se, como a flecha certeira do índio no dorso da tartaruga, os epigramas de Guimarães Passos e as verrinas de Valente.

Numa noite de muqueca e de vinhaça, aniversário do Oliveira e Silva, mais conhecido por o Sabugo, o Barão e seus correligionários foram radicalmente vingados: Júlio Mesquita, no auge de uma carraspana formidolosa, dispersou os fregueses à acha de lenha, rachando a cabeça do vate epigramático.

Dos inúmeros ofendidos da reacionária jolda intelectual foi um deles o Doutor João Gomes Ribeiro[xii], famoso tribuno, polemista de eterno fôlego, despeitado e temido, o único, talvez, escapo à viperina e sempre injusta análise crítica de Thobias Barreto.

Acontece aparecerem, empós, numa revista literária, uns versos de um tal Charles Guerin ou Charles Berquin postos em vulgar pelo Guimarães.

Ora, João Gomes, que conhecia como a si próprio o autor da tradução, o qual fora seu discípulo, encaixou nas colunas do jornal que redigia o seguinte:

Pede-se ao senhor Sebastião Cícero Guimaraes Passos o especial obséquio e trazer ou mandar a esta redação os originais dos lindos versos que traduziu e fez, ontem, publicar. O curioso autor destas regras, seu velho admirador, as traça unicamente por dois motivos: ter dúvidas sobre o conhecimento da língua de Voltaire por parte do jovem tradutor e certeza absoluta de que Charles Berquin nunca, jamais, existiu.”

Essa mofina pôs em reboliço os arraiais literários.

O velho Tito Passos, que se impava de nobre orgulho do estro invejável do filho, pôs a mão na cabeça.

O poeta, ao ver-se perdido, correu, então, aos amigos, aos parentes e às senhoras das relações do jornalista, que substituiu a mortificante morfina por uma notícia muito hábil, uma espécie de sentença absolutória, não por unanimidade, mas por maioria de votos.

Supõe-se, e eu creio que erradamente, que foi esse acontecimento, aliás, sem  importância, que dera causa a retirar-se o poeta para o Rio de Janeiro, onde, pouco tampo volvido, os maiores homens de pena abriram-lhe praça, acatando-o com refinamentos de grata fraternidade, distinção essa que se ele referia em carta a Luiz Mesquita:

A vida nômada, a mesma; a ignorância, cada vez mais enciclopédica, tanto que me consentiram membro fundador da Academia. Imortal! Está direito: eu não tenho onde cair morto.”

___

Transcrito da revista O Malho, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1919, em cuja publicação se exibe uma caricatura de Kalixto[xiii], feita em 1906, na Confeitaria Colombo, em que, pelo que se pode entender, o artista pôs a inscrição: “Fato é que o meu cigarro quebra queixo. Guimarães

NOTA:

Caro leitor,

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] João Francisco Coelho Cavalcante – “João Barafunda” (São Luiz do Quitunde-AL, 16 de junho de 1874/Rio de Janeiro-RJ, 18 de novembro de 1938). Ver JOÃO BARAFUNDA, O DESTEMIDO PANFLETÁRIO ALAGOANO,

http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/10/joao-barafunda-o-destemido-panfletario.html

 

[ii] Tinha um filho chamado Major Manoel de Farias Mattos, falecido em 1917, no Engenho Todos os Santos, em São Luiz do Quitunde.

 

[iii] Expressão utilizada originalmente em Portugal, que significa fazer travessuras, sair do sério, deitar e rolar, fazer grande alarido, diabruras, desordens, fazer coisas extraordinárias. Mais ou menos como a conhecida “Pintar o Sete”.

 

[iv] Major Tito Alexandre Ferreira Passos. Pai do poeta Guimarães Passos, autor de. Faleceu em Maceió no dia 27 de março de 1910.

 

[v] Sebastião Cícero dos Guimarães Passos. Poeta alagoano, nasceu em Maceió, em 22 de março de 1867 e faleceu em Paris (França), em 9 de setembro de 1909. Era filho do Major Tito Alexandre Ferreira Passos e de Rita Vieira de Guimarães Passos. Casou-se com Celsa da Silva Freire, filha de Flávio Clementino da Silva Freire – Barão de Mamanguape e da poetisa Carmem Evangelista Salles – Carmem Feeire (Baronesa de Mamanguape).

 

[vi] Luiz Mesquita. (Maceió - AL 1861). Poeta, advogado, deputado estadual, jornalista. Foi promotor das comarcas de Porto Calvo, Alagoas (atual Marechal Deodoro) e Pilar. Deputado estadual  nas legislaturas. 1913-14; 15-16 e 17-18. Autor da letra do Hino de Alagoas. Como jornalista atuou no Diário da Manhã, Gazeta de Alagoas, O Momento, O Gutemberg, A Tribuna e Jornal de Alagoas. Pseudônimos: Mr. Louis, Yann e Xisto. Romeu de Avelar o transcreve em sua Coletânea de Poetas Alagoanos.  Hymno da Loja Cap. Virtude e Bondade, publicado em O Malhete,  numero 4, Anno I de 24/06/1899, p. 4. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.

 

[vii] Guido Martins Duarte. (Nasceu em Pernambuco,   1842-  Salvador - BA  - 11/10/1893). Jornalista, poeta, guarda-livros. Começou a trabalhar, como guarda-livros, na Companhia União Mercantil, de Fernão Velho, em janeiro de 1876. Atuou nas campanhas abolicionista e republicana. Foi redator, até 1877, de O Século, juntamente com João Gomes Ribeiro, e colaborou com A Estreia e a Gazeta de Notícias. Dirigiu A Nova Crença, desde seu aparecimento em 06/01/1884; atuou, também, no José de Alencar, órgão do Clube Literário do mesmo nome, jornal que foi lançado em 07 de setembro de 1882 e, finalmente no O Gutenberg, onde criou a seção Cofre de Pérolas, na qual foi responsável pelo lançamento de muitos poetas da província, jornais estes editados em Maceió. Foi eleito, em 1883, presidente da Sociedade de Instrução e Amparo dos Caixeiros de Maceió e, em 1884, diretor da Sociedade Libertadora Alagoana. Foi secretário da Associação Comercial de Maceió,  em 1890. Lutou pela abolição do cativeiro e pela República. Sócio do IAGA, admitido em 03/09/1884. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.

 

[viii] José Hygino de Carvalho. Foi proprietário do jornal O NACIONAL, A CIDADE e GAZETA DE NOTÍCIAS. Faleceu em Maceió a 29 de agosto de 1905.

 

[ix] Dr. Fausto de Barros. (Engenho Remédio, Murici - AL 18/12/1864 - Engenho Santa Fé, Murici - AL 04/04/ 1897). Poeta, deputado estadual, advogado. Filho de José Teodoro Bezerra de Melo e Americana Augusta de Barros Corrêa. Estudou, em Maceió: com o prof. Francisco Domingos da Silva, diretor do Colégio Bom Jesus. Terminou os preparatórios em Recife, ingressando na Faculdade de Direito, onde se formou em 1889. É nomeado promotor em Taquaretinga, sendo, logo depois, transferido para Bom Conselho, ambas em Pernambuco. Regressou a Alagoas e foi promotor nas comarcas, então reunidas, de União e Murici.  Foi nomeado Fiscal da Alfândega em Juiz de Fora (MG), ficou, porém, adido ao Tesouro Nacional, sendo, depois, removido para o cargo de secretário do Tribunal de Contas, no Rio de Janeiro.  Em 1894 retornou a AL. Deputado estadual na legislatura 1895-96, eleito pelo recém-criado Partido Democrata de Alagoas. Patrono da cadeira 8 da AAL. Romeu de Avelar o transcreve em sua Coletânea dos Poetas Alagoanos. O seu poema Teu Olhar foi inserto no livro Terra das Alagoas, editado em Roma. Colaborou com: O Gutenberg, Gazeta de Notícias, e, ainda, com a revista Paulo Afonso.  Fonte: ABC DAS ALAGOAS.

[x] Antônio José de Oliveira e Silva (Pilar-AL, 1864 – Rio de Janeiro, 1911). Era tio de Zadir Indio, segundo a Revista da Semana, Ano XIX, nº 39, 02.11.1911; e, segundo o Correio da Manhã de 21 de janeiro de 1911, seu primo, conforme nota de falecimento assinada, entre outros parentes, por Costa Rego, este sim, seu sobrinho.

 

[xi] Rua da Cambona, atual Rua General Hermes.

 

[xii] Bacharel João Gomes Ribeiro. Advogado estabelecido na rua Nova, nº 6. Nomeado lente do Lyceu Alagoano em 1890. Filho do fiscal da Alfândega João Gomes Ribeiro (falecido em 1875). A 27 de julho de 1892 passou a ocupar a função de Chefe de Redação do jornal O Nacional.  Faleceu em Maceió a 26 de outubro de 1897.

 

[xiii] Calixto Cordeiro ou K. Lixto (Niterói, 1877 - Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1957) foi caricaturista, desenhista, ilustrador, litógrafo, pintor e professor brasileiro. Filho de Manoel Cândido Coutinho e Luiza Evangelista Cordeiro Coutinho. Casado com Nair Jalles Cordeiro, com quem teve os filhos Horácio Calixto Cordeiro e Néia Calixto Cordeiro.

 

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia