sábado, 3 de dezembro de 2022

PRÁTICO DO SÃO FRANCISCO TRANSPORTOU LAMPIÃO DE ANGICOS A BORDA DA MATA

 Por Selênio Homem[i]

"Seu Quincas", em 1967.

O homem chama-se Joaquim Bezerra de Souza, casado, 53 anos, residente em Pão de Açúcar, Alagoas, cidade atraente e que possui, para orgulho dos seus habitantes, um pãozinho de rocha, com um pequeno Cristo Redentor no ápice. “Mestre Quincas”, como é mais conhecido em todo o baixo São Francisco, exerce o singular ofício de prático de água doce, e jacta de ser o mais competente nas 158 milhas navegáveis da Região. “Mestre Quincas” é o homem que a Marinha contrata, todos os anos, para guiar o navio-patrulha Piraju, na missão de atendimento às populações ribeirinhas.

Trata-se de extraordinário contador de histórias. Sabe coisas de arrepiar os cabelos e tem o dom de contá-las em ritmo pausado, persuasivo, descendo a minúcias de literatura policial.

Há um caso na vida de Quincas, uma faceta que ele narra com indisfarçável júbilo: de haver transportado o temível Lampião, rio afora, de Angicos à Fazenda Borda da Mata, estância que pertenceu, à época, ao pai do então Governador de Sergipe, Eronides de Carvalho[ii], um velhote de maus bofes que se dava ao risco de “hospedar” o Capitão Virgulino Ferreira, quando maior era o assédio das volantes. A aventura passou-se em águas sergipanas e Quincas conta o “suspense” mais ou menos assim:

Era um dia qualquer do ano de 1936. Ainda muito jovem, trabalhava como ajudante na canoa “Teresa Gois”, do Mestre Moisés Francisco dos Santos[iii], sujeito taciturno, de poucas palavras.

O barco subia o rio e ia buscar um bom frete em um lugarejo distante. Pelo menos foi o que Moisés anunciara a Quincas quando “abriu os panos” em Capoeira[iv], fazenda de sua propriedade. A tarde caia lentamente e entre ambos pairava um silêncio de clausura. Em dado momento, o Mestre rompeu a quietude com sua voz grave:

- Sabe de uma coisa, Quincas, eu não o avisei, mas tenho que apanhar uma “família” em Angicos, na ribanceira, perto da casa de compadre Chico. Joaquim não deu muita importância àquela sentença patronal. Cabia-lhe apenas cumprir as ordens do chefe.

- Tá certo, seu Moisés, tá certo...

O navio patrulha Piraju no porto de Curralinho-SE


O BANDO SURGE


Eram cinco horas da tarde quando Moisés anunciou a mudança do itinerário. Pouco depois, a canoa atracou na ribanceira. Seguiram-se longas horas de espera. Precisamente às 22 horas, Quincas avistou alguns vultos que saiam do mato, em direção ao barco. A “família” se aproximou e o jovem Joaquim sentiu o sangue fugir-lhe das veias. À frente do grupo, caminhava uma figura lendária, terror do sertão. Quincas logo o reconheceu: era Virgulino Ferreira com seus reluzentes enfeites de metal precioso, armado até os dentes. Homens morenos, de cabelos compridos e chapéus vistosos, de abas levantadas, seguiam o Rei do Cangaço.

Os sinistros passageiros tomaram assento na canoa e ficaram imóveis como estátuas de pedra. Lampião acomodou-se junto a Maria Bonita e dirigiu algumas palavras cordiais ao Mestre Moisés (“Maria era baixota, porém, bonita de verdade” – comentou Joaquim). O inexperiente ajudante estava com os nervos em pandarecos. Ficou todo o tempo na proa, fingindo ajeitar o pano, para não passar por entre os cangaceiros, embora estivesse no grupo o Zé Sereno[v], seu amigo de infância.

Aos primeiros raios do sol, a canoa chegou à fazenda Borda da Mata. Mestre Moisés recebeu sua paga e seguiu com destino a Penedo. Esta foi a última viagem de Joaquim Bezerra como ajudante da Teresa Góis.

OUTRAS ESTÓRIAS

Acontece que Mestre Quincas sabe muitas estórias do cangaço, de tanto haver percorrido o Baixo São Francisco, no tempo que Virgulino Ferreira estabeleceu seu domínio de terror nos sertões nordestinos. As cidades à beira d’água eram frequentemente visitadas por Lampião, e Joaquim continuava como ajudante de mestre, rio acima, rio abaixo.

Pouco depois de seu inusitado encontro com os cangaceiros, contou “Mestre Quincas”, a canoa “Rio Branco”, de José Pedro[vi], foi atacada pelo bando, no Morro da Abelha[vii], em Sergipe.

A embarcação seguia para Propriá, levando dois sanfoneiros que iam animar uma festança naquela cidade. Mas, Lampião não estava interessado em festa. Queria ir para a fazenda Saco dos Medeiros[viii], em Alagoas, a fim de cobrar “uma dívida” ao Coronel Gustavo, dono da terra. Virgulino desembarcou para ajustar as contas, e a “Rio Branco” subiu o rio, rumo a Pão de Açúcar.

Um delator de Lampião se encontrava a bordo da canoa. Maria Bonita reconheceu o “sujeito”, mas o Rei do Cangaço estava de bom humor e preferiu não ir à desforra. O infeliz denunciante, ante a terrível descoberta de Maria, ficou imóvel, sem bater pestanas, até o desembarque do bando. Conta-se que, ao chegar a Pão de Açúcar, saiu feito um desvairado, em louca disparada, com uma crise de histerismo.

Essa notícia Joaquim ouviu do cangaceiro “Cajazeira”, que participou do assalto à canoa.

Canoa Rio Branco, depois Luzitânia.


O CONHECEDOR DO RIO

Se alguém se dispuser a ouvir as narrativas de Mestre Quincas, terá que ter paciência de Jó. Antes de tudo, porém, Joaquim Bezerra e um prático de água doce. Conhece o Baixo São Francisco como ninguém. Sabe todas as passagens difíceis do rio e tem teoria própria sobre as mutações que se processam anualmente, no seu leito.

Diz que de Penedo à foz do rio, é tranquilo, não oferece perigo algum. “Danado” é o trecho Penedo-Piranhas, que se modifica, na época da cheia, pela ação da correnteza. Por esse motivo, todos os anos, com o rio seco, faz a correção da sua particularíssima carta fluvial.

Hoje, após tantas intempéries, Joaquim Bezerra é um homem tranquilo. Há 13 anos e prático da empresa Tupan, que faz a linha Penedo-Piranhas, transportando passageiros. Resta agora crias os moleques e terminar seus dias na santa paz do Senhor.

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NOTA.

JOAQUIM BEZERRA DE SOUZA, conhecido por “Quincas”, nasceu no povoado Curralinho, município de Porto da Folha-SE (atualmente território de Poço Redondo-SE), no dia 18/08/1910. Filho de Teotônio Martins Bezerra e Adelaide Lucas de Souza (casados em 15 de agosto de 1904, em Porto da Folha-SE). Eram seus avós: paternos, Pedro Bezerra e Antônia Rosa Bezerra; maternos, Lucas Evangelista dos Santos e Maria Rosa de Souza. Casado com Maria José Santos, natural de Pão de Açúcar, onde reside seu filho José Bezerra (Zé de Quincas).

Foi Comandante Prático da Empresa Tupan (de Sebastião e Luiz Barreto, com sede em Neópolis-SE), fazendo a linha Penedo-Piranhas desde 7 de julho de 1957 até 1979, quando a empresa encerrou as atividades naquela linha. Faltando-lhe a lancha Tupan, que comandou durante vinte e dois anos, ainda trabalhou na balsa que fazia a travessia Pão de Açúcar-AL/Niterói-SE (povoado pertencente ao município de Porto da Folha), pertencente à Empresa Fluvial Sao Francisco (Zélia Silva Gonçalves).

Faleceu em Pão de Açúcar-AL no dia 25 de agosto de 1999.

Povoado Curralinho-SE, 1967. Foto: Capitão-de-Mar-e-Guerra Alberto do Valle Rosauro de Almeida

A lancha Tupan


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Transcrito do Diário de Pernambuco, 17 de março de 1967.

http://memoria.bn.br/DocReader/029033_14/48945http://memoria.bn.br/DocReader/029033_14/48945

Informações adicionais: Wellington Santos, Tonho de Dona, Everaldo Fernandes.

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Caro leitor,

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.



[i]


SELÊNIO HOMEM DE SIQUEIRA CAVALCANTI. Nascido em 24 de maio de 1935, em Santa Luzia do Sabugí, Sertão do Estado da Paraíba. Filho de Edgard Homem de Siqueira (Promotor de Justiça, Juiz de Direito e Desembargador) e de Jandira de Siqueira Cavalcanti. Avos paternos: Homem de Siqueira e Maria Umbelina Cavalcanti. Maternos: Antônio Eduardo Freire e Maria Antônia Freire. Seu nome é inspirado no elemento químico de número atômico 34, um ametal pertencente ao grupo dos calcogênios. Seus irmãos Yttérbio e Ruthenio também pertenciam à mesma “família” da tabela periódica. Selênio foi para o Recife em 1947. Formou-se em Economia, mas nunca exerceu a profissão. Iniciou-se no jornalismo em 1960, na “escola” do Diário de Pernambuco. Em 1969, foi agraciado com a Medalha do Mérito do Recife. Em 1971, dirigiu a Assessoria de Publicações e Pesquisas da Empresa Metropolitana de Turismo do Recife. Quem não o conhecesse, discreto como um frade, envolvido pela fumaça do cigarro, a matraquear a máquina de datilografia pé duro, invariavelmente de calças jeans e camisa sem gola, mal imaginava estar diante de um dos maiores talentos da palavra que o jornalismo pernambucano produziu. Em 1983, quando era Chefe de Reportagem do Diário de Pernambuco, recebe o título de Cidadão do Recife, outorgado pela Câmara Municipal, por inciativa do Vereador Josué Pinto. As funções do pai o fizeram residir no Rio Grande do Norte, onde foi “menino de engenho”, no Engenho Belém, de sua avó materna. Já adolescente, foi com a família para Olinda. Faleceu em Olinda-PE, no dia 14 de dezembro de 2015. Fonte: Diário de Pernambuco, 18/05/2021.

 

[ii] ANTÔNIO FERREIRA DE CARVALHO. Filho de Jesuíno Ferreira de Oliveira Costa e de Annanias Perpétua dos Anjos. Nasceu em São Brás-AL, no dia 24 de março de 1873. Faleceu a 5 de maio de 1948 em Canhob-SE. Foi prefeito do Município de Canhoba, cuja emancipação política, desmembrado de Aquidabã, ocorreu em 1937. Fonte: Familly Search.org.

 

[iii] MOISÉS FRANCISCO DOS SANTOS, conhecido por Moisés Tambangue, natural de Curralinho-Poço Redondo-SE. Fonte: Lampião e o Cangaço na Historiografia de Sergipe. Archimedes Marques.

Moisés Tambangue residia na fazenda Capoeira, abaixo do povoado Curralinho, em Poço Redondo-SE, Era casado com Sra Eulina Vital. Passou a morar em Juazeiro, Bahia, na década de 1950, para onde levou a canoa Tereza Góis. Quando precisou passar na região da ponte de Jatobá, precisou cortar a canoa ao meio. Já em Juazeiro, vendeu a canoa para Lourival de Joscelino, do povoado Jacaré, e comprou a canoa Cordilheira do Sr. Zé Brito, proprietário da fazenda Abadia, em Canindé do São Francisco-SE. (informação de Everaldo Fernandes)

 

[iv] Fazenda Capoeira, acima de Curralinho-SE.

 

[v] ZÉ SERENO, José Ribeiro Filho - nasceu em 22 de Agosto de 1913, na Fazenda dos Engrácias, no município de Chorrochó, no Estado da Bahia. Era filho de José Ribeiro e de dona Lídia Maria da Trindade. Sua mãe era irmã dos cangaceiros Antônio e Cirilo de Engrácias. Dona Lídia também era irmã do cangaceiro Faustino, "Mão de Onça", sendo este pai do terrível cangaceiro Zé Baiano, o ferrador do bando de Lampião. Zé Baiano andava com um ferro de ferrar animais com as iniciais "JB", as primeiras letras do seu nome. Para suas maldades alheias onde ferrava mulheres e homens, de preferência no rosto. Zé Baiano era primo carnal do cangaceiro Zé Sereno, isto é, pai e mãe eram irmãos dos pais de Zé Sereno. Zé Baiano e Zé Sereno eram primos legítimos do cangaceiro Mané Moreno. Zé Sereno andou no bando de Lampião com sua esposa Sila, até no dia do massacre na Grota de Angico, onde mataram Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, sobre o comando do oficial alagoano tenente João Bezerra. Zé Sereno e Sila saíram ilesos do massacre, isto é, não foram atingidos pelas balas. O ex-cangaceiro Zé Sereno só veio a falecer em 16 de fevereiro de 1981, no Hospital Municipal de São Paulo. Sua mulher Sila faleceu no dia 15 de Outubro de 2005, também na capital Paulista. Fonte: http://blogdomendesemendes.blogspot.com/2020/04/por-josemendes-pereira-jose.html. Segundo consta do seu registro de óbito, José Ribeiro Filho era funcionário público municipal. Residia na Rua Augusto Perroni, 841 – Butantã – São Paulo-SP, e foi vítima de AVC – Acidente Vascular Cerebral.

 

[vi] Canoa Rio Branco, que depois pertenceu a Luiz Martins, segundo Carlos Eduardo Ribeiro, da ONG Canoa de Tolda. Essa embarcação, depois denominada Luzitânia, foi recuperada e, ao lado da canoa Piranhas, constituem os dois exemplares existentes desse tipo de embarcação típica do Baixo São Francisco.

 

[vii] Morro da Abelha, pouco acima de Ilha do Ouro-SE.

 

[viii] Saco do Medeiros, na margem alagoana, quase defronte a Gararu-SE, um pouco acima.

2 comentários:

  1. Tive um convívio harmonioso com Seu Quincas, pois por muitos anos, até sua morte, fomos vizinho na rua Ver Germinio de Araújo Costa, conhecida com São Francisco e outrora chamada de Rua da Areia.
    Até onde lembro, frequentava a porta da minha casa, onde tem por compadre, padrinho da única filha do meu avô, Zé Paqueta. Uma estória rica para o conhecimento de Pão de Açúcar.

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    1. Obrigado pelo seu comentário!!! Vamos continuar contando a história da nossa terra.

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A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia