sábado, 25 de julho de 2020

PIRILAMPOS (Lendas sanfranciscanas)

Por Francisco Henrique Moreno Brandão[i]
Ilha de S. Pedro-Porto da Folha- SE
Foto: portodafolha.com
A noite, muito negra e muito fria, veio de inverno. Por isso, no samba animado que havia em casa de Aninha Peixe, não se dava um intervalo entre uma dança e outra sem que a comparência, de parte as distinções de sexo ou de idade, não fosse ingerindo goles sucessivos de camboim, deliciosa bebida fabricada nos engenhos de Brejo Grande e Piaçabuçu e trazida para ali na sua canoa, alcunhada de “Flor da Bocarra”, pelo Manoel de Serva.
Depois as “cirandas” e outras espécies coreográficas do populário brasileiro continuavam, dando ensejo a que aqueles próximos descendentes dos urumarys, em meneios pecaminosos, em cortejos lúbricos a que nenhuma dama se furtava, revelassem a força incontestável de um atavismo sempre em vésperas de repontar estuoso.
A sala tibiamente alumiada por um “alcoviteiro” era um apartamento sórdido, sem reboco, nem ladrilho. A poeira que os pés dos dançarinos levantavam se juntava à fumaça dos cigarros amarelos ordinários e ao cheiro acre dos corpos suarentos. Tudo isto tornava a atmosfera irrespirável e parecia aumentar a excitação nervosa dos dançadores.
Lá na cozinha, duas velhas memoravam as virtudes do fundador daquela aldeia, Frei Dorotheu[ii], um verdadeiro taumaturgo, que ali se entregara a uma catequese, cujos frutos estavam agora bem visíveis no mais repugnante dos contrastes.
De casario alinhado e relativamente confortável, erguido no tempo do frade franciscano, subsistia apenas uma ruinaria extensa, bem diversa do que era visto nas eras de esplendor da Ilha de São Pedro.
O convento de taipa fora também se desmoronando aos poucos. Ora uma goteira renitente vinha apodrecer uma tábua do soalho, ora uma rajada frenética do vento sueste, atingindo violentamente uma janela, a quebrava. Mais tarde caia um trecho do frontispício e a brecha que ficava, ia-se alargando desmesuradamente.
Mão fatídica parecia ir derrubando as telhas da cobertura, hoje uma, amanhã outra, mais tarde outra, sucessivamente outras e outras, e assim por diante. O estrago se consumiu tão celeremente, que o andar térreo do convento se tornou uma pocilga de bácoros e no compartimento superior, nas celas despovoadas de frades, fizeram repugnantes morcegos o seu poso habitual e querido.
Não era menor a deterioração da igreja, cuja fachada um raio rachara de meio a meio. Das imagens que ali houvera poucas restavam, pois quase todas foram surrupiadas, não faltando um novo Judas que vendesse outra vez o desdenhado Cristo. As que ficavam nos seus nichos tinha o aspecto grotesco de bonzos e se mostravam de uma amarelidão ictérica, pois as frequentes intempéries as haviam cruelmente descolorido. O próprio ladrilho do templo fora torpemente roubado e andava servindo de múltiplos misteres nas casas que, na Ilha de São Pedro, não estavam ainda desertas.
Morto o pastor zeloso, esborcinadas as construções que ele fizera, pedindo esmolas em uma e outra margem do São Francisco, também os sampedrenses, esquecendo exemplos e conselhos, se desmandaram. Apareceu logo um mandão feroz, que passou a viver de rapinas, impondo terror a todo mundo, tomando criações aos donos, comprando fiado e pagando com desaforos e ameaças, raptando as mulheres e filhas alheias, até que montou um serralho, povoado por umas cinco ou seis pelliôas, que os seus gostos mutáveis os forçavam a trocar por outras novas. O exemplo da lasciva despeiada medrou de tal forma que ninguém em breve se arriscava a casar com moça de São Pedro, receoso de um logro.
Por sua vez, as mulheres casadas não estavam longe de certas tendências pecaminosas e raríssimas eram aquelas que não se mostravam muito latitudinárias em matéria de concessões amatoriais. Com isso começou também a predominar em longa escala a embriaguez, que empolgava desde a criança de 8 anos até o septuagenário de giba proeminente, encurvado para o chão, de olhos mortiços e passos trêmulos.
Como dois lances de redes deitada ao São Francisco bastavam para garantir abundante colheita de peixes, e dois mergulhos de covos davam, em camarões enormes, uma quantidade miraculosa, quase não se trabalhava na antiga aldeia, e todos viviam mais ou menos bem.
A serraria fechada, onde ninguém mourejava mais, fora dilapidada no melhor do seu acervo de ferramentas, e agora fazia prodígios de equilíbrio para não se nivelar com o solo, quando o vento canalizado entre as alas da cordilheira marginal ao mediterrâneo brasileiro rugia com ímpeto descomunal.
As roças eram meia dúzia de metros plantados por um sampedrense mais laborioso e rapinadas pela coletividade insulana em peso.
No quadro que outrora formava a aldeia havia cinco ou seis tavernas e outras tantas casas de jogo. Em umas e outras as rixas eram frequentes, havendo facadas, tiros e punhaladas, que ninguém punia.
Mas, enquanto esses lugares suspeitos andavam repletos de frequentadores, a olaria contava apenas com a assiduidade de duas ou três velhas de face repulsiva, as quais ali praticavam a mais rudimentar das indústrias.
Esse descalabro fez que as afugentassem de São Pedro as massas numerosas que, no mês de janeiro, iam ali assistir às festas proverbiais do Espírito Santo. Para ela convergia tudo quanto havia de mais seleto na região oparina e a pobre ilha habitada por caboclos semi-civilizados, se transfigurava faustamente, dando a impressão de uma metrópole regularmente povoada, tamanho era o movimento da rua. Agora nada disso se via. Nem ao menos, cumprindo a última vontade de Frei Dorotheu, no dia do celeste claviculário, havia ateada em frente a cada residência uma fogueira. Como lhe esqueceram depressa as injunções, faziam justamente o que ele expressamente proibia.
Viviam em contínuos batuques de que um dos mais estridentes era aquele que estava sendo realizado na noite do pescador apostolar. É verdade que as almas cândidas sempre lembradas do frade santo estavam a esperar a cada momento que o poderio deste se mostrasse num castigo exemplar.
O castigo não veio, porém veio uma advertência. Das bandas do nascente, miríades incontáveis de pirilampos apareceram, cobrindo o comprimento do diâmetro da ilha circular. Esses vagalumes, ora formavam um listrão enorme, ora davam a ideia perfeita de um círculo ou de uma elipse, ora se dispunham triangularmente, mais tarde surgiam em pelotões dispersos em falanges que acima da ilha procuravam direções inteiramente díspares. Por fim, pousando, num átomo, sobre uma tamarineira existente diante do convento, ali ficaram, dando a ideia de uma iluminação fantástica.
A recomendação de Frei Dorotheu foi então lembrada e os foliões ébrios que dançavam lubricamente na casa de Aninha Peixe foram se dispersando, dispersando, medrosos e enfiados.
Frei Dorotheu de Loreto. Foto Os Caputhinhos
na Bahia - Pietro Vittorino Regni





[i] Transcrito do jornal A ESQUERDA, Rio de Janeiro, 17 de julho de 1931. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=297984&pesq=%22moreno%20brand%C3%A3o%22&pagfis=2486.

[ii] Nascido na Suíça e ordenado na Itália, ali chegou muito jovem, em 1849, e permaneceu até sua morte em 1878, em Piaçabuçu.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

PUBLICAÇÕES
Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia