quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O TREM DE XANDU

Mauro Mota[i]

Entre as pessoas referidas por Félix Pires de Carvalho, pessoas das relações pessoais e de trabalho de Delmiro Gouveia, uma delas compensaria a aridez às vezes não só da paisagem, também do homem do sertão nordestino.

Este, sim, podia dizer: minha vida é um romance. Em cima do seu trenzinho, podia oferecer argumento e elenco para um filme, com intérpretes de carne e de ferro. Era o compadre Xandu, mais conhecido por Xanduzinho das Rosas, por ser muito prazenteiro e cantador de toadas, não obstante já estar bastante velho.

Foto_Luiz Ruben F. de A. Bonfim


Era tão interessante, conta o memorialista sertanejo, o modo como agia Xanduzinho como chefe do trem, que até hoje trafega das Piranhas (Marechal Floriano) a Jatobá (Petrolândia), que acho mesmo de bom alvitre deixar um pouco a vida de Seu Delmiro para intercalar neste modesto trabalho algumas das suas que eu testemunhei e gostava mesmo de testemunhar por achar engraçadas.

Ele fazia tudo na estrada, mas nunca achou quem fizesse representação contra ele, porque a coerência que ele tinha com uns era suportada pelos outros, que imaginavam amanhã também precisarem das mesmas coerências. E assim Xanduzinho ia cantando a sua filosofia sem ser incomodado.

Xanduzinho das Rosas era inimigo de horários e sinetas. Não abandonava passageiros nem os pertences. Chapéu, embrulho e até jornal que eles deixassem cair pelos engates ou pelas janelinhas dos vagões, parava a locomotiva para recolhê-los, fosse em que altura fosse do ramal.

Seu Félix mesmo, de viagem marcada a Piranhas, chegou uma vez esquipando em Jatobá, tão cedo que “ainda estava sendo abraçado por Morfeu”. Perto do cemitério, ao ouvir o apito do trem anunciando a partida dentro de alguns minutos, teve que “impelir a burra a maior velocidade das carreiras”.

Já na rua de Jatobá, o compadre Lero (coronel Aureliano Menezes), que estava fazendo a barba com o cabo do espelho enfiado do buraco da janela, interpelou-o:

- Que pressa danada é essa? Quer matar essa bicha baixeira?

Explicando que estava prestes a perder o trem para Piranhas, o “coronel” o tranquilizou:

- Deixa de ser bobo. Eu também vou.

Pediu à mulher para fazer café e cuscuz e chamou o moleque da casa:

- Corra meu filho, vá à Estação e diga a Xanduzinho que aguente a mão que eu e compadre Félix vamos viajar e chegamos daqui a pouco.

O “daqui a pouco” foi mais de uma hora. Lero se vestindo, procurando o parapó. Mas Xanduzinho aguentou a mão, somente apitando, apitando, chamando.

No trem tinha uma moça falando contra a demora, achando aquilo uma vergonha, dizendo que aquela estrada de ferro era a pior do mundo.

Xanduzinho perguntou a ela para onde se botava. Ela respondeu que morava no Rio de Janeiro. Ia a Paulo Afonso ver a mãe que não via há muitos anos, e ainda mais aquele atraso.

- Estrada pior do mundo!

Xanduzinho ainda perguntou se ela gostaria se alguém maltratasse a mãe dela. Ela respondeu mais zangada ainda:

- Não admitiria o atrevimento.

- Nem eu! – disse ele. A senhora está falando mal da minha, chamando ela de “pior do mundo”. Essa estrada é minha mãe, fique sabendo.

Disse isso e começou a cantar uma toada: “É amando, e chorando e querendo bem”...

***   ***   ***

Em outra ocasião, o trem ia viajando, vimos debaixo de um imbuzeiro muito imbu maduro. Então eu lhe disse: olha, Xanduzinho, que beleza!

Ele mandou parar o trem para chuparmos imbu até quando todos ficamos satisfeitos com o suco da saborosa fruta.

Outro dia, não sei se por falta de passageiros, foi atrelada à máquina apenas a primeira classe e nela embarcaram os passageiros de primeira e de segunda classe, indo até o Coronel José Rodrigues, Chefe Político de Piranhas, com três soldados da polícia alagoana e dois dos seus cangaceiros.  Eu então lhe perguntei:

- Que diferença há dos passageiros de segunda classe para os de segunda? Ele respondeu:

- Adiante você verá.

Quando chegamos a um lugar em que havia muitas árvores secas, ele mandou parar o trem e disse:

- Os passageiros de segunda classe vão quebrar lenha para a máquina do trem; e, virando-se para mim, disse? – Eis aí, Félix, a diferença que você me perguntou.

***   ***   ***

Seu Félix não tivera sorte no negócio tentado em Esplanada, na Bahia. Veio com toda a bagagem. Numerosos volumes sobrados da liquidação, via Propriá, onde os colocou em canoas para atingir Piranhas pelo São Francisco. Aí, para atender ao pagamento dos fretes do trem, pediu que fizessem a pesagem dos sacos e caixões.

Xanduzinho olhou tudo e disse:

- Pesar o quê? Aí deve ter 50 quilos.

Seu Gaudêncio, o empregado encarregado e que deveria substituí-lo depois da aposentadoria, reclamou:

- Isso assim já é demais, seu Xanduzinho! Dê ao menos 200 quilos...

Ele deu. E continuou: “É amando, chorando e querendo bem...”

 

 ***   ***   ***

Combinações de uma transcrição do Diário de Pernambuco, 13 de março de 1966; 31 de dezembro de 1967; 30 de janeiro de 1974.



[i]


Mauro Mota (Mauro Ramos da Mota e Albuquerque), jornalista, professor, poeta, cronista, ensaísta e memorialista, nasceu no Recife-PE, em 16 de agosto de 1911, e faleceu na mesma cidade em 22 de novembro de 1984. Filho de José Feliciano da Mota e Albuquerque e de Aline Ramos da Mota e Albuquerque, estudou na Escola Dom Vieira, em Nazaré da Mata, no Colégio Salesiano e no Ginásio do Recife. Diplomou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1937. Sexto ocupante da Cadeira 26, eleito em 8 de janeiro de 1970, na sucessão de Gilberto Amado e recebido pelo Acadêmico Adonias Filho em 27 de agosto de 1970. 

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia