Etevaldo Amorim *
A viagem principiara tranqüila. Desde o porto de Piranhas, donde partira pouco depois das 14:00 horas com destino a Pão de Açúcar, a Moxotó deslizava sobre as águas buliçosas do rio São Francisco, rompendo o vento forte, tão comum nessas tardes sertanejas. Tudo transcorria no modo habitual. Passageiros alegres em conversas as mais diversas, procuravam “matar o tempo” e, assim, conseguir que a viagem se tornasse menos fatigante. A “Chata”, como era conhecida, pernoitaria no porto de Pão de Açúcar para, na manhã da quinta-feira, seguir para Penedo, cumprindo a linha normal de todas as semanas. Antes, porém, reabasteceria com lenha trazida de canoa, desde Jacarezinho, por Manoel Carlos de Souza.
A Moxotó era a embarcação mais leve dentre todas da Companhia Pernambucana. Substituiu o vapor Sinimbu, grande e pouco efetivo, sobretudo em épocas de rio seco, quando freqüentemente encalhava em bancos de areia, as conhecidas “coroas”. A Chata, não. Era possível com ela navegar em qualquer época. Serviam-se dela as pessoas mais abastadas de toda a região sanfranciscana: coronéis, fazendeiros, representantes comerciais... todos faziam o mesmo percurso até Penedo donde se podia embarcar para o Recife, Maceió ou para a Bahia, sem falar em outros destinos menos procurados.
A julgar pelas palavras de Moreno Brandão, em seu História de Alagoas, a Moxotó era pouco segura. Segundo ele, era “uma chata, cuja peregrinação através das águas tão fortes e caudalosas é um verdadeiro milagre, tal é a fragilidade da referida embarcação”.
Lá pelas quatro da tarde daquele 10 de janeiro de 1917, passando pelo povoado Curralinho (Poço Redondo-SE), eis que o vento se torna mais forte. Subitamente o céu se obumbra, prenunciando tenebrosa tempestade. E a tormenta se abate sobre as águas do rio agora revoltas e temerosas. Rajadas vindas do Norte varriam a superfície das águas de costa a costa. Quase nada se podia divisar em meio à intensa nuvem de poeira que encobria o horizonte. Já parecia noite e a escuridão só cessava aos relâmpagos que amiúdam, ora em intenso clarão, ora em caracóis de fogo, sucedidos por trovões apavorantes. A frágil embarcação logo sacoleja freneticamente sob o império das ondas, que se fazem tão altas como nunca se vira. Intensa marulhada faz o rio parecer um mar aberto, bravo e assombroso.
Cessam as conversas. Atemorizados, os passageiros se fecham num silêncio quase absoluto. O pequeno vapor, antes sobranceiro, agora se debate contra as vagas, em luta renhida, mas desigual. Debalde, procura o piloto manter o controle. O jovem Domingos Aguiar apela para que o prático “Rolinha”, que comandava a embarcação, aporte imediatamente em qualquer lugar, ou logo ali na confluência do riacho das Antas (pouco acima de Bonsucesso-SE), mesmo com o risco de perdê-la, assegurando que seu pai pagaria todo o prejuízo. Em vão... Talvez por acreditar que pudesse superar a turbulência, preferiu arrostar o perigo e, quando supôs não haver mais recursos, julgando poder proteger-se por detrás do morro do Belmonte, procurou o curso entre este e a margem direita, reduzindo velocidade e baixando âncoras. Foi o suficiente para a lancha tombar desgovernada, completamente à mercê das ondas e do vento. Seguem-se momentos de pavor. Forma-se de repente um cenário dantesco: gritos, choro, desespero. A água transpõe o convés e invade todo o vão interior. Pânico geral! Passageiros e tripulantes se atropelam em movimentos desordenados. Uns se lançam ao rio em busca de salvação; outros são tragados pelas ondas e sucumbem ao soberbo poder das águas tempestuosas, soçobrando inevitavelmente.
Consuma-se a tragédia. A tempestade afinal se aplaca ao cair da noite. Dia seguinte, a notícia se espalha. De Pão de Açúcar, onde a tempestade destelhou casas e derrubou árvores, partiram equipes de busca, coordenadas pelo Capitão Manoel Rego. Trabalho difícil e doloroso que ia revelando, a cada corpo encontrado, a extensão e a gravidade do que ocorrera no morro do Belmonte. Dentre os tripulantes o dispensário Silvestre, o criado Odilon e o imediato Hermínio Lemos, que foi localizado dentro do camarote. Morreram também os passageiros: Martinho Sergipano, Luiza Caximbo, Josephina Alves, José Guilherme, Domingos de Novaes Aguiar e ainda dois cegos, um menino e dois cidadãos cujos nomes são ignorados. Domingos só foi encontrado na noite do dia 12, sexta-feira. Seu túmulo se acha no cemitério velho de Pão de Açúcar, logo à direita do portão principal, ao lado de seus familiares: Major João Machado de Novaes Melo (Barão de Piaçabuçu) e Ferreira de Novaes, personagens importantes da história de Pão de Açúcar.
Alguns lograram sobreviver: o comandante Pedro Mathilde, o negociante Panta, Manoel Victorino, o guarda telegráfico Pedro Marinho, Nicácio Duarte, Antônio Totó e Justino Pereira, dentre outros. Mesmo depois de decorridos noventa anos daquela fatídica viagem, os habitantes da região ainda comentam o acontecimento. Não é difícil encontrar entre eles uma lembrança da embarcação: um pedaço de madeira ou outra peça que lhes sirva de recordação. A história, passada de geração a geração, mantém-se viva na memória dos ribeirinhos e desperta atenção de tantos quantos se interessam por assuntos dessa natureza. A Moxotó ainda repousa sob as areias brancacentas da Ilha do Belmonte e se torna visível a cada vazante mais severa do rio, como que para lembrar a maior tragédia da navegação no baixo São Francisco.
(*) Autor do livro Terra do Sol, Espelho da Lua.