Reportagem de
Escobar Filho[i]
“PÃO DE AÇÚCAR - Dezembro de 1944.
Quando eu disser ao
carioca que estou em Pão de Açúcar, há de parecer que escolhi o recando do
caminho aéreo para morar. Não haveria aí nenhuma novidade, pois lá morou, por
muitos anos, o desenhista José Maria Sampaio, que fazia as célebres “caruetas”,
perfis recortados a tesoura e que hoje está lançando uma revolução na pedagogia
com o ensino do desenho pela música. Nasceu no Pão de Açúcar uma filha do
conhecido artista da tesoura feita lápis. Todos os jornais cariocas já
publicaram seu retrato. Uma menina bonita – Paulina Pão de Açúcar Sampaio.
Mas o outro Pão de
Açúcar, aquele onde estou no exercício de funções fiscais e de onde escrevo,
fica à margem do Rio São Francisco. Não sei por que lhe deram esse nome. Um
pequeno morro que a seta indica numa das fotos parece mais com a Urca. Enfim,
já existe o nome e a cidade que ele abrange é das mais interessantes da Região
que aqui se chama o Sertão.
|
Av. Ferreira de Novaes vendo-se o Morro do Cavalete (sem
o monumento ao Cristo Redentor) e a antiga caixa d'água, nas
imediações do atual Iate Club Pão de Açúcar. |
Sertão, a rigor, não há
mais. Boas estradas, quer de construção do Estado, quer do Serviço de Obras
Contra as Secas, ligam todos os núcleos povoados de Alagoas. Vai-se num dia de
Maceió às cidades mais distantes, de automóvel ou de “sopa’, denominação dos
ônibus nesta zona. Era Sertão quando os bandoleiros talavam as suas caatingas.
Lampião, aliás, nunca entrou em Pão de Açúcar, mas andou bem perto e não muito
longe foi abatido. Conheci agora um dos participantes da expedição que derrubou
o rei do cangaço. O antigo cabo Anacleto, hoje aspirante, que por sinal se
encontra preso, acusado de uxoricídio.
Pão de Açúcar pode ter
o nome de cidade. Boas casas, ruas pavimentadas, igreja, grupo escolar, jardins,
um serviço de alto-falantes e o controle do movimento de exportação, por via
fluvial, de toda a produção algodoeira da zona.
|
Av. Bráulio Cavancante, vendo-se o serviço de alto-falantes,
defronte à Casa José Gonçalves de Andrade. |
O seu prefeito é um
homem viajadíssimo e as grandes firmas do lugar são constituídas de elementos afeitos
às exigências da civilização nos grandes centros. Água encanada, luz, cinema –
embora as instalações sejam ainda um tanto precárias – completam o quadro de Pão
de Açúcar para dar-lhe de fato, como já tem de direito, o nome de cidade, onde
vive uma população de quase cinco mil almas.
Muito calor, não há
dúvida. Mas as noites muito agradáveis. Passam-nas aqui, obrigatoriamente, os
turistas que visitam a cachoeira de Paulo Afonso e vêm da Pedra, a criação do
gênio caboclo de Delmiro Gouveia, pela estrada de ferro até Piranhas, para
desceu o rio até Penedo ou Propriá. Todos acham curioso encontrar aqui uma
cidade com as características de Pão de Açúcar.
É pena que a luz de
apague às 22 horas. Como Tântalo, à beira do rio, os concessionários da luz
elétrica não usam a água como elemento gerador e sim a lenha. Daí o
racionamento.
|
Praça Moreno Brandão, vendo-se ao fundo a igreja Matriz. |
Também esta palavra
medonha não e ouvida noutros setores. Há de tudo. Legumes pouco, mas frutas,
bastante. Gêneros alimentícios também. A feira da cidade é na segunda-feira. Desde
a madrugada, começam a chegar as canoas de tudo que pode ser objeto do comércio.
Canoas magníficas, extensas e largas, com os velames amplos e as toldas na popa[ii]
em condições de permitir que se armem redes para as madornas suaves.
Há um só hotel na
cidade, o de Adelina. Diz o “Talmud” que o celibatário não é um homem. Não acusa,
entretanto, as mulheres que não se casam. Dona Adelina não se casou. Seria descortês
perguntar sua idade, mas nas nossas
conversas, (gosto muito de conversar com a boa velhinha) vim a descobrir que
1914 ela já tinha passado da idade de casar. Comprou, nessa ocasião, um
papagaio por 700 réis. O louro de sete tostões ainda vive e confesso que com
ele consegui acreditar que os papagaios falam. Até agora a linguagem dos
papagaios parecia existir (pelo menos para mim) nas anedotas que ele ilustra,
tanto nas que podemos contar em voz alta como nas outras, as clandestinas,
impróprias dos salões. (V. sabe aquela do papagaio?)
Dona Adelina concentrou
suas atenções no louro, hoje trintenário. E a gente entende tudo que ele fala. Fico
observando os movimentos da língua do papagaio. Ele fala e canta. Sua canção é
a “Beata”, uma sátira às velhas que não saem da igreja. A dona do hotel, apesar
de católica, não é beata e gosta da cantiga que o papagaio aprendeu.
Perguntei a D. Adelina
qual era o preço dos aluguéis das casas em Pão de Açúcar. Ela comprou o sobrado
do hotel por seis contos. (vamos falar na moeda antiga que tem o sabor dos
pronomes mal colocados).
D. Adelina respondeu:
- Agora já não há mais
casas de dez nem quinze mil réis por mês. Subiu tudo. Só se arranja casa de
trinta e quarente e parece que há até de oitenta mil réis.
Uma dúzia de ovos, dois
mil e quinhentos. Uma galinha gorda, sete mil réis. Não há fila para carne. A
manteiga e os queijos vêm de Jacaré dos Homens, um Distrito do Município.
Fabrica-se o guaraná em Santana do Ipanema, município vizinho. A cerveja é mais
barata do que em cidades mais próximas dos grandes centros, como por exemplo
Campo Grande, em Mato Grosso, que fica a dois dias de São Paulo, e onde a
cerveja custa seis cruzeiros, quando em todo o Estado de Alagoas custa quatro.
|
Trecho da Av. Bráulio Cavalcante, entre a Matris e a Cadeia Pública. |
Convém notar que estes
preços não revelam, como pode parecer, uma cidade em decadência. Ao contrário,
nota-se aqui muito progresso e atividade. O algodão e o arroz já formaram uma
pequena elite de capitalistas. Não há mendigos. Todos trabalham e o comércio de
utilidades é bem instalado.
O que há é a
desambição, talvez. E, sobretudo, equilíbrio com certas praxes que se vão
eternizando. As passagens dos navios, por exemplo, não se alteraram. Uma viagem
até Propriá, com camarote de bons beliches, custa onze mil e novecentos réis. Juntando
a isso o café e o almoço não passa de vinte mil réis. E são oito horas de
viagem.
O mais curioso é que os
vapores, descendo o rio, ganham das canoas, mas na subida perdem. Todos
preferem subir de canoa por causa do vento. A viagem é pitoresca. Ora chegamos
a uma cidade alagoana, ora a uma sergipana. Traipu ou Gararu. Propriá ou
Colégio. Penedo ou Vila Nova[iii].
A emulação é interessante. Ora vence o orgulho alagoano, ora o sergipano.
Os homens de Pão de
Açúcar, neste momento, só estão preocupados com um coisa: com a abertura da
agência do Banco do Brasil. O Sr. Marques dos Reis já recebeu o relatório do
técnico bancário que foi estudar a Praça e tudo indica que a cidade será
incorporada à rede do nosso principal estabelecimento de crédito.
Não estou convidando ninguém
para vir morar em Pão de Açúcar. Vindo muita gente, tudo mudará. Mas a verdade
é que, apesar do calor, e aceitando o velho nome de Sertão para esta zona,
podemos dizer que Pão de Açúcar é um oásis. Quem está cansado de ficar na fila,
pode descansar aqui”.
_____
Transcrito da revista
CARIOCA, RJ, nº 484, 30 de dezembro de 1944. O prefeito de Pão de Açúcar era o Sr. Augusto de Freitas Machado.
[i]
Francisco
Escobar Filho, jornalista e escritor capixaba. Era também Agente Fiscal do
Imposto de Consumo do Ministério da Fazenda. Nasceu a 25 de agosto de 1901,
filho de Francisco de Lima Escobar Araújo e de Leocádia Ribeiro Escobar. Faleceu
a 10 de outubro de 1966, na cidade de São Bento do Sul, Estado de Santa
Catarina, aos 65 anos de idade. Foto revista Vamos Ler, RJ, 20/07/1944
[ii]
Na verdade, a tolda se localiza na proa da canoa.
[iii] A
essa época, Vila Nova já tinha recebido a nova denominação de Neópolis pelo Decreto-lei
nº 272, da Interventoria Federal no Estado, de 30 de abril de 1940.