quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A SECA NO SERTÃO – UMA CARTA AO EXMº SR. DR. EUCLIDES MALTA

Bráulio Cavalcante


Bráulio Cavalcante                     

Adorável região dos meus tempos infantis, das minhas crenças que fugiram; das minhas esperanças que se foram! Aqui pompeou a luz radiosa de mil sóis fecundos; aqui pairou a candidez de mil luares; aqui sorriu a Primavera e desceu o santo orvalho às catedrais das florestas onde brincava a sereníssima brisa; aqui a vida se engrandeceu, prosperou.

O agricultor rasgando o seio da terra, o homem da indústria sonhando novos horizontes, o comerciante movimentando novos produtos, bem poderiam transformar este torrão no mundo do Progresso, se a Natureza não viesse agora torná-lo em mundo dos canteiros.

Aqui reina o Mal. Gane, goelas abertas, a Fome.

As calamidades da Natureza inspiram uma grande piedade!... Setenta e Sete[i] no Ceará teve um eco nos arraiais da Corte, que transpôs mesmo às terras de Camões; – é justo que o mesmo eco irrompa desta dor igual, a fim de que lhe advenha um remédio!

Sublime caridade a do povo do Recife, socorrendo daquele clamor, aos irmãos do Norte, em primeiro auxílio na inspiração da mocidade acadêmica!

......

Aqui nos sentimos descer um sudário de morte!...

Não devemos isolar o drama do cenário, na frase de Lamartine, esboçamos em ligeiros traços, aos que não conhecem este amado torrão, o quadro aonde a Miséria Humana veio cair.

A cidade de Pão de Açúcar, demorando nas margens do caudaloso S. Francisco, é uma cidade mantida pela indústria agrícola e pastoril, sendo que esta tem sido sempre entregue a um sistema semisselvagem. Paralisadas que foram elas pela absoluta falta de chuvas, como se desenvolver o progresso fabril, embora pequeno?

......

Agora abre o sol incendiado pálio soberano, o grande sol em cáusticos aberto, implacável na sua tirania!

No centro da cidade, à Rua do Comércio, redemoinha o povo em feira, no struggle for life, algazarreando, em pensamentos diversos, kaleidospicamente andando em várias direções.

O calor sufoca. A ardentia mórbida fere a epiderme, em nervosismo. Prometheo talvez esteja do alto do sol, radiante no orgulho de tanto fogo!

É a luz implacável que arruinou campos e campos, que incendiou os troncos, os caules, os colmos, os estipes. No movimento da feira, no tumultuar incessante, a Miséria rasteja.

Ela desceu dos montes com o abandono das plácidas choupanas e se chamou – Emigração; desolou os vales, arruinou os lugarejos, acompanhou passo a passo o retirante, se multiplicou, se dividiu em perseguição de cada emigrante que fugia, de cada sertanejo que arribava!

Os fenômenos meteorológicos armaram aqui a Natureza para uma luta inglória contra o sertanejo! Luta implacável!

A Natureza suplantando o homem pela tempestade, pelo raio, pela inundação, em uma palavra, pela potência assombrosa de todos os seus elementos, tornou-se agora o legendário Egis na desolação dos campos e das cidades.

....

Mas cheguemos à cena que tanto nos inspirou. Ela terá traços ligeiros, mas inspirará demoradas impressões.

No dia 9 de março corrente, na feira desta cidade, passava a procissão dolorosa dos mendigos no anseio do vintém... Eram cenas possuindo algo de dantesco...

Oh! Sertão adorável de tanto sorriso e felicidade extinta, eu vos lamento!

Na retina de cada mendigo, brilha a saudade perene de uma casinha abandonada que se ficou em pleno cascalho combusto, paira a dolorosa imagem de uma ventura que se foi.

Nos fenômenos sociais distinguem-se três lástimas: o jogo, o roubo, o assassinato.

Agora tudo isso é uma consequência da Miséria.

Já não é somente a miséria do espírito, mas a torpe miséria material. Falo desse organismo que suportara as intempéries do tempo e as inclemências do trabalho caído agora em plena feira de uma cidade onde já existe civilização. E o homem que suportara as iniquidades das forças superiores da Natureza, morre à mingua de um pedaço de pão ou de carne!

Contam-se cenas horrorosas da Fome.

Fulgura o talento de Rodolpho Teóphilo quando se expande sobre as calamidades das terras cearenses: o gênio de Guerra Junqueiro, canta se referindo à dita Miséria!

Camões é um grande símbolo que não morrerá nunca mais!...

A mulher sertaneja tem, é certo, compreendido que a santa Caridade é um dever, é uma justiça, - mas é preciso socorro maior!

....

Abre o candente sol na safira dos céus. Campos e serras tudo, tudo está desolado...

Foi a cena tremenda, implacável, que por aqui passou.

Ela tudo crestou, tudo incendiou.

Nos montes nus, caído pela inanição, o gado sofre as consequências da peste e os cadáveres que deveriam ser queimados para que se evitasse a nociva infecção atmosférica -  serve muitas vezes para alimento do sertanejo faminto!

Debanda em todos os caminhos, assombrada, esquelética, sedenta, faminta, juma legião de mártires.

É talvez o doloroso trabalho do aperfeiçoamento, a dolorosa lecção...

***   ***

Recebei Excelência, a crônica negra que a minha pena acostumada às puerilidades de um lirismo inglório, traça perante a mágoa que empolga o povo de minha terra.

Pão de Açúcar, 11 de março de 1908.

 

Bráulio Cavalcante.

 

 

Pão de Açúcar, 1910.


Carta de Bráulio Cavalcante endereçada ao Governador Euclides Malta, contra cujo governo se debateria quatro anos depois, pagando com o preço da própria vida. Transcrito do jornal Gutenberg, Maceió, 24 de março de 1908, p. 3

http://memoria.bn.br/DocReader/809250/8477



Bráulio Guatimozim Cavalcante. Filho do Capitão José Venustiniano Cavalcante e de D. Maria Olympia. Nasceu em Pão de Açúcar-AL, no dia 14 de março de 1887, na casa nº 23 da rua da Matriz (hoje Avenida Bráulio Cavalcante, nº 209). Faleceu em 10 de março de 1912, na Praça dos Martírios, em Maceió, de um ferimento penetrante na linha axilar posterior direita, no quarto intercostal, recebido quando realizava um comício em prol das candidaturas do Cel. Clodoaldo da Fonseca e do Dr. Fernandes Lima.



[i] Refere-se à Seca de 1877, a mas catastróficas de que se tem notícia.

 


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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia