quarta-feira, 19 de outubro de 2022

MEU TIO GALARIM

 

Conto de Edgard Braga[i]

Eu devia ter oito anos, se tanto. Meu pai era um modesto professor primário. Minha mãe costurava para

Edgard Braga-Revista A Cigarra-SP, 1931.

fora. Era piedosa e muito estimada.

Morávamos numa casa pequena, com alpendre, onde algumas samambaias desnastravam crinas de um verde-amarelo de sol. Um dia, à hora do almoço, meu pai abriu uma carta e anunciou que breve chegaria o seu único irmão que durante largos anos vivia em Mato Grosso, dono de latifúndio, gado e cavalhadas.

- Seja bem-vindo, respondeu minha mãe; o pior é que a casa era pobre e os proventos minguados...

- Ao que parece ele já não tem mais nada, observou meu pai, guardando a carta.

- Paciência, aonde comem dois, podem comer três...

Terminado o almoço, meu pai me disse: é o tio que aí vem.

Raramente ouvia falar desse tio. Meu pai era um homem taciturno, falava pouco e lia muito, quando em vez, jogava gamão aos sábados, à tardinha, à porta da farmácia com alguns amigos. Minha mãe repartia o seu tempo entre as lidas caseiras que amava corretas e a costura alheia, encontrando vagar para me auxiliar nas lições.

Passou um mês, uma noite, parou à porta uma charrete e dela desceu um homem espadaúdo, encardido, com bigode negro espichado, e um meio sorriso de dentes limados e brancos. Era o tio, o tio que depois eu soube chamar-se Galarim. Entrou como se estivesse acostumado àquela casa há longos anos. Minha mãe o levou ao quarto arrumado há dias. Meu tio apenas confessou que havia perdido quase tudo, e por isso desejava viver e morar com o irmão, de vez que tinha ninguém.

- Assim é a vida, disse-lhe meu pai.

- Não tem importância, vamos adiante, resmungou Galarim, enquanto enrrolava o cigarro de palha. Em seguida, lavou-se, comeu, e no alpendre, pois era quente e noite, contou a meu pai que havia perdido no jogo os seus teres, e que ficara apenas com o que viver.

- Pois a casa é sua, seu mano!

A nossa vida continuou sem nenhuma importância. Tio Galarim foi apresentado a um ou dois amigos de meu pai com quem, às vezes, embora calado, jogava loto ou dominó. Surpreendi-o, muitas vezes, a olhar-me, como se estivesse a reavivar, para dentro das pupilas castanhas, velhas lembranças. De uma feita, tomou-me ao colo:

- O que desejas ser? – Perguntou.

- Palhaço de circo, respondi, enfiado.

Tio Galarim pousou-me no chão, ficou sério, fez um gesto de descrença e murmurou:

- Não tem importância, vamos adiante.

Ao fim de cada mês, entregava a minha mãe uma certa quantia que era a sua parte nos gastos cotidianos. Quase nunca saia de casa, com exceção das noites de luar em que se vestia de culote, camisa azul, botas de montaria. No quintal, de pé, estalava um chicote de cabo de prata, aos gritos, como se tangesse cavalos.

Ganhava a rua em seguida, “eia, eia”, brandindo o relho. Voltava altas horas, e dormia resfolegando como um boi de canga.

Meu pai tentou certa vez saber a razão daquilo, mas tio Galarim fez um gesto que a todos emudeceu:

- Não tem importância, vamos adiante.

Uma feita, seu Neco, da farmácia, advertiu a meu pai:

- Olhe, professor, toda a gente diz por aí que seu mano é fraco das faculdades. Onde já se viu alguém andar noite afora a dar chicotadas nas sombras?!

Meu pai procurava desculpar:

- É o jeito dele; não vê que Galarim é um atleta e precisa de exercícios?

Assim o tempo foi passando. Olhavam o meu tio com um certo respeito, misto de medo e pena. Um dia, à tardinha, minha mãe mandou-me à venda buscar qualquer coisa. No caminho, topei com um grupo de meninos que me cercou aos berros de “seu tio é doido”, “seu tio é doido”. Atirei-me a eles, e distribui pontapés e tapas a torto e direito, até que atingi o olho de um menino. O sangue jorrou, eu corri e fui me abrigar à porta da farmácia, onde sabia que meu tio, àquela hora, jogava dominó. Pouco tempo depois, chegou o menino pela mão do pai, com um lenço empapado no rosto. Seu Neco deixou o jogo, e dizendo que não era nada, levou o garoto para dentro. O pai, colérico, vendo meu tio, entrou de esbravejar, que a coisa não ficava assim... Meu tio largou as pedras, levantou o punho com uma clava e quando parecia que ia abater o outro, apenas disse soturno:

- Não tem importância, vamos adiante!

Chamou-se para perto de si e arrumou o pequeno tabuleiro. Levantou-se, segui-o um tanto orgulhoso daquela força potencial, que impunha respeito. Em casa, minha mãe, que soubera do fato, repreendeu-me.

Desatei em pranto:

- Chamaram o meu tio de doido!

Tio Galarim, que ouvira minha explosão, voltou-se para minha mãe e, puxando-me para perto, afagou-me:

- Não tem importância, vamos adiante.

Nessa noite, era junho, havia um luar de espelho; a lua cheia, no meio do céu, banhava a cidade de uma claridade de paina e neblina.

Todas as coisas como que ressuscitavam do sono do frio, tocadas do afago da lua mansa e dormente. Nuvens iam se acumulando sobre os montes, ao fundo, algumas tomavam formas estranhas e pareciam quererá encobrir a lua, que rolava à sua roda de ouro indiferente à paisagem terrena. Eu não conseguia dormir. As horas iam passando com lentidão de cansaço. De repente, ouvi passos e a voz do tio Galarim: “eia, eia – Ouro Negro!”.

Meu pai, já recolhido, tossiu, como se avisasse que estava também acordado.

Senti que meu tio estalava o chicote e descia do terraço, rumo à rua: “eia, eia, Ouro Negro”!.

Ao dia seguinte, apanhando-o a sós no alpendre, não me contive:

- Que cavalos o senhor estava enxotando?

Tio Galarim sorriu e respondeu: os das nuvens, mas não tem importância, vamos adiante...

Outra noite insone, esperando ouvir de novo o passo do meu tio, o ruído das esporas, o estalido do chicote. Dessa feita, porém, tio Galarim ficou no seu quarto.

Procurando vencer o medo, levantei-me, abri devagarinho a janela que dava para o terraço e olhei para o céu. A lua, como na véspera, brolhava ainda bem alta, posto que já tivesse aquele aspecto de moeda dourada. Nuvens deslizavam diante delas e tomavam formas estranhas, ora de gigantes, ora de palácios, ora de cavalos em corrida.

Não sei quanto tempo fique preso àquele espetáculo que o tio Galarim me havia desvendado, e que jamais soubera que alua possuía palácios e cavalos brancos! Enquanto houve luar, noites seguidas deleitei-me na treva e no silêncio com os fantoches e os carros da noite.

Um dia, meu pai, à mesa perguntou ao irmão, de chofre:

- Nunca desejaste família?

Meu tio esboçou um gesto cortante e respondeu, como de sempre:

- Não tem importância, vamos adiante!

Meu pai desconversou, e quando tio Galarim saiu, minha mãe observou que ele tinha bom coração, e devia ter tido alguma coisa amorosa na vida. Aquilo tudo devia ser saudade... de mulher.

Rumores de que tínhamos um doido varrido na casa encheram a cidade. Meu pai, conceituado, começou a sofrer, embora evitasse o assunto. Tio Galarim continuou a sua fantasia, e já agora, quase todas as noites, houvesse ou não luar no vasto céu profundo.

Repentinamente, porém, tio Galarim deixou de sair com as suas esporas, chapéu de vaqueiro e chicote. Recolhia cedo, deitava-se calado e dormia roncando.

- Até que, afina, disseram a meu pai, o mano está calmo...

Um dia meu tio chegou-se a meu pai e lhe disse:

- Deixo tua casa; vendi os cavalos; vou-me daqui.

Arrumou a mala, chamou minha mãe, deu-lhe as botas e as esporas, o chicote.

- Venda-os, se quiser; ou os dê a quem quiser receber.

Nessa mesma tarde, entregou a meu pai um rolo de papel:

- É para o menino, quando publicar o seu primeiro livro.

Meu pai esboçou um gesto de constrangimento, compreendendo o valor da lembrança e fez menção de acompanha-lo à estação, ao que ele se opôs com a cabeça negativamente.

Senti, nesse momento, enorme opressão e desandei a chorar. Tio Galarim, então, suspendeu-me à altura de suas pupilas pardas, banhadas de suave brilho, como que úmidas. Minha mãe derrubou uma lágrima e tentou falar qualquer, mas, não pode, porque ele ganhou a rua e pulou na charrete do Bepino, que há meia hora esperava na porta.

Partiu a trote, e na curva da esquina, nos acenou de costas:

- Não tem importância, vamos adiante...

O rolo de papel eram títulos ao portador.

E foi essa a última vez que vi meu tio Galarim.

 

Transcrito do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Porto Alegre-RS, 18 de janeiro de 1959.

 

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Caro leitor,

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] EDGARD PIMENTEL BRAGA. Médico e poeta. Filho de Ilídio Ferreira da Silva Braga e Leopoldina Pimentel Goulart Braga, nasceu em Maceió-AL no dia 10 de outubro de 1897. Seus avós paternos eram: João Francisco da Silva Braga e Paulina Maria de Araújo; e, maternos, Manoel Cândido da Rocha Andrade e Leopoldina Pimentel Goulart de Andrade. A 17 de maio de 1926, no Rio de Janeiro, casa-se com Elvina Loureiro Braga (Nena), com quem teria um filho: Edgard Braga Filho. Ela faleceu em São Paulo, a 28/05/1950, aos cinquenta anos de idade  

Iniciou seus estudos com seu pai, que era professor e latinista. Em seguida, conclui o curso de humanidades no Liceu Alagoano. Em 1922, forma-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendendo a tese: Considerações Obstétricas em Torno de um Caso de Ciclo Hidrocefalia. Em 1923, passa a morar definitivamente em São Paulo, onde exerce a medicina na área de sua especialidade. Após viagem a Europa, onde frequenta cursos de Ginecologia e Obstetrícia na Alemanha e na França, entra para a Clínica Obstétrica da Faculdade de Medicina. Atua, ainda, no Departamento de Saúde do Estado, chegando a Diretor do Instituto de Puericultura. Sócio da Associação Paulista de Medicina, da Sociedade Paulista de Higiene e da Sociedade Brasileira de Ginecologia, entre outras instituições.  Membro correspondente da ANM eleito em 3/10/1940 - da AAL e do Clube de Poesia de São Paulo. Obras: A Senha, 1933 (poesia); Lâmpada Sobre o Alqueire, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946 (poesia); Odes, 1951 (poesia); Albergue do Vento, São Paulo: João Bentivegna, 1952 (poesia); Inútil Acordar, Poemas 1949-1950, São Paulo: Liv. Martins Editora 1953, (poesia); Lunário do Café, ilustrações de Di Cavalcanti, São Paulo: Edições Leia, Oficinas Gráficas de João Bentivegna, 1954 (poemas, apresentados em cinco ciclos, alguns com títulos e outros sem; por exemplo, encontra-se o poema  Lundum, na pg. 12 do 3o. Ciclo e  Modinha do Café,  na pg. 19  do 4o. cíclo);  Extralunário, Poemas Incompletos, com estudo crítico de Cassiano Ricardo, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1958   (poesia,); Subúrbio Branco, São Paulo: Clube da Poesia, 1959 (poesia);  A Corrente, São Paulo: ?1961 (poesia); Soma, São Paulo: Edt. Martinez, 1963 (poesia); Algo, Something, Quelque Chose, São Paulo: Edições Invenção, 1971(poesia); Tatuagens: Poemas, São Paulo: Edições Invenções, 1976, (poesia); Desbragada, org. de Regis Bonvicino, São Paulo: Editora Max Limonad, 1984. Escreveu, ainda, obras médicas: Homem Errado; Sexto Sentido da Medicina; Caminhos da Cirurgia e colaborou, com artigos, em publicações especializadas, tais como: Mensário de Higiene, Revista da Cruz Azul, Boletim de Eugênia e Infância.  Com Contemplação e Poema, participou de Notas Sobre a Poesia Moderna em Alagoas. Antologia, de Carlos Moliterno, p. 195-196; A Cultura e o Idealismo do Médico na Sociedade Moderna. Discursos Pronunciados pelos Doutores Edgard Braga e Cláudio Goulart de Andrade, Academia Nacional de Medicina, São Paulo: Elvino Pocai, 1942. Fonte: ABC das Alagoas. Conviveu com participantes da Semana de Arte Moderna, de 1922, da qual não participou, efetivamente, por conta dos seus compromissos com o curso de medicina.

 

Um comentário:

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia