quarta-feira, 28 de setembro de 2022

TRAÇOS A ESMO (UMA CASA SERTANEJA)

 

J. Calisto[i]

 

Sertão nordestino. Desenho de Percy Lau.

Aqui vai, para variar, a descrição de um antro muito meu conhecido, no alto sertão de Pernambuco. Isto não tem importância nenhuma. De resto, o que desta coluna se escreve nunca tem importância. Mas enfim pode ser que algum leitor tenha necessidade de viajar por aquelas regiões meio selvagens; e sempre é bom saber onde vai cair.

É uma casa baixa, de taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto, chato, acaçapado, quase sem declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e sujo; negras as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se, deixando ver aqui e ali o frágil madeiramento que serve de carcaça ao prédio.

Três portas de frente e duas janelas. As portas têm altura suficiente para que possa entrar uma pessoa de mediana estatura sem curvar-se. As janelas, aberturas pequenas, quase quadradas, estão situadas lá em cima, perto da telha. Para atingi-las, trepa-se a gente a um caixão. Tem dobradiças de couro e não tem fechaduras – trancam-se com um pedaço de pau roliço, envernizado pelo uso, que se introduz em uma cava aberta no portal, presa a um cordel amarrado a um prego. As portas fecham-se interiormente com taramelas.

Em frente há um alpendre, o copiar, sustentados por esteios baixos, grossos, resistentes ao caruncho. Limita-o uma plataforma que se ergue meio metro acima do solo, de terra solta e pedra. É ali de dormem alguns hóspedes sem importância, na desagradável companhia dos bodes, que lá vão fazer idílios.

Na sala principal há três redes armadas em paus recurvos que saem do esqueleto das paredes. A um canto, um enorme traste de pernas descomunais, que atravessam uma tábua de dez centímetros de espessura, magnífico para rasgar a roupa de quem nele se senta. Aqui e ali, em tornos de madeira, à guisa de cabides, penduram-se chapéus de couro, gibões, perneiras e peitorais. Alguns sacos e surrões de cereais substituem as cadeiras que faltam. Enormes cordas de laçar, cabrestos de cabelo, encerados, cangalhas, alpercatas, prodigiosos sapatões de montar, com grossas esporas de rosetas incríveis, espalham-se desordenadamente.

Sobre uma tosca mesa, lavrada a enxó, um oratório envolto em uma toalha vermelha, de florões. Há dentro dele uma litografia de Nossa Senhora, desbotada, em caixilho sem vidro, um crucifixo, alguns santos de barro e de gesso, enfeites de papel, uma lamparina e uma vela benta. Na mesa, uma gaveta. Na gaveta, um museu – rolos de cera, novelos de barbante, agulhas para sacos, pedaços de sola, um tabaqueiro, um couro de fazer rapé, um martelo, uma torquês, sovelas, chifres de veado, pontiagudos, pacotes de orações, sementes, bolas de sebo, látegos, chocalhos, pregos, fivelas, um macete e um Lunário Perpétuo.

À direita de quem entra, há um cubículo com um monte de algodão.

À esquerda, um salão mal-assombrado, onde se misturam, numa confusão de mil diabos, montanhas de queijos, cestos, caçuás, samburás, rolos de fumo, cuias, cabaços, gamelas, selas de campo, cavaletes, pedras de amolar, arame farpado, facões, espingardas de pederneira, machados, foices e enxadas.

Da sala principal segue para os fundos um corredor estreito e sombrio, preto de pucumã e teias de aranha. Dão para ele dois quartos fronteiros. Um, das meninas, nunca se abre. O outro, dos donos da casa, deixa ver, através da porta meio aberta, algumas arcas, onde se aferrolha o tesouro da família, e uma cama baixa, sem colchão, com o lastro de couro de boi, em cabelo, gasto pelo atrito de algumas gerações que por ali se fizeram, viveram e morreram.

O corredor desemboca na sala de jantar. Há ali uma pequena mesa, que raramente se forra. É toda escalavrada, cheia de altos e baixos, pelo hábito de picar-se fumo em cima dela, a vaca de ponta. Ladeiam-na dois bancos medonhos. Perto, uma velha máquina de costura em cima de um caixão vazio. À entrada, um pote sobre uma forquilha em triângulo, plantada no chão. Nas pontas das varas que saem das paredes, candeeiros de folha, pendurados pela asa, desses de torcidas de algodão em rama, negras, fumegantes e fedorentas.

Com a sala de jantar confinam a cozinha de um lado, de outro o quarto das criadas, três pretas que foram escravas e que ali continuam, porque não sabem o que fazer da liberdade. Uma delas dá-se ao lucho de dormir em uma cama de varas, a isidora, erguida sobre quatro estacas pregadas no chão. As outras dormem em esteiras. Têm caixas de pinho, onde guardam a roupa, em combucos cheios de bugigangas – espelhos, voltas de conta, alfinetes, frasquinhos de perfume, anéis, brincos, pulseiras e rosários.

A cozinha é de proporções exíguas. Uma grossa camada de fuligem dá-lhe um novo teto, sobreposto ao primeiro. Um jirau, a que frequentemente se bate com a cabeça, substitui a despensa. Amontoam-se neles mochilas de sal, réstias de cebola, espigas de milho, botijões de manteiga. Mantas de carne, linguiças, panos de toicinhos pendurados a uma corda que vai de uma parede a outra. O fogo é feito no chão, entre grandes pedras dispostas em trempe. A um canto, um montão de cinza e carvões apagados. Todos os dias, uma preta, de rastos, varre aquilo a vassourinha. Frigideiras, caldeirões, panelas, marmitas de folha, ralos, canecos, abanos formam o sistema planetário de um tacho velho, rachado, cheio de nódoas verdes. Em cima de um pilão deitado um gato ronca. Junto ao lume, há quase sempre uma velhota acocorada, a acender o cachimbo de canudo de taquari com uma brasa espetada a um garfo. Encostada a uma das pedras da trempe, uma banda de casca de coco com um cabo de pau. É a quenga. Na parede, o caritó, pequena cava em forma de concha, onde se guardam objetos miúdos – pedras de sal, pontas de cigarro de palha, dentes de alho, cordões, retalhos de pano, agulhas, peles de fumo que se oferecem a Santa Clara, a troco de pequenos milagres caseiros.

Uma janela baixa, onde se senta um rapagão indolente, a esquentar-se ao fogo, dá para o quintal, nu, com um barreiro cheio de água turva, coberto pela sombra escassa de uma árvore morta.

Junto ao quintal há um jardim povoado de algodoeiros, verduras, vasos com alecrim e losna, urtigas e até flores. Cobre-o uma imensa ramagem de uma baraúna secular.

Do lado oposto, três currais de cercas eternas, mourões gigantescos. Um pouco afastado, o chiqueiro dos bodes.

Em frente, um grande pátio branco, limitado por árvores sempre verdes, que roubam um pouco a vista dos montes distantes, levemente azulados à luz crua do sol.

No terreiro, no pátio, na calçada, confraternizam galinhas, bacorinhos, cabras, carneiros, alguns cachorros com extravagantes coleiras feitas de rodelas de sabugo queimado, enfiados em pedaços de embira.

Aí está a descrição de uma casa sertaneja, sem tirar nem por. Não aconselho o leitor a que se vá alojar nela. Mas há gente que mora ali, o que prova que o homem é um ser capaz de adaptar-se a tudo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Transcrito do jornal O ÍNDIO, Palmeira dos Índios, 1º de maio de 1921, coluna TRAÇOS A ESMO. Disponível em : http://memoria.bn.br/DocReader/720925/46

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Caro leitor,

 Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] J. Calisto, pseudônimo de Graciliano Ramos. Nasceu a 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo, Alagoas. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1953. Filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Barros Ramos.

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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

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Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


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PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

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Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia