sábado, 12 de junho de 2021

VIAJANDO NO SÃO FRANCISCO

 

C. Nery Camello[i]


Propriá e Penedo são as duas principais cidades do B. São Francisco. A primeira, em Sergipe; a segunda, em Alagoas. Rivalizam-se em população, comércio e adiantamento. Separa-as uma distância de dez léguas aproximadamente. Os vapores que fazem a linha até Piranhas efetuam apenas uma viagem por semana.

Há, porém, nesse trecho do rio um tráfego constante de pequenos barcos, todos com a denominação de canoas. São embarcações à vela, com uma cobertura de palha, proporcionando relativo conforto aos passageiros. Possuem apenas uma estreita e acanhada porta de entrada e meia dúzia de janelinhas laterais, pelas quais peneira o vento pelas horas de canícula.

Embora de igual tamanho, essas canoas não obedecem à mesma planta original das barcas do Alto S. Francisco que têm, de ordinário, na proa, uma escultura monstruosa, representando, às vezes, um busto de mulher com cabeça de dragão. Pintadas com cores berrantes, sugerem-nos uma ideia das antigas galeras fenícias.

A rapidez ou demora da viagem, entre as duas cidades, depende das condições do vento. Em certas ocasiões, o trajeto é feito em menos de duas horas. Não raro, porém sucede ficarem as embarcações uma noite inteira flutuando, seguindo morosamente, à força de remos, contra a maré. De qualquer maneira, não deixa de ser um prazer viajar-se no histórico rio, a quem João Ribeiro chamou “o caminho da civilização brasileira”.

Eu tive sorte, pois na tarde em que me transportei de Penedo a Propriá – uma tarde clara e de céu muito azul – a ventania soprava fortemente. Com a enorme vela enfunada, o barco singrava célere, a caudalosa corrente, em que os raios do sol punham cintilações metálicas. Dezena de embarcações, subindo e descendo cruzavam-se, dando-nos a idéia de grandes pássaros, brancos e vermelhos, com as asas abertas, sobre as águas. Numa e noutra margem, vastos arrozais a cobrir a planície imensa. Nas ribanceiras, pouco elevadas, velhas e frondosas mangueiras. Surgem, em meio do rio, pequenas ilhas coroadas de verdura, seguidas de alvos bancos de areia.

E, enquanto a canoa avança sem interrupção, ora se aproximando de uma, ora de outra margem, os passageiros que vão fora da tolda divertem-se. Outros cantam modinhas, sambas e cocos, ao som estridente de um cavaquinho. Do meu beliche forrado com uma esteira macia, tendo junto à cabeceira uma efígie de Santa Terezinha, escuto as trovas e canções enternecedoras, saídas dos lábios daquela gente simples, despreocupada e feliz.

São quadrinhas deliciosas de autoria de poetas anônimos:

 

Menina dos olhos grandes

Não zombes tanto de mim,

Que até as penas têm pena

De me ver sofrer assim

 

Menina dos olhos verdes

De um lenço da mesma cor,

Diz a teu pai que te case

Que eu serei o teu amor.

 

Ninguém faça pontaria

Onde o chumbo não alcança,

Ninguém ponha o seu sentido

Onde não tem esperança.

 

A tarde já vai morrendo

Vai morrendo vagarosa,

Tão triste que até parece

O desfolhar de uma rosa...


Canoa no porto de Penedo. Foto: Pierre Verger

Penedo_Rocheira_O Malho, 22/06/1939. Foto Gaston Coelho

Porto de Propriá-SE. 1950






_______________

 

Transcrito da revista Vida Doméstica, Vitória-ES, 30 de julho de 1938. http://memoria.bn.br/docreader/156590/14276

 



[i]


Constantino Nery Camello, filho de Antônio Nery Camello e Luzia de Barros Camello, nasceu na Fazenda Favela, município de Santa Quitéria-CE, em 25 de dezembro de 1898, casou-se com sua prima, a quiteriense Sra. Geracina Catunda Camelo, filha de Antônio Luduvico Catunda e Quitéria Camello Catunda, em 16 de setembro de 1939, na cidade do Rio de Janeiro, (RJ). Dessa união tiveram uma filha a Sra. Ana Maria Camelo, atualmente residente em Fortaleza (CE).

O intelectual Nery Camello como era conhecido foi folclorista, escritor, membro da Associação Cearense de Imprensa - ACI e da Associação Cearense de Folclore, funcionário público federal onde ocupou cargo de direção nos Correios.

Nery Camelo teve vários livros de destaque nacional, entre eles “Alma do Nordeste”, “Através dos Sertões”, “Viagens na Nossa Terra” e Poemas do Meu Sertão, seus trabalhos eram inspirados na vida rústica do sertanejo do Nordeste. Em sua homenagem existe hoje uma rua com seu nome no bairro Vicente Pinzon, em Fortaleza (CE) e outra no bairro Pereira Barretos em São Paulo (SP).

Nery Camello faleceu na cidade de Fortaleza, aos 75 anos de idade, no dia 3 de novembro de 1974, está sepultado no Cemitério de São João Batista.

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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia