sexta-feira, 13 de abril de 2012

O PASSADO DE PRESENTE


O VELHO “GENERAL”¹
(Sertão de Alagoas)

Ascendino Christo


Tarde quente de verão. Sobre a terra escaldante desdobra-se o imenso pálio de céu rubro.
No poente, há como chamas gigantescas de uma fogueira monstruosa, onde mergulha incandescente o disco solar. Há espalhados pela campina, na copa das árvores altaneiras, no escuro da mataria densa, nos picos alvadios ou negros das montanhas, faixas, rastilhos, toques de luz vermelha. É a magnificência do crepúsculo na selva tropical.
Calmo e pesado, tênue sopro agita a plumagem rala de árvores despidas. Nem força tem para suspender o pó ressequido e ocre da tortuosa estrada. Há nervosos estertores de gravitos e vagens secas a crepitar em estalidos irritantes ao calor intenso.
A longa estrada riscada em sulcos paralelos, pontilhada de brilhantes seixos, vai pouco a pouco imergindo na sombra plúmbea, guarda avançada da noite estrelada.
Três horas a fio, cavalgando suarento tordilho, coberto de pó e enfado, já sem prazer na visão da natureza esquelética, vi passar desde minha partida de Meirús. E a montanha da estrada em fogo fazia-me esgotar a esperança de um descanso perto de breve entrada na linda cidade de Pão de Açúcar.
Agora percorria a baixada que antecede o Alto da Bela Vista, o ponto de onde se descortina vasto horizonte de variedade empolgante, desde a cidade ao sopé, à praia arenosa, ao rio azul e veloz até as montanhas em caprichosos recortes na margem oposta.
Caminheiro prostrado de jornada de muitos sóis e de muitas luas, combalido e sedento de água refrigerante, que ali chega, se tiver ainda forças para dilatar as pálpebras cerradas pela morte das energias e olhar o deslumbrante panorama: os montes, os vales, cultivados campos, a casaria avermelhando, de telhados novos, paredes alvas de cal, e o rio em filete de cristal ao fundo – caminheiro que ali chega, corre, voa, galga a légua que o separa da cidade, do rio, sem cansaço, sem alquebramento.
- Di-lo o povo na sua adoração justa da natureza rica e emocionante.
Também eu sentia ânsia de transpor o vale que me afastava da mágica culminância. Também sentia pruridos de rever o já muito conhecido quadro tão grato aos meus olhos de adolescente! E esporeava o manso tordilho, e atirava ao ar interjeições de alegria, onomatopeias de animação.
- Êh! ... Êh! ...Tordilho, vamos. É ali a Bela Vista.

***   ***
            Transporto o alto, para trás a íngreme e enfadonha ladeira, eu era mais forte: vira a cidade amada e o rio querido. Uma grande alegria repassada de alívio ungia min’alma, o coração pulava de contentamento. Em breve alcançara um carro de boi, morosamente estadejando para a cidade. Chiava pesaroso, num concerto rústico, gemendo ao peso da carga arrumada em pilhas.

E lá ia o tosco veículo, ora chorando em lamentos lancinantes a sorte da craibeira do eixo, meio carbonizado, reluzente, pelo atrito constante dos cocões — ora soluçando trôpego, cansado já, empoeirado do caminho das estradas. Guinchava, às vezes, acelerando a pesada andadura pelo bárbaro ferroar aos mansos bois.

Sempre monótono, cantando alegrias ou entoando nênias, jamais calado, vai pelos caminhos ingratos até o repouso, onde descansa do sol em pino à sombra escassa de alguma árvore, pendido o cabeçalho ao chão. Só ai para de cantar, só ai cessa a música esquisita que atirou aos ares durante horas sem fim.

  ***   ***

         Contou-me o carreiro —um rapagão sadio e forte, sempre pregado à palmatória do seu carro, alegre, jovial, cantarolando loas ou imitando, às vezes, passarinhos em assovio fino, estrídulo: - contou-me o carreiro com lágrimas nos olhos:

— “O meu melhor boi chamava-se “General”. Era um animal de estimação: coiceiro afamado, nenhum outro o vencia no seu posto. Fazia gosto ver como ele escorava a dianteira numa descida ‘a pique’. ...

“Viajara muito e não esquecia atoleiro onde passasse uma vez, nem ignorava precipício a evitar. Do rio – de Pão de Açúcar – até vinte, e trinta e mais léguas, na ‘redondeza’ ele fora, por longos anos, o melhor, o mais valente boi de carro. Atravessara valados, galgara serras e palmilhara alagadiços; à chuva, ao sol causticante; de dia, à noite; à luz nitente, na treva horrífica; sempre aquilo: manso, pronto ao constante viajar, liso e belo, de ‘pelo lustroso’, como se a alegria de viver lhe mudasse em gozo a agrura do labor. Daí a sua alcunha de ‘General’. Como um bravo que foi teve sua ferida de honra e de reforma.

‘Foi ao descer da enorme e maldita ladeira do Parujé. Uma dianteira era um velhaco e manhoso garrote, ainda enfezado e selvagemente forte. O ‘alma do diabo’ tirou em disparada ladeira abaixo. Em frente, abria-se o chão num escancarado grotão, atraindo o carro, a carga os bois e eu. O outro dianteira era manso, porém, fraquinho, perdeu a ação: deixou-se arrastar na corrida infernal. O momento era terrível: mais um arranco do garrote, e estaríamos perdidos. Foi quando “General”, aquele bravo “General”, num esforço inaudito, ouvindo os meus scio! ... Scio! ...desesperados, sustou a carreira danada em que íamos e, desviando o carro do precipício com extraordinário sacrifício, arrastou-nos devagar até ao sopé do despenhadeiro.

‘No lombo roxo do Parujé, porém – concluiu abatido, o carreiro – ficara-se com um mugido de ‘cortar coração’, uma das suas unhas presa ao vale por uma fita rubra de sangue.”
__________________
Publicada no jornal CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1909.

Desenho de Percy Lau.


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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia