sexta-feira, 30 de setembro de 2022

TRAÇOS A ESMO (A MULHER QUE PEDE ESMOLAS PARA SANTOS)

 

J. Calisto[i]

 

Tiradores de esmolas p/Festa do Divino.
Foto: Luiz Bartolomeu Calcagno.

A mulher que pede esmolas para santos é, ordinariamente, velha. Roupas fartas, humor atrabiliário, uma expressão de dignidade imensa, não raro um molho de cabelos e uma verruga na venta.

Anda pelas ruas, pelas feiras e pelas estradas, penetra familiarmente no interior das casas, conhece remédios que, com a ajuda de Deus, não têm rival em substância, sabe histórias, casos para contar a propósito de tudo, cura de quebranto, dor de cadeiras, espinhela caída, com benzeduras e rezas. Tem orações para todas as moléstias.

Arroga-se uma grande importância, emprestada pelas figuras de barro, de madeira, de gesso, de papel, que lhe povoam o oratório pequeno, pintado de amarelo, com duas sentinelas de cera à porta, espetadas com gargalos de garrafas.

Por aqui, por ali, anda às pressas, a explorar a superstição alheia, agarrada a uma caixa de pau ou de folha, que tem ao fundo uma estatueta grosseira ou uma litografia desbotada, entre flores de papel e de lata, sujas, poeirentas, torcidas, requeimadas ao sol.

É de ver a atitude impagável com que apresenta aquilo aos fiéis que a rodeiam. Respeitosos, de chapéu na mão, estes se chegam com gestos gravicômicos, chuchurreiam um beijo aos pés da imagem que ali está e, curvados, piedosos, depositam um níquel na sacola que se escancara a um lado.

É uma profissão rendosa.

Entre os múltiplos retratos de personagens celestes que lhe enchem o altar, a mulher que pede esmolas possui sempre um santo de resistência, espécie de oráculo da vizinhança, hábil e conhecido fazedor de milagres, com uma grande autoridade que lhe dá a velhice.

Muitas vezes vem de outras gerações, pertencem a uma avó ou bisavó da proprietária atual, que também explorava a indústria santeira, com algum êxito; e já naqueles tempos remotos se revelava um razoável milagreiro. Com os anos, naturalmente, cresce a virtude. Contam-se fatos a respeito dele, citam-se exemplos, que são espelhos, dizem. É aquele que, naquelas redondezas, se recorre em caso de necessidade. Fazem-lhe oferendas, compram-se os seus favores com laços de fita, toalhas bordadas, velas de sebo, dinheiro. As promessas cumprem-se, que ele quase nunca deixa de tomar em consideração a súplica dos crentes. Dor de dentes, engasgos, reumatismo, abcessos, feridas, torcicolos, mal de empalamados, doenças de olhos, dentições complicadas, tudo é motivo para importunações ao orago e consequente paga à criatura que dele vive.

O santo recebe ex-votos dos fiéis curados – muletas abandonadas, cabeças de barro, pernas, braços, seios, outros órgãos. Isto, porém, oferece-se de preferência, por não ter valor nenhum, à Santa Cruz de beira de estrada, também milagrenta, sempre enfeitada de ramos e de flores, erguida num chão muito limpo, varrido a vassourinha.

A mulher que pede esmolas faz festas com uma parte do dinheiro arrecadado. São novenas em que se cantam coisas terríveis, numa língua atrapalhada e esquisita, benditos medonhos. No terreiro da casa, botequins de folhagem, onde se vendem doces e cachaça. A zabumba a atroar, acompanhando a irritante música dos pífaros. O foguetório estalando no ar. E o povaréu agrupado em torno da mesa do leilão, onde se erguem montanhas de frutos, pencas de ovo pintados, bolos, guloseimas, trabalho de paciência, como a clássica e ingênua caixinha de segredo, enfeitada de papel de cor, e cheia de castanhas assadas. Em baixo, o guinchar de bacorinhos amarrados, de mistura com galinhas, patos e outros bichos.

É ali que a mulher que pede esmolas para santos encontra uma de suas principais fontes de receita. Aquilo deixa muito. Ora, se deixa! E reproduz-se com frequência porque, além dos trabalhos do mês mariano, que rendem bastante, ela festeja o São Sebastiao em janeiro, São José, em março; o Divino Espírito Santo em maio; Santo Antônio, São Pedro e São João em junho; São Francisco em outubro; Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia em dezembro, além de outros menores.

É uma profissão recomendável, nestes tempos de crise, quando tudo está em apuros, o comércio meio escangalhado, a lavoura quase morta.

Muito rendoso meio de vida.

É só arranjar uma caixa, um oratório, meia dúzia de estampas e uma verruga no nariz, coisa que dá certo respeito e importância a uma pessoa que deseje dedicar-se à prática da exploração do carolismo.

 

 

 

Transcrito do jornal O ÍNDIO, Palmeira dos Índios, 13 de março de 1921, coluna TRAÇOS A ESMO. Disponível em : http://memoria.bn.br/DocReader/720925/18

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Caro leitor,

 Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] J. Calisto, pseudônimo de Graciliano Ramos. Nasceu a 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo, Alagoas. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1953. Filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Barros Ramos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

TRAÇOS A ESMO (UMA CASA SERTANEJA)

 

J. Calisto[i]

 

Sertão nordestino. Desenho de Percy Lau.

Aqui vai, para variar, a descrição de um antro muito meu conhecido, no alto sertão de Pernambuco. Isto não tem importância nenhuma. De resto, o que desta coluna se escreve nunca tem importância. Mas enfim pode ser que algum leitor tenha necessidade de viajar por aquelas regiões meio selvagens; e sempre é bom saber onde vai cair.

É uma casa baixa, de taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto, chato, acaçapado, quase sem declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e sujo; negras as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se, deixando ver aqui e ali o frágil madeiramento que serve de carcaça ao prédio.

Três portas de frente e duas janelas. As portas têm altura suficiente para que possa entrar uma pessoa de mediana estatura sem curvar-se. As janelas, aberturas pequenas, quase quadradas, estão situadas lá em cima, perto da telha. Para atingi-las, trepa-se a gente a um caixão. Tem dobradiças de couro e não tem fechaduras – trancam-se com um pedaço de pau roliço, envernizado pelo uso, que se introduz em uma cava aberta no portal, presa a um cordel amarrado a um prego. As portas fecham-se interiormente com taramelas.

Em frente há um alpendre, o copiar, sustentados por esteios baixos, grossos, resistentes ao caruncho. Limita-o uma plataforma que se ergue meio metro acima do solo, de terra solta e pedra. É ali de dormem alguns hóspedes sem importância, na desagradável companhia dos bodes, que lá vão fazer idílios.

Na sala principal há três redes armadas em paus recurvos que saem do esqueleto das paredes. A um canto, um enorme traste de pernas descomunais, que atravessam uma tábua de dez centímetros de espessura, magnífico para rasgar a roupa de quem nele se senta. Aqui e ali, em tornos de madeira, à guisa de cabides, penduram-se chapéus de couro, gibões, perneiras e peitorais. Alguns sacos e surrões de cereais substituem as cadeiras que faltam. Enormes cordas de laçar, cabrestos de cabelo, encerados, cangalhas, alpercatas, prodigiosos sapatões de montar, com grossas esporas de rosetas incríveis, espalham-se desordenadamente.

Sobre uma tosca mesa, lavrada a enxó, um oratório envolto em uma toalha vermelha, de florões. Há dentro dele uma litografia de Nossa Senhora, desbotada, em caixilho sem vidro, um crucifixo, alguns santos de barro e de gesso, enfeites de papel, uma lamparina e uma vela benta. Na mesa, uma gaveta. Na gaveta, um museu – rolos de cera, novelos de barbante, agulhas para sacos, pedaços de sola, um tabaqueiro, um couro de fazer rapé, um martelo, uma torquês, sovelas, chifres de veado, pontiagudos, pacotes de orações, sementes, bolas de sebo, látegos, chocalhos, pregos, fivelas, um macete e um Lunário Perpétuo.

À direita de quem entra, há um cubículo com um monte de algodão.

À esquerda, um salão mal-assombrado, onde se misturam, numa confusão de mil diabos, montanhas de queijos, cestos, caçuás, samburás, rolos de fumo, cuias, cabaços, gamelas, selas de campo, cavaletes, pedras de amolar, arame farpado, facões, espingardas de pederneira, machados, foices e enxadas.

Da sala principal segue para os fundos um corredor estreito e sombrio, preto de pucumã e teias de aranha. Dão para ele dois quartos fronteiros. Um, das meninas, nunca se abre. O outro, dos donos da casa, deixa ver, através da porta meio aberta, algumas arcas, onde se aferrolha o tesouro da família, e uma cama baixa, sem colchão, com o lastro de couro de boi, em cabelo, gasto pelo atrito de algumas gerações que por ali se fizeram, viveram e morreram.

O corredor desemboca na sala de jantar. Há ali uma pequena mesa, que raramente se forra. É toda escalavrada, cheia de altos e baixos, pelo hábito de picar-se fumo em cima dela, a vaca de ponta. Ladeiam-na dois bancos medonhos. Perto, uma velha máquina de costura em cima de um caixão vazio. À entrada, um pote sobre uma forquilha em triângulo, plantada no chão. Nas pontas das varas que saem das paredes, candeeiros de folha, pendurados pela asa, desses de torcidas de algodão em rama, negras, fumegantes e fedorentas.

Com a sala de jantar confinam a cozinha de um lado, de outro o quarto das criadas, três pretas que foram escravas e que ali continuam, porque não sabem o que fazer da liberdade. Uma delas dá-se ao lucho de dormir em uma cama de varas, a isidora, erguida sobre quatro estacas pregadas no chão. As outras dormem em esteiras. Têm caixas de pinho, onde guardam a roupa, em combucos cheios de bugigangas – espelhos, voltas de conta, alfinetes, frasquinhos de perfume, anéis, brincos, pulseiras e rosários.

A cozinha é de proporções exíguas. Uma grossa camada de fuligem dá-lhe um novo teto, sobreposto ao primeiro. Um jirau, a que frequentemente se bate com a cabeça, substitui a despensa. Amontoam-se neles mochilas de sal, réstias de cebola, espigas de milho, botijões de manteiga. Mantas de carne, linguiças, panos de toicinhos pendurados a uma corda que vai de uma parede a outra. O fogo é feito no chão, entre grandes pedras dispostas em trempe. A um canto, um montão de cinza e carvões apagados. Todos os dias, uma preta, de rastos, varre aquilo a vassourinha. Frigideiras, caldeirões, panelas, marmitas de folha, ralos, canecos, abanos formam o sistema planetário de um tacho velho, rachado, cheio de nódoas verdes. Em cima de um pilão deitado um gato ronca. Junto ao lume, há quase sempre uma velhota acocorada, a acender o cachimbo de canudo de taquari com uma brasa espetada a um garfo. Encostada a uma das pedras da trempe, uma banda de casca de coco com um cabo de pau. É a quenga. Na parede, o caritó, pequena cava em forma de concha, onde se guardam objetos miúdos – pedras de sal, pontas de cigarro de palha, dentes de alho, cordões, retalhos de pano, agulhas, peles de fumo que se oferecem a Santa Clara, a troco de pequenos milagres caseiros.

Uma janela baixa, onde se senta um rapagão indolente, a esquentar-se ao fogo, dá para o quintal, nu, com um barreiro cheio de água turva, coberto pela sombra escassa de uma árvore morta.

Junto ao quintal há um jardim povoado de algodoeiros, verduras, vasos com alecrim e losna, urtigas e até flores. Cobre-o uma imensa ramagem de uma baraúna secular.

Do lado oposto, três currais de cercas eternas, mourões gigantescos. Um pouco afastado, o chiqueiro dos bodes.

Em frente, um grande pátio branco, limitado por árvores sempre verdes, que roubam um pouco a vista dos montes distantes, levemente azulados à luz crua do sol.

No terreiro, no pátio, na calçada, confraternizam galinhas, bacorinhos, cabras, carneiros, alguns cachorros com extravagantes coleiras feitas de rodelas de sabugo queimado, enfiados em pedaços de embira.

Aí está a descrição de uma casa sertaneja, sem tirar nem por. Não aconselho o leitor a que se vá alojar nela. Mas há gente que mora ali, o que prova que o homem é um ser capaz de adaptar-se a tudo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Transcrito do jornal O ÍNDIO, Palmeira dos Índios, 1º de maio de 1921, coluna TRAÇOS A ESMO. Disponível em : http://memoria.bn.br/DocReader/720925/46

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Caro leitor,

 Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] J. Calisto, pseudônimo de Graciliano Ramos. Nasceu a 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo, Alagoas. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1953. Filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Barros Ramos.

domingo, 25 de setembro de 2022

UMA HISTÓRIA

 

De Isabel Marsiglia de Oliveira[i]

Igreja e ruinas do convento. Ilha de S. Pedro-Porto da Folha-SE


Linda manhã de abril. O caudaloso rio São Francisco desliza, belo e sereno, dividindo Sergipe e Alagoas, então províncias, onde as seguintes cenas foram desenroladas.

As primeiras chuvas reverdeceram os montes e fizeram desabrochar as flores silvestres. Sabiás, canários, galos-de-campina, desferiam acordes maviosos, glorificando, com a natureza engalanada, o sublime Artista – Deus!


Da espaçosa casa do fazendeiro de “Timbaúba”, à margem direita do rio, saiu uma linda jovem, acompanhada de sua não menos jovem escrava. Da margem oposta, uma canoa, impelida pelos robustos braços de um escravo, conduzia Luiz, filho do rico fazendeiro de “Boa Nova”.

A embarcação ancorou no porto da fazenda “Timbaúba”, onde já estavam à espera a jovem Inez e sua escrava. Inez, filha única dos proprietários da “Timbaúba”, amava desde a infância Luiz, sendo igualmente amada. Partidários, porém, de políticas opostas aos pais, apesar do parentesco, se odiavam. À medida que no coração dos filhos a seiva do amor se desenrolava, o ódio, no coração dos pais, maior domínio fazia.

Sabendo a oposição que os pais faziam ao casamento que tanto almejava, Luiz pedira a Inez uma entrevista. Estavam, assim, reunidos a combinar a fuga para a cidade próxima, onde se uniriam perante o altar de Deus, quando dois gritos foram ouvidos. Gritos de ódio, que fizeram estremecer os amorosos jovens! Por coincidência, passava, perto da margem, o pai de Luiz, em uma canoa, ao mesmo tempo que o de Inez, com alguns hóspedes, saía à caça. Vendo os filhos a conversar, todo o ódio se levantara e fizera com que soltassem duas exclamações terríveis. Inez foi conduzida à casa, Luiz seguiu com o pai, e os escravos receberam logo tremendos castigos.

Seguiram-se dias de provações terríveis para aqueles corações amantes. Quinze dias depois, ao fazer a viagem de regresso ao porto de Penedo, no pequeno vapor “Maceió”, Luiz, triste e abatido, acompanhava o pai. Ia tomar o vapor que passava para o Recife, pois seu pai, a fim de impedir o casamento, o obrigara a seguir a carreira sacerdotal.

Meses mais tarde, Inez, na igreja do Convento de São Pedro, recebia o hábito de beata (Ordem que permitia viver fora da comunidade). Por esse tempo, Luiz cursava o primeiro ano no Seminário de Olinda.

No pátio exterior do Convento de São Pedro, índios, catequizados pelo abnegado franciscano Frei Dorotheo, fincavam mastros enfeitados. Era a Festa de Reis, célebre em toda a margem, e que levara à pequenina povoação numerosas famílias.

Uma grande canoa de tolda subia o rio em direção a Piranhas. Recostado a uma espreguiçadeira, um sacerdote, olhando o céu argenteado, parecia absorto em contemplação.

O vento escasseava. Súbito, foguetes espocaram. O padre interrompeu a contemplação para interrogar os canoeiros o motivo daqueles foguetes. Soube que festejava Reis em São Pedro e. como faltasse vento, as asas da embarcação foram descidas. Ancorada a canoa, saltaram.

Foi então que o sacerdote se recordou do sítio e, dirigindo-se a um velhinho, pediu notícias dos proprietários da “Timbaúba”. Soube, então, que eram mortos, mas Inez, sua filha, morava em São Pedro, bem perto do porto. Era amada por toda a aldeia, pois personificava a virtude.

Desejando ver a beata, sua ex-amada, pois o sacerdote era o Luiz de quinze anos passados e que se tornara um virtuoso ministro de Deus, certificou-se da casa e para lá se dirigiu.

A beata Inez, à luz de uma vela, lia, na sala de jantar de sua casa. Ouvindo pancadas, levantou-se para abrir a porta, pois sua fiel escrava ainda estava na igreja. Ao abrir da porta, dois nomes, suaves e vibrantes, soaram: - “Inez” e “Luiz”! Nada mais puderam dizer aquelas duas criaturas que o ódio paterno desunira.

A lua resplandecia e mais negra tornava as vestes dos dois. Inez atentou em seu hábito negro e, sem mesmo convidar seu amigo a entrar em casa, entrou. Luiz, vendo entrar sua amiga tão querida, recordando-se também de seu passado, retornou ao porto.

Momentos depois, o padre Luiz, sentado à borda da canoa, desferia ao som de um violão que ali encontrara, canções de amor esquecidas a três lustros. Na soleira da porta do quintal que deitava para o rio, soluçava a beata Inez. O amor de tantos anos, oculto no recesso do coração, por um minuto reapareceu. Surgira na ocasião em que pronunciados foram seus nomes. Logo, porém, voltara a se ocultar, deixando o consolo tão distante e quase olvidado das lágrimas. Era a saudade de um passado que voltava nessa enluarada noite...

E à margem do São Francisco, enquanto um coração soltava seus queixumes em notas sonoras, um outro, em soluços amargurados, respondia...

 

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Publicado na revista FON-FON, Rio de Janeiro, 8 de setembro de 1928, disponível em 

http://memoria.bn.br/DocReader/259063/66097

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Caro leitor,

 Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] ISABEL MARSIGLIA DE OLIVEIRA, filha do professor e telegrafista João Valeriano de Oliveira, natural de Jatobá, Estado de Pernambuco, e de Maria da Glória Marsiglia, natural de Pão de Açúcar-AL. Seus avós paternos eram Joaquim Valeriano de Oliveira e Ângela Maria de Sá (Oliveira), que faleceu em Maceió a 20 de maio de 1906. Os maternos eram Bráz Antônio Marsiglia (italiano naturalizado, estabelecido em Pão de Açúcar) e Francisca de Jesus Marsiglia.

Nasceu no dia 29 de março de 1908. Foi batizada na Capela do Poço em 5 de março de 1911, tendo como celebrante o Pe. Celestino Antoniette, sob licença do pároco de Jaraguá Pe. José Moreira Pimentel. Os padrinhos foram o Dr. José da Cruz Oliveira, seu tio (irmão de seu pai) e Cecília Evangelina do Rego Oliveira.

 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

A LIBERDADE DAS URNAS

 

Por Graciliano de Oliveira[i]

 Quando o povo odeia, o seu ódio é como as lavas dos vulcões, que ainda mesmo em contato com as mais possantes cachoeiras, não se apagam nunca. E quando o ódio do povo se deixa arrefecer, é para mais impetuoso ainda transformar-se em verdadeiras tempestades cívicas que, estremecendo as montanhas e fortalezas e transpondo diques criminosos, vão levando de arrasto o falso pedestal de misérias e bandalheiras, donde os desfalcadores das fortunas públicas mercadejam a honra nacional nas mesmas condições em que a adúltera mercadeja a honra sagrada do lar, ora estremecendo em mármores tumulares, ora assassinando honrosas tradições.

Vezes há em que esta tempestade passa, para depois transformar-se em desprezo público, que é o último punhado de areia que o povo joga sobre o túmulo dos fariseus, que, divorciados do povo, uma única esperança lhes resta e um único direito lhes assiste: caírem no abismo das decepções da vida e afogados ficarem através dos séculos e das gerações.

São fariseus estes que, antes de galgarem o poder, iludem a boa fé do povo com falsas promessas, para depois assumirem, cínica e impatrioticamente, o evangelho sagrado da liberdade republicana de 89!

São fariseus estes que chegam até a Alta Câmara do país e lá se conservam silenciosos durante todas as sessões legislativas, em cega obediência aos seus interesses pessoais, enquanto os problemas mais importantes da comunhão nacional são jogados na penumbra do esquecimento.

O comércio, a agricultura, a indústria, essas grandes fontes de receita e de riqueza do nosso pais, essas grandes forças do progresso brasileiro, além de esquecidas e desamparadas, cada vez mais são sobrecarregadas de impostos escandalosos pelos poderes da república!

São estes homens, que tão justamente respondem por tamanha calamidade, que ainda se aproximam do povo para mendigar-lhe um voto, ou à troca deste voto oferecer-lhe dinheiro!

Quanto isto é deprimente e afronta, ao mesmo tempo, os sentimentos cívicos da nossa gente!

O podo brasileiro que se não deixe iludir mais por estes milionários mendigos, cujo ouro azinhavrado está a oxidar o sentimento sagrado da liberdade nacional.

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 Transcrito do jornal O Índio, de Palmeira dos Índios, Estado de Alagoas, edição de 10 de fevereiro de 1924. Há 98 anos!



[i] GRACILIANO DE OLIVEIRA. Cirurgião-Dentista, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia. Nasceu em Maceió a 12 de agosto de 1890. Filho do Major Anathólio  Adelino de Oliveira e de Theresa Maria de Jesus. Avós paternos: Manoel Pereira Baracho de Oliveira e Felismina Adelina de Morais. Avós maternos: João dos Santos Ângelo e Cecília Ignácia dos Santos. Eram seus irmãos: o médico Dr. Manoel de Oliveira; o auxiliar do comércio Antônio de Oliveira; Alfredo Oliveira, Rosa de Oliveira, Primitiva Oliveira e Aurélia Oliveira..

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

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Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia