terça-feira, 22 de setembro de 2020

NO BAIXO SÃO FRANCISCO

 

Eudes de Carvalho[i]

Em pleno verão, o viajante ao descer de automóvel a serra de Paulo Afonso para Marechal Floriano[ii], tem a impressão que vai aos poucos se aproximando da boca de uma fornalha. O declive quase brusco da estrada, contornando os serrotes, esmaga topograficamente a antiga vila de Piranhas; o ar rarefeito na depressão e a radiação calorífica provocada pela massa parda líquida do São Francisco, serpenteando lá no fundo da garganta, dão um conjunto climático esgotante e verdadeiramente insuportável ao forasteiro que veio tolerando razoavelmente o calor do vale do Ipanema e dos carrascos empedrados da caatinga alagoana.

Piranhas
Marechal Floriano, fronteira Norte do Baixo São Francisco, não revela essa importante posição econômica que desfruta, e não aparenta nas suas velhas ruas ladeirosas a marcha de algum progresso. Assentada abruptamente no sopé montanhoso da margem Norte do rio, parece que só tem se limitado a conservar essa finalidade de chave de ligação entre a costa e o Alto São Francisco.

O vapor da linha de Penedo, as bases e canoas trafegam rio abaixo, fazendo o comércio que os caminhões mantêm no centro nordestino. Ferreiros, viajantes, famílias, abarrotam essas conduções da estrada líquida, com bolsas, jacás, engradados e sacos de cereais.

A bordo do vapor as refeições são estritamente sertanejas: café pela manhã, com pão de Penedo e bolachas; almoço e jantar à carne assada, farofa e arroz.

Passageiros jogam baralho, discutem política ou ficam absorvidos com a paisagem. Crianças de ventre dilatado e pernas finas choramingam pelos bancos. Ouve-se contar a história do furo do cano que conduz água da cachoeira a Delmiro, por um esperto fazendeiro no Caldeirão, dando sangue novo e enriquecendo uma terra seca demais, para estar tão próximo de Paulo Afonso.

E o vapor desce em linhas sinuosas acompanhando os canais abertos pela cheia. Deixando-se distante Marechal Floriano, atravessa-se um verdadeiro paredão de serras, no meio de águas remansosas e profundas, onde cardumes de piranhas vorazes espreitam o boi na bebida, a fim de abocanhar-lhe a cauda ou os beiços.

Entremontes. Foto: CPDOC/FGV

Entremontes, Belém e outras pequenas vilas apertadas entre os serrotes, vão se destacando nas margens do rio, com seu casario branco.

De vida pobre, agricultura resumida e rotineira, nada há de se observar. Algumas canoas pedem parada ao vapor para embarcar famílias, grades de galinhas e ovos.

Nos pequenos recantos de praia, nas reentrâncias das margens, aparecem canais de irrigação e verdes hastes de arroz, cultivados em espaços tão limitados que mais se assemelham a pequenas hortas. Surgem alagados com pujantes capinzais; mangueiras esparsas, batata-doce, jerimum e pequenos roçados.

A água doce, que passa quase na porta de casa, vai para a bilha e o feijão; dá o banho, e leva a canoa fina como uma piroga à pesca farta, ou em viagem aos povoados próximos.

Quando a cheia começa a ceder terreno, vê-se as terras baixas se acobertarem de limo e detritos vegetais de toda a espécie, que desceram no arrojo da inundação. Então as ilhotas parecem recantos ubérrimos e encantadores, na sua apresentação verde-garrafa.

A enxurrada que desagrega a terra, diminuindo seu tamanho rio abaixo, em compensação aumenta-se rio acima, com o acúmulo da areia, barros, ramagens em montões desordenados, dando a impressão muito conhecida de que “as ilhas sobrem o rio”. Nelas, grande número de aves e animais de pequeno porte se abrigam e proliferam, constituindo excelentes regiões de caça.

Pão de Açúcar, 1946. Foto: João Lisboa
Só ao demandar as encostas empedradas de Pão de Açúcar, com o alargamento do rio sente-se um morno, porém constante vento a soprar de Este, sob uma temperatura elevada. Saltando em terra, o viajante nota uma cidade florescente e bonita. Também vem a conhecer a célebre poeira que faz parte da vida de Pão de Açúcar. Seu clima não é dos mais aconselháveis, principalmente para os portadores da peste branca. E, à tarde, o vento levanta das praias do rio um areal fino que invade as suas ruas, às vezes tão espesso que se assemelha a um siroco africano em menor escala. E a poeira com um calor inclemente penetra pelas portas, caixilhos e frestas das janelas, invadindo a seara doméstica.

Contam que um forasteiro chegou à terra colocou seu cronometro no fundo de uma mala, cheia de roupas, enrolando-o cuidadosamente em um lenço. No dia seguinte retirou-o, encontrando-o parado. Levando ao relojoeiro, foi-lhe informado que a maquinaria estava obstruída pela poeira, fato absolutamente trivial na cidade....

Naturalmente este episódio está fortemente dosado; porém, de algum modo, dá ideia do que seja a poeira de Pão de Açúcar.

Propriá, Sergipe, a próspera cidade sergipana.

A partir daí sopra forte ou mais amena; os horizontes tornam-se mais amplos, e as praias, com o desaparecimento dos acidentes físicos sucessivos como até então, se estendem para dentro, como grandes savanas. Observa-se que o lado sergipano apresenta-se mais fértil, com culturas mais vigorosas e extensas, dado a sua posição Sul, a salvo dos ataques diretos do vento a impelir a areia, como na margem oposta, além de receber uma percentagem mais favorável de precipitações.

Barcas passam acima e abaixo de panos enfunados. Despontam ilhas isoladas no rio cheio, além de Traipu. Entre Porto Real do Colégio e Propriá, o tráfego é intenso e sobre as águas ao longe, como pequenas manchas brancas, apontam várias embarcações a vela.

Barca no porto de Penedo-AL. Foto: CPDOC;FGV
De Propriá, descem bacuraus (barcas noturnas) que vão a Penedo e além. Em número de vinte e cinco, aproximadamente, assistimos a carregar açúcar. Dispõem de um pequeno camarote central com três camas laterais, para conduzir passageiros a Penedo, largando às 9 horas da noite e chegando às 4 da madrugada.

Penedo, velha capital do Baixo São Francisco e antigo empório do interior alagoano, está cedendo muito terreno a Propriá, sendo fato sintomático que o mercado varejista penedense muito se abastece hoje na próspera cidade sergipana, dotada de inúmeros estabelecimentos comerciais, públicos e bancários, além de belos conjuntos residenciais.

Aproximando-se o rio da foz, as ilhas aumentam de tamanho e número, e a areia invade a grosso, os canais de navegação.

Em Piaçabuçu ele sobre uma ligeira contração na sua já enorme largura, e aí termina o curso fluvial das barcas de cabotagem.

Aspecto típico de uma feira de cerâmica na Zona do São Francisco (Penedo)

Deixa então, o São Francisco, de ser um meio de gravitação da Região. Avançam, entretanto, pelo Pontal da Barra, para Maceió ou Recife, Aracaju ou Salvador os pesados barcos de grandes velas, abarrotados de carga, produtos vários da economia local: tecidos, cerâmica, cestas, peixes secos, etc., prolongando mar afora a rota comercial iniciada na velha e ladeirosa Marechal Floriano.

 

Um porto de canoa usado no transporte de carga no Baixo São Francisco.


***

Transcrito da revista Lavoura e Criação, Recife, PE, Ano I, Nºs 3 e 4, Vol II, Setembro/Outubro de 1946. Trata-se de relado de viagem realizada pelo meteorologista Eudes de Carvalho, do Serviço de Meteorologia do Recife, em março de 1946 em objeto de serviço.[iii]



[i]


Eudes Patrício de Carvalho, Engenheiro Agrônomo e Meteorologista. Foi Chefe do Observatório Meteorológico de Olinda. Foi Diretor Técnico da Federação das Associações Rurais do Estado da Paraíba. Nasceu em Areia-PB, a 27 de dezembro de 1914. Filho do Major José Patrício de Carvalho (farmacêutico) e de Maria de Almeida Carvalho. Avós paternos Flávio Pinto de Carvalho e Domitila Patrício de Carvalho. Avós maternos: Francisco Galdino de Almeida e Rosa Amélia de Almeida. Casou-se, em 1940, com Creusa Moreira da Costa (Creusa Moreira de Carvalho, após o casamento).

[ii] Em 17 de outubro de 1939, o município de Piranhas passou a se chamar Marechal Floriano, pelo decreto-lei federal nº 1686, voltando à antiga denominação (Piranhas) em 17 de setembro de 1949, pela lei nº 1473.

[iii] DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 21 de março de 1946, p. 5.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

DONA ROSA

 

Coelho Cavalcanti[i]

A sua história, ou antes, a história do seu heroísmo é tradicional.

Nasceu na velha cidade de Alagoas, baluarte dos holandeses dos tempos coloniais, então capital da heroica província do mesmo nome.

Busto de Dona Rosa da Fonseca

O marido, homem incógnito, que nunca saiu dali, e viveu da sua profissão de pescar na lagoa Manguaba, morreu lhe deixando os filhos na primeira idade.

Pedindo a uns e pedindo a outros, conseguiu ela viessem eles para o Rio, partindo os mais taludos para as fronteiras do Paraguai, àquele tempo da guerra.

Os que não se acabavam no campo da luta, saíram de lá consagrados. Dentre eles, Deodoro, que fundou a República, e lhe foi primeiro Presidente.

O Barão de Alagoas, ídolo de sua classe, não foi menor do que esse irmão generalíssimo.

Hermes da Fonseca, o pai, um talento prodigioso, morreu marechal, honrando a Pátria e o Exército.

Pedro Paulino, Senador e Governador de Alagoas, de quem me honro de haver sido amigo na minha jovem idade, foi o exemplo edificante do patriota, do homem público, do homem de bem.

Os outros, tombados às carabinas e às lanças do exército selvagem de Solano Lopez, diz o testemunho histórico que passaram para a eternidade pela ponte de Itororó.

Volveram trinta anos de República.

O povo alagoano, em sinal de sua indelével gratidão, lembra-se de erigir, numa das praças públicas de sua capital, a antiga Praça do Livramento, uma estátua a D. Rosa.

Fizeram-no debaixo do mais frenético entusiasmo cívico, o maior que ainda se espoucou nas plagas quietas do sururu de capote.

Dizem todos, e ainda resta muita gente que a viu, que a ilustre matrona, mãe de tantos filhos heróis, não primava, em absoluto, pela beleza plástica. Tinha, pelo contrário, uma cabeça enorme, uns fios de barba no mento, uma boca enorme, um nariz enorme.

O escultor copiou a sua fisionomia tal qual a vira num retrato fidelíssimo que lhe puseram às mãos.

Conta-se o seguinte: que depois dos festejos, na respectiva inauguração em homenagem à insigne velha, posta em bronze, um matuto alagoano, o clássico almocreve, de chapéu de baeta desabado, camisa fora das calças, contemplou longo tempo a estátua de D. Rosa, olhou-a muito de fito, muito mesmo, de braços e cabeça de banda.

Seguidamente, como se dissesse, porventura, o melhor discurso daquele dia ferial, filosofou:

- É feia, mas pariu bonito!!!!

E deu volta.

______________

Transcrito da Revista das Revistas, RJ, 23 de outubro de 1919. Publicamos em memória do nascimento de Dona Rosa da Fonseca, ocorrido em 18 de setembro de 1802. Para saber mais, acesse https://www.historiadealagoas.com.br/uma-mae-alagoana-na-historia-do-brasil-d-rosa-da-fonseca.html


[i]


João Francisco Coelho Cavalcanti, conhecido por João Barafunda, advogado e poeta. (São Luiz do Quitunde-AL, 1874 – Rio de Janeiro, 1938). Filho do poeta satírico Joaquim da Cunha Cavalcanti e de Belmira de Alcântara Menezes Cavalcanti. Bacharelou-se em direito pela Faculdade do Recife. Poeta satírico, seus versos e modinhas eram cantados pelo interior do Estado, sendo entre as modinhas a mais popular aquela denominada Genura. Teve uma vida errante e cheia de aventuras, vagando por alagoas, até ser ameaçado de morte por causa de sátiras violentas. Exerceu advocacia e foi Juiz de direito em Passo Fundo (RS), de onde saiu por razões políticas, e refugiando-se em Rivera, Uruguai. Jornalista no Amazonas. Internado no Hospício da Praia da Saudade, em 1923, no Rio de Janeiro. Espírito altamente independente de zombeteiro panfletário. Pseudônimos: Amália Peitiguary e Coelho Cavalcanti. Obras: Ouro de Lei, 1918; Carola Maluca, Rio de Janeiro, 1919 (prosa); Pontas de fogo, Rio de Janeiro, 1922 (crônicas); Gigantes e Pigmeus. Colaborou no Correio do Povo, em Porto Alegre e em O Momento. Fonte: ABC DAS ALAGOAS. Francisco Reynaldo Amorim de Barros.

 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A SECA NO SERTÃO – UMA CARTA AO EXMº SR. DR. EUCLIDES MALTA

Bráulio Cavalcante


Bráulio Cavalcante                     

Adorável região dos meus tempos infantis, das minhas crenças que fugiram; das minhas esperanças que se foram! Aqui pompeou a luz radiosa de mil sóis fecundos; aqui pairou a candidez de mil luares; aqui sorriu a Primavera e desceu o santo orvalho às catedrais das florestas onde brincava a sereníssima brisa; aqui a vida se engrandeceu, prosperou.

O agricultor rasgando o seio da terra, o homem da indústria sonhando novos horizontes, o comerciante movimentando novos produtos, bem poderiam transformar este torrão no mundo do Progresso, se a Natureza não viesse agora torná-lo em mundo dos canteiros.

Aqui reina o Mal. Gane, goelas abertas, a Fome.

As calamidades da Natureza inspiram uma grande piedade!... Setenta e Sete[i] no Ceará teve um eco nos arraiais da Corte, que transpôs mesmo às terras de Camões; – é justo que o mesmo eco irrompa desta dor igual, a fim de que lhe advenha um remédio!

Sublime caridade a do povo do Recife, socorrendo daquele clamor, aos irmãos do Norte, em primeiro auxílio na inspiração da mocidade acadêmica!

......

Aqui nos sentimos descer um sudário de morte!...

Não devemos isolar o drama do cenário, na frase de Lamartine, esboçamos em ligeiros traços, aos que não conhecem este amado torrão, o quadro aonde a Miséria Humana veio cair.

A cidade de Pão de Açúcar, demorando nas margens do caudaloso S. Francisco, é uma cidade mantida pela indústria agrícola e pastoril, sendo que esta tem sido sempre entregue a um sistema semisselvagem. Paralisadas que foram elas pela absoluta falta de chuvas, como se desenvolver o progresso fabril, embora pequeno?

......

Agora abre o sol incendiado pálio soberano, o grande sol em cáusticos aberto, implacável na sua tirania!

No centro da cidade, à Rua do Comércio, redemoinha o povo em feira, no struggle for life, algazarreando, em pensamentos diversos, kaleidospicamente andando em várias direções.

O calor sufoca. A ardentia mórbida fere a epiderme, em nervosismo. Prometheo talvez esteja do alto do sol, radiante no orgulho de tanto fogo!

É a luz implacável que arruinou campos e campos, que incendiou os troncos, os caules, os colmos, os estipes. No movimento da feira, no tumultuar incessante, a Miséria rasteja.

Ela desceu dos montes com o abandono das plácidas choupanas e se chamou – Emigração; desolou os vales, arruinou os lugarejos, acompanhou passo a passo o retirante, se multiplicou, se dividiu em perseguição de cada emigrante que fugia, de cada sertanejo que arribava!

Os fenômenos meteorológicos armaram aqui a Natureza para uma luta inglória contra o sertanejo! Luta implacável!

A Natureza suplantando o homem pela tempestade, pelo raio, pela inundação, em uma palavra, pela potência assombrosa de todos os seus elementos, tornou-se agora o legendário Egis na desolação dos campos e das cidades.

....

Mas cheguemos à cena que tanto nos inspirou. Ela terá traços ligeiros, mas inspirará demoradas impressões.

No dia 9 de março corrente, na feira desta cidade, passava a procissão dolorosa dos mendigos no anseio do vintém... Eram cenas possuindo algo de dantesco...

Oh! Sertão adorável de tanto sorriso e felicidade extinta, eu vos lamento!

Na retina de cada mendigo, brilha a saudade perene de uma casinha abandonada que se ficou em pleno cascalho combusto, paira a dolorosa imagem de uma ventura que se foi.

Nos fenômenos sociais distinguem-se três lástimas: o jogo, o roubo, o assassinato.

Agora tudo isso é uma consequência da Miséria.

Já não é somente a miséria do espírito, mas a torpe miséria material. Falo desse organismo que suportara as intempéries do tempo e as inclemências do trabalho caído agora em plena feira de uma cidade onde já existe civilização. E o homem que suportara as iniquidades das forças superiores da Natureza, morre à mingua de um pedaço de pão ou de carne!

Contam-se cenas horrorosas da Fome.

Fulgura o talento de Rodolpho Teóphilo quando se expande sobre as calamidades das terras cearenses: o gênio de Guerra Junqueiro, canta se referindo à dita Miséria!

Camões é um grande símbolo que não morrerá nunca mais!...

A mulher sertaneja tem, é certo, compreendido que a santa Caridade é um dever, é uma justiça, - mas é preciso socorro maior!

....

Abre o candente sol na safira dos céus. Campos e serras tudo, tudo está desolado...

Foi a cena tremenda, implacável, que por aqui passou.

Ela tudo crestou, tudo incendiou.

Nos montes nus, caído pela inanição, o gado sofre as consequências da peste e os cadáveres que deveriam ser queimados para que se evitasse a nociva infecção atmosférica -  serve muitas vezes para alimento do sertanejo faminto!

Debanda em todos os caminhos, assombrada, esquelética, sedenta, faminta, juma legião de mártires.

É talvez o doloroso trabalho do aperfeiçoamento, a dolorosa lecção...

***   ***

Recebei Excelência, a crônica negra que a minha pena acostumada às puerilidades de um lirismo inglório, traça perante a mágoa que empolga o povo de minha terra.

Pão de Açúcar, 11 de março de 1908.

 

Bráulio Cavalcante.

 

 

Pão de Açúcar, 1910.


Carta de Bráulio Cavalcante endereçada ao Governador Euclides Malta, contra cujo governo se debateria quatro anos depois, pagando com o preço da própria vida. Transcrito do jornal Gutenberg, Maceió, 24 de março de 1908, p. 3

http://memoria.bn.br/DocReader/809250/8477



Bráulio Guatimozim Cavalcante. Filho do Capitão José Venustiniano Cavalcante e de D. Maria Olympia. Nasceu em Pão de Açúcar-AL, no dia 14 de março de 1887, na casa nº 23 da rua da Matriz (hoje Avenida Bráulio Cavalcante, nº 209). Faleceu em 10 de março de 1912, na Praça dos Martírios, em Maceió, de um ferimento penetrante na linha axilar posterior direita, no quarto intercostal, recebido quando realizava um comício em prol das candidaturas do Cel. Clodoaldo da Fonseca e do Dr. Fernandes Lima.



[i] Refere-se à Seca de 1877, a mas catastróficas de que se tem notícia.

 


domingo, 6 de setembro de 2020

SÃO FRANCISCO, RIO MISSIONÁRIO

 

Rubens Rodrigues dos Santos[i]


Embarcamos, ao anoitecer, numa canoa de tolda que se apresta a deixar Piranhas, rumo à cidadezinha de Pão de Açúcar. Mal nos instalamos por cima de alguns sacos de algodão, começam os preparativos da partida. Soltam-se as vergas, desfazem-se as cordas que prendem os panos, içam-se os traquetes, recolhe-se a prancha e desatam-se as amarras. E eis-nos em viagem, descendo outra vez o São Francisco.

A habilidade do mestre de bordo assombra-nos. Navegamos no escuro, contra o vento, por sítios eivados de obstáculos. Num frio golpe de espera, pedras enormes rasgam continuamente o ventre deslizante do rio. Remoinhos e corredeiras levam no bojo a mentira e a pressa das águas. Aqui e ali o canal se estreita, apertam-se por entre barrancos escarpados, dobra-se, volteia morros, e novamente se enrosca, indeciso, difícil. Mas, mesmo assim, o mestre prossegue sem dificuldades, bordejando de um barranco a outro, decompondo com o ardil de suas manobras a oposição constante da brisa.

Deitados de costas sobre a carga, olhamos o espaço e sentimos a grandiosa quietude do que é eterno. O céu abre-se para receber nossos devaneios e as estrelas transformam-se em sonhos de luz. Um silêncio macio envolve-nos em fofos abafos de alcovas. Ouvimos somente o ranger das vergas e o leva marulhar das águas cortadas pela proa. Embala-nos a doce mudança de inclinação que acompanha a virada dos panos. As pálpebras pesam-nos. Cerram-se os olhos para a noite profunda que lá no alto é continuamente revolvida pelos mastros e pelas vergas.

Canoa Filha da Floresta, Piranhas, 1950. Acervo Marcos Mendonça

***   ***  ***

Estamos em Pão de Açúcar, aguardando uma oportunidade para prosseguir viagem rio abaixo. A lancha de carreira, que três vezes por semana desce até Penedo, partirá somente depois de algumas horas, o que nos deixa tempo de sobra para visitar alguns carpinas fabricantes de canoas e com eles aprender a terminologia descritiva das embarcações utilizadas em todo o Vale do São Francisco.

Seguimos pela praia, e aqui e ali vamos encontrando, na parte mais alta do barranco, os sítios onde se constroem canoas de tolda, chatas e taparicas. Não há propriamente um estaleiro: as peças são trabalhadas sobre a areia e depois armadas ao ar livre, sem proteção alguma.

Porto de Pão de Açúcar, 1948. Foto J. Lisboa

A menor embarcação encontrada no baixo S. Francisco é a canoa de um pau só, ou taparica, que eles constroem escavando e arredondando um tronco de madeira de lei: Arapiraca, amarelo e baraúna. A proa e popa são afiladas a capricho, de maneira a se obter uma quilha cortante, que avance com facilidade sobre a água. Tem de vinte a trinta palmos de comprimento e é impulsionada tanto à custa de remo ou de varejão, como também da loló, um pano rústico, de formato quadrangular, que permanece esticado graças ao mastro vertical e à verga, assentada obliquamente.

Essas embarcações recebem ainda os nomes de charita e de canoa de pescador, principalmente quando o seu tamanho chega a aos quarenta ou cinquenta palmos, ou então quando elas sofrem algumas alterações destinadas a aumentar-lhes a largura. Está neste caso a prática comum de abrir de ponta a ponta uma taparica e assentar-lhe entra as metades uma tábua. Fixa com cavername de raiz de baraúna, de maneira a duplicar-lhe a capacidade de transporte.

Uma charita transpondo o Morro do Morim, Limoeiro.

No baixo São Francisco encontram-se também embarcações de tamanho médio, denominadas chatas, com um comprimento que varia a setenta palmos. Têm fundo pouco abaulado e são construídas à custa de cavername de madeira rija e de uma rombeação de tábuas de cedro. Sua capacidade é apreciável, sendo utilizadas comercialmente no transporte de cereais, açúcar, algodão e farinha. Impulsiona-as o vento soprando em dois grandes panos triangulares, um aberto no mastro de vante e outro no mastro de ré, um estirado para bombordo e outro para boreste, ao longo de vergas que se projetam por sobre a água.

Uma chata rio acima. Foto: CPDOC/FGV

A maior embarcação a vela encontrada no baixo São Francisco é a canoa de tolda, com oitenta, noventa e até cem palmos de comprimento. Sua capacidade de transporte é superior à da chata; e ela é utilizada, como esta, na condução de gêneros alimentícios, matérias-primas e utensílios diversos.

É construída com cavername e rombeação de madeiras de lei. Sua proa, afilada, é coberta por uma armação arqueada de tábuas ou de palha, que se estreita, acompanhando o estreitamento do costado. Sob esta tolda, de dois metros de largura por uns quatro de comprimento, abrigam-se mercadorias perecíveis, tripulantes e eventuais passageiros, que se amontoam num abafamento e num mau cheiro peculiares aos porões de navios. Este tipo de embarcação também é impulsionado pelo vento sobre dois grandes panos de formato trapezoidal, os traquetes, um estendido no mastro e nas vergas de proa, outro desfraldado à ré.

Além dessas embarcações à vela, no trecho de rio que vai de Piranhas à foz, trafegam lanchas de motor “diesel” para passageiros e cargas[ii]. São de propriedade particular, vindo daí, certamente, a regularidade e os bons serviços que prestam às populações do baixo São Francisco.

A Icaruana em Penedo. Foto: Pierre Verger

A Comissão do Vale, em dezembro de 1958, encampou os bens da empresa possuidora dos dois maiores barcos em tráfego na região: vapores movidos por hélice, casco de chapa, mas obsoletos e completamente estragados. Um deles, o Penedinho, foi encostado como irrecuperável; o Comendador Peixoto[iii] permanece imobilizado em reparos que se eternizam. Isso significa que a CVSF nada faz em benefício do transporte de passageiros e cargas neste trecho do rio, a não ser remunerar – com um total de 65.000 cruzeiros mensais – os 19 funcionários inativos da organização que encampou.

Cabem aqui algumas indagações: não sabia a Comissão do Vale do São Francisco que esses dois barcos eram velhos demais e irrecuperáveis? Se sabia, por que encampou a empresa? Por que não constituiu uma nova companhia de transportes, bem aparelhada, possuidora de lanchas modernas, adquiridas com o dinheiro disponível para compra desses dois autênticos ferros-velhos?

E preciso que se apurem quais as verdadeiras razões e quais os responsáveis por essa negociata lesiva aos interesses da região e do país.

...

Partimos de Pão de Açúcar rumo às cidades de Propriá e Penedo, grandes centros produtores de arroz do Baixo São Francisco. A nossa lancha é veloz e avança com a força de uma cunha que se cravasse continuamente na distância. O rio atira-se, livre agora dos obstáculos. De um lado e de outro, altos barrancos de relva elevam-se a prumo e logo se arredondam em colinas  revestidas de vegetação abundante. O verde domina a paisagem. Um verde lustroso, nédio, contínuo, espalhado a perder de vista. Um verde nascido de terra forte, de terra criadeira, de terra dignificada de húmus. Ficou para trás a palidez da  e do agreste e agora as cores brotam vivas na face robusta da zona da mata.


Traipu, AL. Foto CPDOC/FGV.


Traipu surge à nossa frente, encarapitada no alto de um promontório audacioso. Aproxima-se, amplia-se, revela-se por inteiro, passa lentamente ao nosso lado, e logo desaparece lá para trás.

As águas continuam lisas, convidativas ao corte da quilha, e a brisa chega tão mansa quanto um toque de plumas. Mastros e velas de embarcações que vão e vêm definem a geometria do rio: velas quadradas, triangulares, trapezoidais; mastros perpendiculares e mastros oblíquos.

Propriá e Penedo são as duas irmãs venturosas da foz. Cidades prósperas, têm sua economia estabilizada graças à cultura de cereais, principalmente de arroz, cujo plantio é feito nas ilhas e nas margens inundadas periodicamente, ou então nas lagoas formadas na época das enchentes. À medida que as aguas recuam, as mudas vão sendo espetadas na terra coberta ainda por um palmo d’água.

Cultivo do arroz: arranque do canteiro para plantio em local definitivo.

Esse trabalho de transplante do arroz é feito por sua maior parte por mulheres e crianças, que recebem o vil pagamento de vinte ou trinta cruzeiros por dia de trabalho. Maltrapilhas, sujas, passam horas e mais horas na umidade da lama, vestes encharcadas, mãos e pés engelhados e endurecidos. Frequentemente, buscam no álcool a energia e o conforto reclamados pelo seu organismo depauperado. E assistimos, então, a cenas constrangedoras: mães e filhas compartilhando na mesma garrafa de aguardente! Crianças de dez, doze, quinze anos, magras, esfarrapadas, sujas, trabalhando bêbadas nos arrozais de Propriá.

Canos de diversos tipos no porto de Propriá-SE.


Penedo. À esquerda, o Comendador Peixoto. À direita, o "Penedinho"

Chegamos, finalmente, à foz do São Francisco. E assim terminamos a nossa jornada.

Durante esses dois meses de viagem, experimentamos as mais variadas emoções: enlevo diante das paisagens deslumbrantes, comoção diante de cenas tristes, esperança diante de algumas promessas, revolta diante da incúria dos homens.

Sentimos tudo isso. Mas que dizer agora, neste final, como fecho de uma narrativa assim tão variada? Discorreremos sobre o estado deplorável de um vapor? Narraremos a desdita de um barqueiro? Falaremos do abandono das terras ribeirinhas? Não!! Não, porque isso está condicionado à atuação dos homens. Nosso comentário final deve referir-se, portanto, aos administradores e políticos que têm em mãos os meios para agir na área que acabamos de percorrer.

A lancha Tupan no porto de Propriá-SE

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NOTA:

Caro leitor,

Sob o tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, este Blog exibe postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo. Segue abaixo, como exemplo, a forma correta de referência:

Sugestão de registro de referência:

SANTOS, RUBENS RODRIGUES DOS. SÃO FRANCISCO, RIO MISSIONÁRIO. Rio de Janeiro, outubro de 1959. Disponível em: http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/09/sao-francisco-rio-missionario.html. Acesso em: dia, mês e ano.

 

 

 

 



[i]


RUBENS RODRIGUES DOS SANTOS. Engenheiro, jornalista, cineasta. Faleceu em São Paulo, a 27 de agosto de 2000, aos 75 anos, quando trabalhava do jornal O Estado de São Paulo. Em 1959, conquistou o Prêmio Esso de Jornalismo com a reportagem Diário de um flagelado das secas.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_19/9932

 [ii] A essa época, faziam a linha Penedo-Piranhas as lanchas da Empresa Fluvial S. Barreto Filho (depois Empresa Fluvial Tupan, de Sebastião e Luiz Barreto). Inicialmente, com a lancha Tupigy e Tupy, cujo formado original não contemplava a torre de comando, adotada somente no início da década de 1970. A Tupan veio depois, tendo feito sua primeira viagem em julho de 1956. Será esta, provavelmente, a lancha a que o autor se refere.

[iii] O Comendador Peixoto ainda navegou até meados da década de 1960.









A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

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Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


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PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

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Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia