Por Etevaldo Amorim
O
assunto "cangaço" parece ser inesgotável. Há uma vasta bibliografia a
respeito, o que nos dá a impressão de que tudo já foi dito e que nada mais existe
de novo. Mas há sempre alguma novidade; um fato nunca relatado, mantido oculto
por alguma razão, e que pode ser relevante, a depender do lugar onde ocorreu e
das pessoas envolvidas.
Especialmente quando se trata de notícias que envolvam Pão de Açúcar, este Blog procura dar destaque, inserindo notas com informações adicionais, oferecendo ao leitor a possibilidade de conhecer mais sobre o tema.
É o
caso de uma matéria publicada n’A GAZETA, de São Paulo, edição de 26 de junho
de 1926, assinada pelo jornalista – MACEDO GUIMARÃES, redator do jornal Diário
da Bahia.[i]
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O Malho, Rio de Janeiro, 17 de julho de 1926. |
“O 'Diário de Notícias', que se edita na capital baiana, no seu número de 16 de junho último, publica o seguinte e pavoroso depoimento sobre o célebre bandido Lampeão, cujo nome é Virgulino Ferreira da Silva:
-
É verdadeiramente indescritível, inconcebível mesmo, a série de inomináveis
crimes que acaba de praticar em vasta zona dos sertões de Alagoas, fronteira ao
nosso Estado, o já tantas vezes célebre celerado, herói de mil façanhas
truculentas e indignas, Virgulino Ferreira da Silva, alcunhado por Lampeão.
Vai
por quase seis anos a sua vida de bandido e incontáveis os bárbaros crimes
cometidos em temerosas e funestas incursões por diversos Estados no Norte, sem
que até hoje, inexplicavelmente, se pusesse termo a tamanha calamidade e
vergonha.
Após
algum tempo de refúgio, numa trégua forçada, por falta, sem dúvida, de armas,
munição e dinheiro com que reunir e preparar os seus asseclas, aproveitou-se
Lampeão de propícia oportunidade e não vacilou em seguir para o Ceará, onde, é
voz corrente, alistou a sua gente nos serviços pela legalidade, recebendo,
talvez, das próprias mãos do famigerado acoitador de criminosos, canonizado em
vida pelo fanatismo ignorante dos nossos sertanejos, o celebérrimo “Santo”
Padre Cícero.
Provido
de sobejo em armas e dinheiro, que o governo confiara para a organização da
resistência aos revolucionários, traídos duplamente os seus fins, investidos
nas funções de capitão, munido de uma quatro dúzias dos rosários que
caracterizam os “soldados do Padre Cícero”, marchou Virgulino a constituir , no
sertão de sua terra, o seu batalhão e movê-lo, não contra as hostes de Prestes,
mas à cata de aventuras que lhe satisfizessem os criminosos desígnios de
incendiário, ladrão, sátiro e assassino.
O
PERFIL SINISTRO DE UM BANDIDO METIDO A ELEGANTE
Imberbe ainda, sem profissão definida, hábil tocador de harmônica, fez-se bandido, após o assassinato de seus pais, ao lado de Antônio Mathildes, recebendo deste, por suas excepcionais “qualidades” a alcunha de Lampeão.
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Antônio Mathilde (E) e Lampeão (D) em foto com família. Fonte NAS PEGADAS DA HISTÓRIA (YOUTUBE) |
Conta aproximadamente 27 anos, de média
estatura e compleição, de feição rude e um visível defeito em um dos olhos,
aparenta esperado trato por sua pessoa, tem a preocupação das boas roupas e
tecidos finos e apurado gosto pelas essências.
Traja,
agora, farda káki de capitão, chapéu mexicano cinza, talabarte, etc.. perfil
este repetido à minha vista por diversas pessoas.
ROSÁRIO
DE INFÂMIAS
Ao
chegar à Estação de Quixaba, Pernambuco, no dia 8 do corrente[ii], já aí se encontravam as
primeiras tropelias de Lampeão.
Chefiando
cerca de 50 bandidos, escolhidos entre criminosos foragidos e afeitos à prática
de todos os crimes, divididos em três pelotões, trajando mescla azul, apargatas
e chapéu de couro, otimamente montados e armados, fartamente municiados,
partiu, no dia 5 de julho, Lampeão, da Serra dos Parafusos, município de Paulo
Afonso, antiga Mata Grande, Alagoas, dirigindo-se para Piedade, onde, após
inúmeras violências, depredações e incêndios, efetuou em Salgadinho a prisão do
capitão Sinhô, sexagenário, irmão do Coronel Ulisses Luna, ricos proprietários
e fazendeiros.
Preso,
escorraçado, humilhado, foi o velho obrigado a assistir, em longo percurso, as
cenas mais degradantes e desumanas, entre as quais a morte de um preto e
valente cabo de polícia, de nome Jacintho, sangrado como um porco, estupros e
vergonhosas violências carnais, à vista dos pais, irmãos e maridos das vítimas.
Ao
Capitão Sinhô foi restituída a liberdade a troco de 5 contos de réis.
Colhi
esses revoltantes pormenores na soberba Vila da Pedra, onde paira imortal o
espírito fecundo e extraordinário de Delmiro Gouveia – vítima do crime mais
nefando que já praticou no Norte do Brasil, até hoje impunes os seus miseráveis
mandantes e ao qual talvez não escapasse, a influência sinistra de Lampeão.
Apesar
de avisar a sua passagem por Pedra, cortou pelo interior, tocando, no dia 8, em
Capiá, a repetir, com excessiva brutalidade, as mesmas cenas de canibalismo,
destruindo, incendiando, chibateando velhos, esbordoando moços, sem poupar
sequer as crianças.
Daí
desceu pelo município de Santana do Ipanema, em sentido inverso de uma força
policial que encontrei no dia 9 em Piranhas, pequena e estropiada com destino a
Pedra.”
....
....
MAIS
DEPREDAÇÕES E MISÉRIAS
À
tardinha desse mesmo dia[iii], aportei na bela e
próspera cidade do Pão de Açúcar, à margem do São Francisco, informando-me ali
o próprio prefeito[iv]
que o terrível capitão do Padre Cícero, depois de incendiar o automóvel e a
bagagem de um viajante, na estrada do Serrote da Furna, de danificar Moita,
nada poupando em sua passagem, dirigira-se a Olho D’Água das Flores, a sete
léguas da cidade, onde entrou, às 2 horas da tarde, como um inesperado ciclone.
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Automóvel de Antônio Meira, da STANDARD OIL_foto. |
Já
tendo cortado as linhas telegráficas ao alcance, culminou em excessos de toda
natureza, em Olho D´Água, vendo-se a 2 léguas de distância, os rolos de fumo
que subiam do florescente arraial alagoano.
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Armazém de José Alves Feitosa incendiado pelo bando. |
José
Alves Feitosa[v],
autoridade local e abastado comerciante, por felicidade ausente de sua casa no
momento da invasão, assistiu do topo de uma árvore, o incêndio de sua casa
comercial, morada e armazém de algodão, impossibilitado de socorrer a própria
família que, por coincidência, acaba de chegar, descalça e faminta, viajando
pelos matos noite e dia.
Canuto
Vilar, velho, foi chicoteado, constando até que tiraram uma orelha, enquanto
sua mulher, moça ainda, brutalmente violentada e sequestrada só obteve a
liberdade por um conto de réis. Antônio Gonçalves da Silva na fuga precipitada
com a família, teve extraviada uma filhinha de 2 anos, cujo paradeiro ignorava.
Não
era possível nem preciso ouvir mais.
Horrorizam
tais cenas, fazem rugir de cólera, trazem lágrimas aos olhos e ultrapassaram os
limites da própria ferocidade.
À hora em que estive em Pão de Açúcar, ocupavam
eles o Caboclo, visando as propriedades de Manoel Pastor da Veiga e
especialmente a viúva de João Honorino, há pouco falecido, com fama de rica e
bonita, bem se podendo avaliar a sua triste sorte.
Em
Pão de Açúcar, as famílias em sua quase totalidade haviam se refugiado em
pontos fronteiros do Estado de Sergipe. Estavam em armas aguardando o avisado
ataque, o Tiro 656, recém-formado e constituído dos melhores elementos locais,
um pequeno destacamento policial e pessoas do povo num total de 120 homens.
Com
a vazante do rio e as terras alagadas, são três apenas as entradas na cidade,
todas entrincheiradas. Estive na trincheira, correspondente à estrada real,
onde, a alguns metros de uma barricada de grandes fardos de algodão, havia uma
rede de arame farpado. De arma em punho, patrões e empregados, autoridades e
homens do povo esperavam resolutos e calmos a horda sanguinária.
Até
as 5 horas da manhã de 10, quando deixamos o posto, nada ocorreu de anormal.
Em
Propriá, porém, no dia 12, chegou a notícia de que os salteadores haviam tomado
Tapera, já a 4 léguas de Pão de Açúcar, onde incendiaram um grande depósito de
algodão, de Peixoto & Cia., de Penedo.
A essa hora, sem dúvida, o governo de Alagoas terá tomado todas as providências possíveis contra os bandidos, esperando-se que, desta vez, sob tão duro golpe, levantado o doloroso clamor de vingança e maldição dessa indefesa gente sertaneja, sejam subjugadas as feras, mas poupada a vida de Lampeão, para que fiquem apontados à Justiça todos os seus sequazes e protetores.
– MACEDO
GUIMARÃES.”
Transcrito de A GAZETE, São Paulo, 16 de junho de 1926.
NOTA:
Caro leitor,
Deste Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E
LITERATURA”, constam artigos repletos de informações históricas relevantes.
Essas postagens são o resultado de muita pesquisa, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso sejam do seu interesse para utilização em qualquer
trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é
correto e justo.
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Álvaro Guimarães. |
[ii] 8
de junho de 1926.
[iii]
9 de junho de 1926.
[iv] O
prefeito era o Sr. MANOEL FRANCISCO PEREIRA FILHO, conhecido por “Manoelzinho
Pereira”, que administrou o município de 7 de janeiro de 1925 a 7 de janeiro de
1928.
[v] Era
1º Suplente do Sub-Delegado de Polícia de Olho D’Água das Flores. Fonte: Diário
de Pernambuco, 31 de agosto de 1924, que administrou o município de 7 de
janeiro de 1925 a 7 de janeiro de 1928.
Mais uma bela reportagem sobre essa polêmica figura de Lampião. Sanguinário, Vingador, Robin Hood do sertão, Bandoleiro dentre outros adjetivos. Na verdade, deixou muitas famílias órfãs e provocou muitos traumas por onde passou. Lembro bem do reforço de fuzil 7.62 que meu avô recebeu de um militar para se defender de eventual agressão ... tempos difíceis aqueles
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