sábado, 9 de julho de 2016

TORVELINHO

Élio Lemos França. (Revista Mocidade)

Élio Lemos França[i]

Águas caindo precipitadamente. É bonito ver como as coisas do mundo caem precipitadamente. E os homens gostam de ver o despencar das coisas.
É um cair estourado, o das águas, cachoeira abaixo. E, lá nas pedras, o despedaçar-se de cada gota em mil partículas. O vento passando molhado pelo rosto da gente.
Minutos bem compridos, enchendo-me o olhar de água, de pedras, de espumas inquietas que giram endoidecidas. Parece-me que a Natureza está bêbada, ou louca. Ou, então, epitética, a esbater-se em espasmos de fúria, ou de dor.
Distante, o Sol, agora quase frio, parece uma pincelada de sangue, que algum louco homicida deu no azul do céu. E o horizonte faz lembrar certas pessoas simbiose da placidez do azul e da púrpura violeta de um Sol despeitado com o cair da noite.
Minutos bem compridos, que passam por meus olhos misturados ao rumor e ao torvelinho das águas, por entre cores que lutam e se confundem, enroscados em pensamentos há muito lembrados, envelhecidos e gastos em suas idas e vindas, de ontem e hoje, de hoje e ontem...
Antítese e silogismo mal traçados, quase sofismas. Crenças insustentáveis.
Ora, como se crê que possa a Vida voltar os próprios passos?! — Tolices.
Mas estes pensamentos são assim meio loucos. Cheios de confusão. Parece que eles também giram, endoidecidos, dentro da espuma nervosa da cachoeira. Insensatos!
E os minutos a enroscar-se em pensamento, querendo enroscar-me em minha alma. Em meu corpo, também. Entorpecendo minhas pernas. Matando o brilho dos meus olhos. Molhando-os.
Anoitece. Quase preciso de sair. A Vida me espera, lá fora, longe destas águas que caem e deste rumor alucinante de gritos estrondosos — não sei se das águas que se desmoronam, se das pedras que elas açoitam em seu cair ininterrupto. Anoitece, quase, e eu não posso ir.
Noites felizes, que não voltam... Dias felizes, que não voltam... Horas felizes, que não voltam...
E quem disse que podem voltar os momentos felizes? Eles passaram. Será egoísmo querer a Felicidade por muito tempo; é ela uma só para todas as pessoas. Uma pessoa de cada vez, como nas filas das bilheterias. Uma de cada vez e por um só minuto. As que vêm atrás também têm direito a Ela. Também pagaram o tributo de nascer.
Em compensação, há as lembranças. E as utopias, não são tantas? Por que não viver delas? Somente por serem fugidias? —A Vida também o é.
A noite quase que caiu inteiramente e uma estrela abriu o olho azul para o lado de cá. Está tão sozinha e brilha com tanto interesse! Deve estar, como eu, olhando o despencar das coisas... Deve estar sonhando com noites já vividas, de um tempo em que ela não tinha de ficar sozinha no meio do céu.
Anoitece. Surgem outras estrelas e a estrela bonita já não está sozinha. Não posso continuar aqui. Faz frio até.
Mesmo, a vida me espera lá fora, longe deste rugir alucinante da Natureza endoidecida.

Cachoeira de Paulo Afonso. Fonte: site Lugares Fantásticos.







[i] Extraído da revista Mocidade, Ano X, Fevereiro e Março de 1956, número 29 e 30. Cedido pelo amigo Álvaro Antônio Melo Machado que, rebuscando o baú do seu avô, o Prof. Antônio de Freitas Machado, encontrou esta prosa poética de Élio Lemos França, impressionante premonição de se trágico fim.

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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia