terça-feira, 25 de outubro de 2022

O NATAL DE SEU HERMÍDIO

 

Conto de Breno Accioly[i]

 

Breno Accioly. Revista Sombra-1949
Lembro-me numa memória que me conta o meu Natal de nove anos. Era um Natal possuindo todas as
cores do mar bem como todos os desenhos das nuvens, e não lhe faltavam, apesar de toda essa riqueza estratosférica e marítima, as vozes da Nau Catarineta se arrebentando na amplidão de adeuses, sempre comoventes.

O Natal do bairro da Levada da sonolenta Maceió possuía manjedoura, além dos três Reis Magos, e a ele aderiam caixeiros, gigolôs, seminaristas, mulheres de cinco cruzeiros, viúvas, investigadores, Juízes, Cônegos, Desembargadores e doidos que ficavam escavacando as cavernas das ventas com lâminas de unhas emporcalhadas, quando não soltavam palavrões, faziam gestos obscenos com as mãos, os dedos, os punhos, as línguas. Isso acontecia em Maceió, mesmo pobre apesar das riquezas da Nau Catarineta, apesar dos berros dos instrumentos de uma banda de música lembrarem furiosas gargantas de crianças em férias.

Não havia Nau Catarineta nem banda de música no Natal de Santana do Ipanema, tampouco aqueles cestos subindo pessoas na Roda Gigante. Havia, no entanto, o Presépio de “Seu Hermídio”, um artesão que obumbrava o prestígio do Padre Bulhões porque era ele o maior homem do Natal. Padre Bulhões perdia longe para Seu Hermídio, não porque a casa de Seu Hermídio possuísse uma sala que podia ser comparada a uma nave, de tão grande. Mas pelo motivo de Seu Hermídio viver de canivete nas mãos, esburacando palmos e palmos de madeira, talhando, dando formas de imagens a toros, que eram trazidos dos montes nos lombos de jumentos, na cabeça de biscateiros encachaçados e pornográficos. A matutada gostava de Seu Hermídio, outrossim, as crianças que aprendendo a falar logo balbuciavam “Sê Hermidi” – tão vasto como um rio, tão sozinho como um caramujo, tão impenetrável qual o mistério da morte.

Todos desconheciam o motivo por que Seu Hermídio não arredava o pé de casa, jamais alimentara um namoro, outrossim, ninguém sabia ao certo onde ele havia nascido nem pessoa alguma sabia precisar em que ano chegara a Santana do Ipanema aquele homem, alto, magro, à maneira de um cachorro faminto, olhando a todos de viés como se amasse a perspectiva dos ângulos; aquele home que tinha como mundo uma casa de platibanda vermelha, coberta de telhas encardidas, bolorentas.

Quando os habitantes de Santana do Ipanema abriram os olhos, era Seu Hermídio, o mais íntimo de toda a cidade, aquele que recebia das crianças mais afeto, pois as crianças Seu Hermídio parecia viver. Todas as vezes que o procuravam, encontravam-no, ou deslocando os olhos de Santa Luzia, ou pintando as chagas de São Roque, quando não colava um braço de um boneco maneta, destorcia o pescoço de um soldado de molas, aleijado à fúria de mãos inocentes.

Mas, como era suja a casa de Seu Hermídio! Aranhas bordavam redes e lenços de prata que tão leves, não conseguiriam desfazer o equilíbrio da mais delicada e sensível das balanças.

E ainda existiam sapos enormes, alimentando-se de insetos que, por acaso, fossem visitar a cozinha, sapos-cururus, sapos-mijadores capazes de cegar alguém com aqueles esguichos qual jatos de pútridos lança-perfumes. Seu Hermídio também não temia as lacraias, silêncios repelentes, abomináveis ferrões vermelhos, longe ou perto das paredes, imóveis à maneira de crocodilos.

Das redondezas chegava gente a procurar Seu Hermídio, a trazer-lhe imagens desbotadas, crucifixos pubos, uma porção de coisas velhas, do tempo do onça, que pediam a atenção de mãos hábeis. E as mãos de Seu Hermídio davam jeito, descobriam um modo de amenizar aleijões, recompor traços e silhuetas devoradas pela gulodice do tempo.

Somente à véspera da Noite de Natal Seu Hermídio espanava as janelas, enxotava os sapos, espantava caranguejeiras de pernas cabeludas, ao tempo em que arrancava da face aquela tristeza que lhe adormecia os olhos, punha de lado aquela sua paciência, tão comum na vida dos bois. E fazia tudo isso para escancarar as portas, deixar à vista de todos o seu Presépio, onde o Menino-Deus dormia numa manjedoura do tamanho de uma banana-pão.

O presépio de Seu Hermídio era uma gama de molas invisíveis. Se se pusessem quinhentos réis no buraco de uma salva de papelão, colocada à direção do Norte, o Menino-Deus acordava e deixava ver-se-lhe o azul dos olhos sorrindo, enquanto Nossa Senhora balançava a cabeça, agradecendo liturgicamente, São José levava a mão direita até as barbas (não sei por que), enquanto os cavalos dos três Reis Magos faziam menção de galopar pela estrabaria adentro. O Presépio de Seu Hermício estava cheio de molas invisíveis, repito. E sentado ao lado do Presépio, à direção do Sul, Seu Hermídio vigiava os matutos que se acotovelavam, praguejavam ao disputar um lugar bem próximo do sorvedouro da salva de papelão.

Toda aquela engrenagem parecia suportar o peso de todas as esmolas do mundo. E que engrenagem inteligente! Se a esmola fosse de mil réis, o Menino-Deus ficava mais tempo acordado enquanto a Estrela D’Alva se inundava de uma luz perene. Tudo no Presépio era calculado, pois ninguém podia escurecer os dedos tocando naquele Rei Mago de cor preta. Dir-se-ia que o Presépio se assemelhava a um mundo, cujas fronteiras fossem de arame farpado. Um parapeito impedia de ver-se mais de perto as ovelhas enfiarem a boca nos feixes de palhas; somente ao alcance da gente ficava a salva de papelão, engolindo, engolindo moedas, sem cerimônia como um insaciável estômago uivante.

Não posso esquecer-me da pergunta que fizera à minha avó:

- Terá por aqui um Presépio como o de Seu Hermírio?

A resposta me magoou. E por isso mesmo eu detestei o rolar amoroso da Roda Gigante do Natal de Maceió, achei sem sabor o caldo de cana, recusei, obstinado, o convite que recebera de atirar fechas num alvo de fácil alcance, porque meu pensamento me levava para perto do Presépio de Seu Hermídio, para perto de uma véspera de Natal em Santana do Ipanema, precisamente há um ano atrás, onde eu não me cansava de admirar a sabedoria de um homem semi-analfabeto enriquecer ainda mais a riqueza dos sonhos mirabolantes de meus nove anos, com aquela Nossa Senhora balançando a cabeça, agradecendo as esmolas, liturgicamente, e o Menino-Deus sempre acordando para melhor ver a ingenuidade dos sertanejos.

 

Transcrito da revista A CIGARRA, Rio de Janeiro, dezembro de 1954.

 

Caro leitor,

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i] BRENO ROCHA ACCIOLY. (Santana do Ipanema - AL  22/03/1921 - Rio de Janeiro - RJ  13/03/1966). Escritor, jornalista, médico.  Filho de Manuel Xavier Accioly e de Maria de Lourdes Rocha Accioly.   Aos nove anos foi morar em Maceió onde terminou os preparatórios no Colégio Diocesano. No Recife, em 1938, fez o curso pré-médico no Ginásio Pernambucano.  Matriculou-se na Escola de Medicina do Recife (PE), mas sua inclinação era para a literatura. Participou do Congresso de Poesias, realizado 1941. Colaborou no  jornal da arquidiocese alagoana, O Semeador, a partir de 1937.  Em dezembro de 1942 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso na Faculdade de Ciências Médicas (1946), especializando-se em hanseníase. Foi   médico da Prefeitura da então capital federal.  Colaborou nos Diários Associadosna Revista do Brasil e em Autores e Livrosquando de sua vida acadêmica no Recife, com destaque para  O Jornal de Alagoas da década de 1950, em seu suplemento dirigido pelo jornalista  Arnoldo Jambo. Participou do grupo da Revista Branca. Escreveu crônicas para rádios e jornais. Permaneceu, algum tempo, internado em uma clínica psiquiátrica. Patrono da cadeira nº 19 da ACALA.  Patrono da cadeira nº 05 da ASCLA. Obras: João Urso, Rio de Janeiro: Edições EPASA, 1944, com o qual recebeu o prêmio Coelho Neto, da ABL, bem como o prêmio de contos  Afonso Arinos, da ABL e o prêmio Graça Aranha da Fundação Graça Aranha, prefácio de José Lins do Rego; Cogumelos,  Rio de Janeiro: Edição A Noite, 1949, prefácio de Gilberto Freyre (contos).;  Contos,  Rio de Janeiro: Ed. O  Cruzeiro, 1953;  Maria Pudim,  Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1955, capa de Poty (contos); Dunas,  Rio de Janeiro:Ed. O Cruzeiro, 1955 (romance); Os Cata-Ventos,  Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962 (contos). A Eucaristia e a Verdade, in Primeira Semana Eucharística Parochial, de 24 a 31 de Outubro de 1937, na Igreja Matriz de Jaraguá, Maceió: 1937, p. 198-205. Deixou inédito: Siracusa, Pedras e Izabela, três romances. Foram publicados: Os Melhores Contos de Breno Accioly, seleção de Ricardo Ramos, São Paulo: Global Editora, 1984 e Onze Contos Inéditos, Maceió: Edicultec, 1989, organização de Rommel Acioly, ilustrações de Darel e Bruno Giorgi;  Breno AcciolyObras Reunidas, São Paulo: Escrituras, 1999. João Urso Urso Contos Incríveis de Breno Accioly, Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2015. Breno Accioly Onze Contos Inéditos, Maceió: Edicultec, 1989, organização de Rommel Acioly, ilustrações de Darel e Bruno Giorgi. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.

Um comentário:

  1. Etevaldo, meu amigo... Breno Accioly é fantástico. Ganhei de um santanense amigo, seu primeiro livro. Onde entre tantas preciosidades, tem o conto : João Urso. Belíssimo. Obrigada pela partilha. Um grande abraço,
    GorettI Brandão

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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia