sábado, 10 de agosto de 2024

O CRIME DO CANOEIRO

 

Por Etevaldo Amorim

 

Dona Melina, uma senhora que morava bem perto da nossa casa, no Limoeiro[i], era exímia contadora de histórias. Ainda menino, eu me detinha por horas a ouvi-la, e me deliciava com os causos e relatos fantásticos que sua mente prodigiosa guardara por longos anos.


Nascida no Mocambo, um arruado pertencente ao município de Porto da Folha, Estado de Sergipe, na margem direita do rio São Francisco, Hermelina Carmelita dos Santos[ii] era negra, como quase todos os que viviam naquele núcleo de descendentes africanos. Seu modo de falar e suas boas maneiras, no entanto, denotavam ter frequentado regularmente os bancos escolares, tal era a capacidade de fixar e interpretar o que lia, e nos transmitir com absoluta fidelidade.


Leitora voraz dos livretos de cordel, ela transformava os versos em prosa, e nos transmitia a essência da história de um modo tão acessível, que nos parecia estar a ver, como em filme, o desenrolar das cenas e o desfecho arrebatador.


A sua fama se espalhava pela vila e atraía meninos e meninas até da rua de cima, formando em seu redor numerosa assistência, ávida por novidades contadas pela bondosa velhinha. Da mais simples história infantil ao Romance do Pavão Misterioso[iii], tudo era para nós um deleite, que nos deixava a todos extasiados.


Certa vez, entre uma e outra história, quase sempre iniciada por um “era uma vez” e concluída pelo indefectível “... e foram felizes para sempre”, ela nos contou um fato, dado por verídico, terrivelmente triste.


Muitos anos se passaram, e eis que encontro, em um jornal antigo, uma história que guarda incrível semelhança com aquela que nos contou. Mas, em vez de transmitir o relato de Dona Melina, prefiro transcrever o fato noticiado no Jornal do Penedo, em carta de 12 de junho de 1875, por um correspondente que se assinava por Descartes.


Piranhas, 1875. Foto Marc Ferrez.


Eis o seu relato:


“No dia 9, deu-se um fato lamentável nesta vila. Ao amanhecer desse dia, Francisco da Silva foi à casa do delegado Manoel Thimoteo de Amorim[iv] dar parte que sua mulher se achava esbordoada, e ao mesmo tempo chamou o vigário para ouvi-la de confissão.


O delegado, com o escrivão Pinto[v], procederam ao corpo de delito, e foi logo recolhido à prisão o dito Francisco da Silva e um filho menor que, na ocasião, se achava em casa.


Procedendo o dito delegado nas averiguações e diligências legais para o esclarecimento da verdade, está descoberto que foi o crime praticado pelo próprio Francisco da Silva, pela forma seguinte:


A mulher do desditado, apesar de ser mãe de muitos filhos, era infiel! O desgraçado marido, homem reconhecidamente morigerado[vi], trabalhador, amante de sua mulher e filhos, vivia desconfiado do que se passava em sua casa e que já estava no domínio do público. Mudou de rua, esteve fora da vila, andou por algum tempo com a família sem moradia certa, evitou a desgraça por algumas vezes; mas o seu cabrion[vii] nunca o deixou!


Recorreu a terceiras pessoas para fazerem com que o perturbador da paz de seu lar doméstico mudasse de linha de conduta; mas tudo foi inútil!


No dia 8, Francisco da Silva, que vive sempre de viagem, como canoeiro, subiu com destino a Piranhas. Em meio do caminho, faltando vento, volta e chega nesta vila de madrugada. Dirige-se a sua casa para descansar o resto da noite das fadigas do dia e, ao chegar, encontra a porta destrancada e entra; mas estando tudo às escuras, risca um fósforo, e testemunha a triste realidade de suas desconfianças! Quadro doloroso! Cena horrível!


O desgraçado marido treme, e fica estático! Abafados suspiros lhe saíram inevitavelmente do peito, e perdendo de momento o uso da razão, só vendo diante de si um ultraje superior e todos os males da vida, desconhecedor da Lei, cego à toda reflexão, de cordeiro, que era, torna-se um tigre sedento de sangue!


Dá garra de um cacete (mão de pilão) e descarrega em ambos. O adúltero acorda e pode fugir ferido, e a adúltera fica prostrada, gravemente ferida, vindo a falecer no mesmo dia, às três horas da tarde.


Prossegue o processo seus termos ulteriores contra o infeliz Francisco da Silva, que por força de nossas leis criminais, é réu de crime de morte!!!!


Au revoir.


Descartes.”

***   ***

Transcrito do Jornal do Penedo, 27 de junho de 1875.

***   ***

Pão de Açúcar-AL, 1875. Foto Marc Ferrez.


Incrível semelhança! Quase tudo o que relatou o missivista do Jornal do Penedo, guarda correspondência com a narrativa de Dona Melina: o canoeiro em viagens constantes rio abaixo, rio acima... a falta de vento, a volta para casa, a cena terrível, a fúria.


Apenas uma diferença: a arma do crime. O correspondente menciona um cacete (mão-de-pilão). Mão-de-pilão é uma peça usada para socar grãos em um pilão, principalmente arroz, até deixá-lo sem a casca. Consiste em uma barra de madeira de cerca de 80 cm, com cerca 10 cm de diâmetro nas extremidades, um pouco mais fina ao centro, onde se pega com as duas mãos.


Dona Melina falava em cana-de-leme. A cana-de-leme é uma barra de mateira um pouco mais fina que a mão de pilão, utilizada para manobrar o leme da canoa. Assim como os remos e panos (velas), também é guardada em casa.

___

NOTA:

Caro leitor,

Deste Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.

Tratamento de imagens: Vívia Rodrigues Amorim.



[i] Limoeiro (que também se chamou Alecrim), é uma Vila pertencente ao município de Pão de Açúcar-AL, situada na margem esquerda do rio São Francisco.

[ii] Hermelina Carmelita dos Santos nasceu no povoado Mocambo, município de Porto da Folha-SE, em 1901. Filha de Thomaz José da Rocha e Ana Maria de Souza. Casou-se no mesmo povoado em 13 de fevereiro de 1924, com Jordelino José dos Santos (seu Jorde).

[iii] Romance do Pavão Misterioso, do poeta e cordelista paraibano José Camelo de Melo Resende (Guarabira-PB, 20 de abril de 1885 - Rio Tinto, 28 de outubro de 1964).

[iv] Manoel Timotheo d’Amorim, Delegado, vereador, comerciante no ramo de padarias, tesoureiro da Estrada de Ferro Paulo Afonso. Era casado com Maria Francelina de Amorim, com que teve a filha Maria Joaquina de Amorim (casada com Targino Salathiel Canuto).

[v] João Pinto de Oliveira Costa, 1º Tabelião e Escrivão do Cível, Crime e de Órfãos.

[vi] Morigerado: que denota bons costumes; que leva vida irrepreensível.

[vii] Cabrion, personagem do romance Os Mistérios de Paris (1842), do francês Eugène Sue. Na obra, ele é um pintor que passa uma temporada na casa do casal Pipelet e os importuna, ao ponto de tornar a vida deles um estorvo. Logo, Cabrião (aportuguesado) é um indivíduo maçante, que importuna. Fonte: O CABRIÃO (1866-1867): PENA E TINTA A SERVIÇO DA SÁTIRA HUMORÍSTICA, por Guilherme Rabelo Fernandes. Disponível em: https://blog.bbm.usp.br/2020/o-cabriao-1866-1867-pena-e-tinta-a-servico-da-satira-humoristica. Acesso em: 08/08/2024.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

PUBLICAÇÕES
Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia