Por Etevaldo Amorim
![]() |
O povoado Ipueira, Pão de Açúcar-AL |
Onde você mora? Para onde você vai?
– Moro nas Impueiras. Vou para as Impueiras –
diz a maioria das pessoas referindo-se ao nosso simpático povoado, que tem
experimentado notável crescimento nos últimos anos.
Isso é fruto do linguajar corriqueiro, que perdura a ponto de
se acreditar como correto. Entretanto, a bem da boa prática do nosso idioma, faz-se
necessário dizer que a grafia correta é IPUEIRA que, em tupi-guarani, significa
“lugar raso onde a água se acumula” ou "rio que já correu".
Etimologicamente, segundo o dicionário de Aurélio Buarque de
Holanda, o nome IPUEIRA deriva de IPU, que significa “terreno úmido
adjacente às montanhas, e que forma várzeas ou vales por onde corre a água que
deriva das mesmas montanhas.”
De fato, a um simples passar, notamos a existência de
pequenas poças espalhadas pelo terreno que margeia a estrada, provavelmente originárias
de nascentes existentes ao sopé da Serra do Meirus, ou mesmo de águas pluviais.
Já o nosso conterrâneo Antônio Xavier de Assis (O PRIMEIRO
PÃO-DE-AÇUCARENSE A GOVERNAR ARACAJU), no seu Esboço Histórico e Geográfico do
Baixo São Francisco, afirma que IPUEIRA vem de IPU = Terra ou pedra umedecida +
EIRA = que foi, que existiu, etc... Assim: TERRA QUE FOI MOLHADA ou TERRA
MOLHADA.
![]() |
Vista aérea da região do Povoado Ipueira, vendo-se manchas escuras indicativas das ipueiras. |
*** ***
Em diversas fontes pesquisadas, sobretudo nas mais antigas, não
encontramos qualquer menção a “Impueiras”, ao passo que na busca por “ipueira”,
seja como a denominação do próprio lugar, seja pela associação a água, fomos
exitosos.
Vejamos essa nota publicada no jornal O Paulo Afonso, que se
editava em Pão de Açúcar, de propriedade de Achilles Balbino de Leles Mello,
edição de 27 de julho de 1879, assinada por alguém residente em Meirus (então
chamado Campo Alegre do Pão de Açúcar):
“A PEDIDO. Ao Sr. Dr. Chefe de Polícia e às autoridades
policiais deste Termo.
Denunciamos às autoridades competentes a permanência de um
soldado desertor que existe no sítio Ipueira, deste Termo, homem
que arroga a si os “feros” de valentão e que vive de cortar madeiras em terras
alheias, propalando lançar mão do bacamarte contra qualquer dono de terras que
quiser preteri-lo desse “ilícito” meio de vida.
Este soldado chama-se Manoel é e filho de Thelésphoro Pinto.
Para garantia da propriedade alheia, chamamos a atenção das
referidas autoridades, a quem pedimos providenciem com a captura desse
“valentão”.
Campo Alegre do Pão de Açúcar, 18 de julho de 1879.
Alguns prejudicados.”
___
Outra citação de IPUEIRA encontramos em uma bela crônica de
Mário Wanderley, publicada no jornal A PYRAUSTA, que se publicava em Maceió e que
tinha como Redator-Proprietário o nosso conterrâneo Moreno Brandão, na edição
de 23 de maio de 1917. Bastaria citar os parágrafos em que aparece a palavra em
questão, mas preferimos transcrever toda a crônica, que muito merece pela
beleza da sua construção:
“RESSURREIÇÃO. À roda das cacimbas, as mulheres curvavam a
cabeça, tirando a água barrenta, em baldadas ligeiras: as suas figuras robustas
retremiam, espalhadas dentro do bojo irregular, desenhadas sobre o líquido
ondeante. Era uma pequena cisterna, simples ipueira de sertão,
cavada entre dois barrancos, no meio da ravina.
A água brotava de dentro das rochas calcáreas, escorridas
de todos os terrenos elevados; e ali, estagnada, formava, como uma
lagoa feliz, um milagroso, perene olho d’água duma umidade sadia, refrescadora.
Em volta, em um circuito de muitas léguas, córregos não murmuravam,
arrastando-se sobre solos arenosos, porque era toda uma região devastada por
queimadas completas, ciliciadas brutalmente pelas sequidões contínuas.
Cá, a ipueira, no baixo fresco – era um
doloroso pomo de discórdia entre os habitantes; estes disputavam-lhe a posse
como a relíquia mais preciosa. Se lhe não conhecia bem ao certo a sua origem, a
sua propriedade; servia, porém, de utilidade a todo o povo...
... E, nessa feita, a vasilha da mulher do Zé Matheus
resvalara sobre uma outra; enrolaram-se os cordovões, e num lufa-lufa
frenético, as suas donas puseram-se a puxá-las. O sangue lhes vinha, com
aqueles esforços musculares, subindo à cabeça; e, afinal, as mãos, na destreza
da movimentação, tocaram-se.
Ao contado das carnes inimigas, rebentaram todos os seus
ódios animais de campônias; e procuraram-se, apertavam-se em abraços brutais,
agarradas num amplexo violento, de dentes cerrados. Baquearam, rolando sobre a
relva; e surgiram, então, da rouparia descomposta, de ambas, apontadas fora –
as pernas desnudas, os seios protuberantes, dentre os rasgões das camisas, com
os órgãos à mostra, em posições torpes, obscenas, imorais...
As mulheres, assim, tinham principiado a tragédia. As
famílias inimizaram-se; e zuniam, nos ares, ao entorno, injúrias indecentes,
pragas sacrílegas, juras duma vingança tremenda.
O verão que começara aberto num céu claro, límpido, sem o
riso dum cúmulus – ameaçava-os agora como o terror dum próximo incêndio. Os
ares incandescentes devoravam a umidade vegetal dissolvida na contextura das
folhas, e secaram, alfim, todas as árvores da pairagem.
Mas a lagoa, a cacimba milagrosa, no meio da ravina, ainda
estendia, no fundo, a sua nata esbranquiçada d’águas. E nela, ainda assim,
lavavam toda a alimária doméstica, a roupa enegrecida pelo suor animal; e
bebiam-na em golos voluptuosos. Mas
esse conforto à sede profunda, cruel, devorante de toda vitalidade, desde a
briga das mulheres do Ferreira e do Matheus – era um precipício para as
famílias. E, temendo um encontro fatal – iam para ele, às escondidas. Terminado
o serviço, volviam à casa, enquanto os adversários espreitavam um canto vazio,
todos impacientes.
A
água foi, alfim de tanta procura, escasseando pouco a pouco; a lagoa, no fundo
da cisterna, ia moribunda, minguando a sua linfa penetrante, sob os bochornos[i]
destruidores. A água ajuntava-se lentamente, as gotas escorriam de dentro das
estalactites, atraídas para o bojo, pela gravidade; e, reunidas, molhavam,
apenas, em poucos palmos, a redoma alagada, com um líquido esbranquiçado, fino.
E quando levavam os cocharros[ii]
cheios d’água o chão ficava vazio, rente às pedras donde a umidade salvadora
ressurgia, apenas em porejos gotejantes, do vente escuro da terra...
Tão
escassa ficou que levavam horas a fio para ajuntar um balde. Com essa demora, o
despeito surgia mais profundo, mais irritante. Quando o Matheus aguardava o
líquido precioso que vinha andando pelos mistérios negros do solo – o Ferreira,
necessitado da água vivificadora – esperava-o, de longe, roído por u ódio
nervoso. Convencia-o, a sua raiva de carnívoro, que aquela demora era um
propósito, uma vingança torturante – uma funda irritação à sua paciência
humana. E quando o Matheus voltava com a vasilha cheia, sacudia o seu corpo de
magro, num galope ligeiro, e apossava-se da fonte providencial. Achava-a,
então, vazia. Cavava-a; mas a corrente d’água não surgia: descera mais fundo
pelo solo a dentro, encolhida ante a atmosfera absorvente...
Depois
dum escurecer, o Ferreira que quase o dia todo aguardava a minação das águas,
ainda a esperava, já noite feita. E na sua casa, o Zé impacientava-se:
precisava d’água para lavar o cavalo, suado e magro, para o uso doméstico, e
mais ainda, para lhe saciar a sede, que se lhe revolvia no estômago como uma
chama destruidora. Era uma tortura que chegava; e, lá no cacimbeiro, o inimigo,
o rival venturoso, fazia-o, como uma demora caprichosa – sofre um tormento
inútil. O insulto casava-se à sua necessidade: o ódio crescia de ambas as
partes como uma planta venenosa, enraizada em duas esterqueiras...
Mas,
apesar da longa espera, a água nesse dia trágico não provinha da terra. A
família do Matheus vinha, às vezes, olhar ansiosa para a cacimba seca, para
aquela pequena lagoa morta; e iam-se, ficando o Matheus de atalaia, para que
ninguém lhe roubasse o privilégio das primeiras águas.
... O
Ferreira não se conteve mais: e se foi esgueirando dentro da sombra para a ipueira vazia. E curvado sobre
ela, o Zé olhava para o bojo exsicado, esperando um reflexo d’água à claridade
das estrelas. O outro divisava-o, irritado com aquele abuso, aquele insulto
pavoroso. De mando, achegou-se, e desembainhando a faca, segura, movido por uma
febre epilética, caiu como um louco sobre o adversário e, à traição,
esfaqueou-o brutalmente. O sangue gotejando das feridas, caía sobre o bojo da ipueira, encharcava-se ali; e
formava uma poça vermelha.
O
ferido, num último esforço, arrastou-se uns passos e gritou doridamente pela
mulher. As estrelas sobre ele faiscavam vivamente; e, no seu delírio
derradeiro, tomavam aos seus olhos agônicos – a estranha visão de fontes
milagrosas que se alongavam para a terra como um conforto beatífico, à toda a
sua sede torturante. E era uma catadupa luminosa que se abria lá do alto, e o
inundava, e o envolvia com uma doçura fresca de carinho.
A
mulher dele, ouvindo-o gritar, veio para a cacimba. Seria, com certeza, a água
que aparecera, espoucada pela frescura da noite, e o grito, um brado de
triunfo!
Não o
vendo, mergulhou as mãos na lagoa, apalpando-a e achando-as molhadas, gritou:
-
Água! Água!
E o
grito da ressurreição do líquido soberano, alargou-se pela noite afora como uma
onda triunfal:
-
Água! Água!
O
entusiasmo renascia para tudo, e com ele – o consolo, a alegria sensual para a
carne, para os órgãos, para a boca! ...Com as mãos molhadas, sem enxergar na
sua expansão alegre o cadáver do marido, sacrificado a esse eterno culto do
Elemento Divinal – correu para casa, anunciando a dota a gente – a ressurreição
da matéria líquida, da água bendita que é o vinho, que é o perfume da seiva
universal, que é o próprio sangue – eterna eucaristia nutridora da vida.” (Mário Wanderley)[iii]
[i]
1. Vento abafadiço e insalubre. 2. Calor sufocante somado a alta umidade e
nebulosidade que ocorre geralmente no verão.
[ii]
Do castelhano cocharro, «vaso ou taça de madeira ou de pedra».
[iii]
Mário Wanderley Rodrigues da Costa, conhecido por Mário da Costa Wanderley ou “Mário dos
Wanderley”, nasceu em União dos Palmares - AL em 11/11/1893 e faleceu em São
Paulo - SP em 24 de setembro de 1949. Filho de Francisco Isidoro Rodrigues da
Costa e de Maria de Albuquerque Lins. Advogado formado pela Faculdade do
Recife, em 1913. Advogou em Alagoas e em São Paulo. Membro fundador da AAL, sendo o
primeiro ocupante da cadeira 32. Patrono
da cadeira 33 do IHGAL.
Nenhum comentário:
Postar um comentário